Motorista de Sócrates ia
periodicamente a Paris entregar-lhe dinheiro vivo
MARIANA OLIVEIRA
, PEDRO SALES DIAS e ROMANA BORJA-SANTOS 24/11/2014 - PÚBLICO
Há cerca de um ano, escutas efectuadas no âmbito da investigação aberta
pelo DCIAP apanharam João Perna a falar sobre o esquema, que terá sido
entretanto abandonado.
O motorista do ex-primeiro-ministro
José Sócrates, João Perna, detido desde a passada quinta-feira, ia
periodicamente de automóvel a Paris entregar dinheiro vivo ao político, em
quantias que atingiam as dezenas de milhares de euros.
A informação
resulta de escutas efectuadas no âmbito da investigação aberta pelo
Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), há cerca de um ano,
em que João Perna é apanhado a falar sobre esse esquema, que, contudo, terá
sido abandonado pelo antigo governante há alguns meses. Haverá também
vigilâncias ao motorista que transportaria o dinheiro até à luxuosa casa que o
antigo primeiro-ministro habitava no centro de Paris.
Sócrates, que
desde Janeiro de 2013 se tornou consultor da empresa farmacêutica Octapharma
recebendo pelo serviço 12 mil euros mensais,
passou a determinada altura a receber outros 12 mil euros de uma nova
avença, como o Semanário Sol noticiou.
Numa complexa
sucessão de movimentações bancárias, o dinheiro que Sócrates detinha (não se
sabe qual a origem dele, mas os investigadores suspeitam que terá sido fruto de
luvas face aos indícios de branqueamento de capitais recolhidos) e que era
transaccionado pelo seu amigo de infância e empresário Carlos Santos Silva,
passaria através de offshores para a conta do representante da Octapharma, que
o entregaria a Sócrates para pagar uma falsa avença, inventada apenas para
branquear o dinheiro.
A farmacêutica
foi alvo de buscas na quinta-feira, como a própria empresa confirmou em
comunicado, mostrando-se “totalmente disponível” para colaborar com as
autoridades portuguesas.
Numa nota enviada
às redacções, a Octapharma AG, a casa-mãe, com sede na Suíça, revela que as
instalações da empresa em Portugal foram alvo de diligências judiciais na
quinta-feira, 20 de Novembro, dia em que foram detidas as primeiras pessoas
implicadas neste caso: o empresário Carlos Santos Silva, o advogado Gonçalo
Trindade Ferreira e o motorista João Perna.
“Destas
diligências não resultou nenhum impedimento para o normal funcionamento da
empresa”, diz a Octapharma AG, garantindo que a Octapharma Portugal “prestou
desde o primeiro momento total colaboração às entidades”.
Nesse sentido, a
“Octapharma AG está totalmente disponível para colaborar com as autoridades,
esclarecendo toda e qualquer questão que possa surgir, por parte destas, em
qualquer âmbito”.
A empresa
garantiu igualmente que “nenhum colaborador da Octapharma Portugal foi detido ou
constituído arguido no âmbito das investigações em curso” e que, por isso, “as
notícias do envolvimento da empresa com as alegadas irregularidades em
investigação não têm qualquer fundamento”.
Segundo a
farmacêutica, o ex-primeiro-ministro integra o conselho consultivo para a
América Latina, funções que “não envolvem qualquer actividade em Portugal ou
relacionamento com filial portuguesa”, sublinhando que a relação profissional
entre as duas partes “sempre se pautou pelo estrito cumprimento da lei e por um
vínculo contratual claro e transparente”.
Apesar de
existirem escutas telefónicas no processo, a base da prova do inquérito é
essencialmente de natureza documental, incluindo diversa informação bancária, o
que poderá ajudar a explicar a razão pela qual Sócrates escolheu o advogado
João Araújo (ver texto ao lado), com uma vasta experiência em direito
bancário, para o representar neste caso.
Aliás, nas buscas
realizadas na residência do ex-primeiro-ministro, no edifício da Rua Braancamp,
em Lisboa, os investigadores apreenderam vasta documentação bancária,
nomeadamente extractos que poderão ser relevantes para consolidar a prova
recolhida neste processo. O mesmo ocorreu numa box que Sócrates tinha alugada
numa empresa em Alvalade, onde guardava documentos.
