sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Visto pouco dourado e muito suspeito. Duzentos polícias revistam ministérios e detêm director do SEF e altos quadros da Justiça.


"O conceito do visto gold já incorpora em si um dilema ético. E se a isso associarmos uma fraca fiscalização de quem o pede e quem o dá, então mais vale acabar com eles."

EDITORIAL / PÚBLICO
Visto pouco dourado e muito suspeito
DIRECÇÃO EDITORIAL 13/11/2014 - 20:55

As suspeitas de corrupção ressuscitam uma questão: valerá a pena atribuir vistos gold?

O visto gold é uma bandeira deste Governo e foi uma iniciativa de Paulo Portas, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros, com o objectivo de atrair investimento estrangeiro para Portugal. Portas copiou aquilo que hoje em dia se faz em vários países do mundo: a “venda” de autorização de residência ou nacionalidade em troca de dinheiro ou investimento.

Existem três critérios que habilitam qualquer cidadão fora da União Europeia a obter os tais vistos dourados: transferência para um banco português de capitais no montante igual ou superior a um milhão de euros, ou criação de pelo menos 10 postos de trabalho, ou ainda a aquisição de bens imóveis de valor igual ou superior a 500 mil euros. Os vistos gold foram uma bóia de salvação para as imobiliárias e muitos bancos beneficiam de transferência de capitais. Para a economia real, e em termos de criação de emprego, o impacto foi residual.

Mas ao envolver elevadas verbas numa única transacção, sendo que por vezes os negócios são feitos em tempo recorde e com escassa fiscalização, estamos a falar de um terreno fértil para a corrupção. Já houve casos no passado de um cidadão chinês portador de visto gold e com um mandado de captura internacional emitido pela Interpol. Que foi um sinal de que nem todos investem e pedem autorização de residência com a melhor das intenções.

E do lado de cá, de quem os recebe, já se percebeu que o sistema não parece estar blindado à corrupção. A Procuradoria-Geral da República confirmou esta quinta-feira a existência de 11 detenções numa investigação aos vistos gold, estando em causa suspeitas de crimes de corrupção, tráfico de influências, peculato e branqueamento de capitais.


O conceito do visto gold já incorpora em si um dilema ético. E se a isso associarmos uma fraca fiscalização de quem o pede e quem o dá, então mais vale acabar com eles.


Duzentos polícias revistam ministérios e detêm director do SEF e altos quadros da Justiça
PEDRO SALES DIAS , MARIA LOPES e LUCIANO ALVAREZ 13/11/2014 - 14:36 (actualizado às 23:59) PÚBLICO
Entre os 11 detidos pela PJ estão também o presidente dos Registos e Notariado e a secretária-geral da Justiça, além de três chineses. Todos são suspeitos de corrupção na atribuição de vistos gold. Secretária-geral do Ministério do Ambiente apresentou demissão.

O director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Manuel Jarmela Palos, e o presidente do Instituto dos Registos e Notariados (IRN), António Figueiredo, foram detidos nesta quinta-feira na sequência de uma investigação por suspeitas de crime na atribuição de vistos gold.

Na megaoperação Labirinto, que mobilizou 200 inspectores da PJ em todo o país, foi ainda detida a secretária-geral do Ministério da Justiça (MJ), Maria Antónia Anes. A PJ interceptou-a à saída da secretaria, na Rua do Ouro, na Baixa de Lisboa.

A PJ fez também buscas na secretaria-geral do Ministério do Ambiente (MA), liderada por Albertina Gonçalves. Esta responsável, que é sócia do ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, num escritório de advogados, não foi detida. O ministro, como nenhum outro membro membro do Governo, não é visado neste inquérito, salientou já a Procuradoria-geral da República (PGR).

Uma demissão
Os inspectores chegaram ao MA de manhã cedo, aguardaram pela chegada de Albertina Gonçalves e foram com ela para o escritório de advogados do qual é sócia. Regressaram ao princípio da tarde ao ministério e durante quatro horas efectuaram buscas no gabinete. A secretária-geral apresentou depois a demissão do cargo.

No total, a PJ deteve 11 suspeitos de participarem no esquema relacionado com a atribuição de vistos. Uma outra foi detida por posse de arma proibida. Entre os detidos estão funcionários e dirigentes do IRN e três cidadãos chineses ligados a empresas que agilizam as atribuições de Autorização de Residência para Investimento (ARI), mais conhecidas por vistos gold.

A PJ realizou 60 buscas e demorou-se principalmente no IRN e em instalações dos ministérios da Justiça, da Administração Interna e do Ambiente. Centenas de documentos foram apreendidos. Ao início da noite, os inspectores analisavam ainda essas provas que podem vir a ser relevantes para consolidar as suspeitas relativas a crimes de corrupção, tráfico de influências, peculato e branqueamento de capitais. A sede do SEF em Porto Salvo, Oeiras, foi um dos locais alvo de buscas assim como a sua Direcção Regional de Lisboa, Vale do Tejo e Alentejo.