Fonte próxima do
processo garantiu ao PÚBLICO que a investigação foi aturada e é consistente,
fazendo crer que a detenção do ex-primeiro-ministro só foi decidida quando um
extenso conjunto de provas cabais estava já reunido. Neste ponto, os investigadores
tiveram cuidados acrescidos. A operação não pode, na perspectiva dos
investigadores, revelar a mínima falha,
até por estar em causa um ex-primeiro-ministro que passa a estar na mira
da justiça.
Como a
Procuradoria-Geral da República já confirmou, o inquérito teve na sua origem
uma comunicação bancária feita ao abrigo da lei de prevenção do branqueamento
de capitais, que terá ocorrido no final do ano passado. Depois de reunida
alguma informação, o DCIAP abriu uma averiguação preventiva que terá sido convertida
num inquérito já em 2014.
Até agora os
investigadores tentaram reconstituir o percurso do dinheiro, numa investigação
que contou com o apoio da autoridade tributária nacional e de algumas
congéneres europeias, que têm cooperado com o Ministério Público através de
canais mais simples e ágeis, evitando assim o recurso às burocráticas cartas
rogatórias, que implicam pedidos formais através do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, que depois os remete para as embaixadas do país às quais se pede
cooperação internacional.
Importante terá
sido igualmente o diálogo directo entre as autoridades judiciais portuguesas e
francesas, a quem foram solicitadas inúmeras informações, incluindo os
documentos relacionados com a compra da primeira casa que Sócrates habitou em
Paris, um imóvel que, segundo o semanário Sol, terá custado 2,8 milhões de
euros e sido formalmente adquirido por Carlos Santos Silva, suspeito de ser há
vários anos o testa de ferro de José Sócrates, ajudando o político a branquear
dinheiro que não poderia ser justificado por actividades lícitas.
Segundo dia no
Campus da Justiça
O segundo dia de
José Sócrates no Campus da Justiça durou 12 horas, com o frio e chuva a
estragarem os planos dos curiosos, com cada aguaceiro a gerar desistências. Eram
8h35 quando o antigo governante foi levado directamente dos calabouços da PSP
para o Tribunal Central de Instrução Criminal, voltando para Moscavide perto
das 21h.
Os outros três
arguidos também chegaram praticamente à mesma hora, mas têm passado as noites
na Polícia Judiciária, para onde regressaram mais cedo, cerca das 19h. Quando
foram detidos, na quinta-feira, ainda passaram a primeira noite no Comando
Metropolitano da PSP, mas aquando da chegada do quarto arguido na sexta-feira,
tiveram de mudar de instalações.
Quanto tempo
durou o interrogatório de José Sócrates ninguém disse, mas as brechas das
janelas do rés-do-chão do edifício espalhado deixaram, à semelhança de sábado,
perceber que o dia do juiz Carlos Alexandre foi mais movimentado.
Pela porta
principal do tribunal não houve tantas entradas e saídas dos advogados João
Araújo e Paula Lourenço. Mas, lá dentro, José Sócrates deixou-se ver pelo menos
quatro vezes – sempre que saiu da divisão onde decorreu o interrogatório para
na sala de testemunhas falar em privado com o seu advogado e consultar papéis
que se pressupõe pertencerem ao processo.
A pausa mais
longa teve lugar às 17h30, altura em que durante quase dez minutos andou de um
lado para o outro nessa mesma sala, acompanhado do lado de fora pelo olhar,
máquinas fotográficas e câmaras da comunicação social. Uma
das interrupções coincidiu com a abertura dos telejornais.
No exterior,
sobretudo na porta de acesso à garagem por onde têm entrado a maior parte dos
carros e nos portões com saída directa para o Parque das Nações, o domingo foi
atípico, com entradas e saídas de motos de escolta da PSP. José Sócrates
continua nesta segunda-feira a ser ouvido pelo juiz Carlos Alexandre.
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