Em causa estarão comissões cobradas ilegalmente para a obtenção dos vistos gold, adiantou fonte policial. É esse o centro da investigação que visa sobretudo o IRN e o SEF. A investigação visará também outros dirigentes superiores dos ministérios alvo de buscas, como o PÚBLICO avançou em Junho. Aliás, já então, a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, pediu informações à PGR, tendo garantido que afastaria eventuais responsáveis do ministério implicados no processo. Nesta quinta-feira, a ministra defendeu que “qualquer pessoa que ponha em causa uma instituição deve imediatamente apresentar o seu pedido de demissão ou de suspensão de funções”.

Os desenvolvimentos deste processo, com buscas essencialmente no Norte e Centro do país, não terão surpreendido o responsável pelo IRN. António Figueiredo sabia desde há meses, até pelos jornais, que estava a ser investigado, o que aumentou a preocupação dos investigadores que acreditam que a divulgação da informação visou comprometer o seu trabalho.

Sob investigação estará também uma empresa de Ana Luísa Figueiredo, filha do presidente do IRN. A Golden Vista Europe tem um objecto social variado desde a compra e venda de automóveis à prestação de serviços de documentação, passando pela comercialização de mármores e pela exploração de estabelecimentos de ensino. A empresa conta com mais cinco sócios, dois deles chineses. António Figueiredo garantiu então ao PÚBLICO que a empresa sediada em Cascais não teve qualquer actividade desde que foi criada em Outubro, manifestando-se estupefacto por estar a ser investigado.

Porém, o sócio-gerente Carlos Oliveira confirmou na altura que a firma foi constituída para vender imóveis aproveitando a lei dos vistos gold, mas que nunca conseguiu transaccionar qualquer casa. Mas no portal da Justiça não há qualquer informação sobre o fim da actividade da empresa. A firma foi criada a 14 de Outubro do ano passado e não tem ainda registos públicos de facturação.

Além de Ana Luísa (que tem uma quota de 20% da empresa) e de Carlos Oliveira , a Golden Vista Europe tem como sócios-gerentes dois cidadãos chineses - Zhu Baoe, com residência na sede da empresa, na Quinta da Bicuda, em Cascais e que está ligado a uma outra empresa de investimentos imobiliários, a Pyramidpearl; e Shengrong Lu que reside nas ilhas Baleares -, João Miguel Duarte Martins e Tiago Luís Santos Oliveira.

A Golden Vista pode também actuar em áreas como a exploração de unidades hoteleiras e turísticas. Na lista de actividades possíveis estão ainda a prestação de serviços de formação, de apoio ao intercâmbio cultural e de ensino para jovens nacionais e estrangeiros; e actividades agro-pecuárias, florestais e piscatórias. Todas estas actividades são normalmente requisitadas pelos portadores dos vistos gold que usam o investimento em Portugal sobretudo para obter o visto de residência que abre a porta a toda a família para o apetecível espaço Schengen.

O ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, e o antigo líder do PSD e comentador político Luís Marques Mendes, são também sócios de Ana Luísa Oliveira Figueiredo noutra empresa. O PÚBLICO tentou sem sucesso ouvir Miguel Macedo.

De acordo com informação a que o PÚBLICO teve acesso, Ana Luísa Figueiredo, Luís Marques Mendes, Miguel Macedo e um quarto sócio (o gerente Jaime Couto Alves Gomes) partilham quotas de igual valor na empresa de consultoria e gestão de empresas JMF - Projects & Business, que tem sede em Lisboa.

O objecto social da empresa inclui ainda a prestação de serviço nas áreas de estratégia empresarial, orientação e assistência operacional a empresas, assim como a importação e exportação de bens e serviços, distribuição e representação de marcas, bens e serviços, de âmbito nacional e internacional.

A empresa foi constituída em 2009 por estes quatro sócios mas em 2012 e 2013 registou unicamente despesas de 2588 euros no primeiro e 302 euros no segundo, sem que tenha quaisquer vendas. Não houve movimentos contabilísticos em 2009 e 2010, mas a prestação de contas anual a que a lei obriga tem sido feita. Ainda assim, mostra uma ligação privilegiada entre o ministro da Administração Interna, o comentador Marques Mendes e a filha do presidente do INIR.

A acção da PJ e de procuradores do Departamento Central de Investigação e Acção Penal presidida pelo juiz Carlos Alexandre do Tribunal Central de Instrução Criminal atingiu responsáveis da máquina política do Estado e do Governo já desgastado por uma guerra interna entre ministérios, justamente a propósito de competências de investigação das diferentes polícias. Anteontem, a ministra da Justiça deixou cair a proposta de lei que restringia a realização de escutas telefónicas à PJ. SEF, PSP e GNR deixariam de ter esse poder que mantêm há vários anos.

Alerta em Abril
O Relatório Anual de Segurança Interna de 2013 referia já no capítulo dedicado às orientações estratégicas para 2014, que “ainda no corrente ano” seriam adoptados “novos procedimentos” para assegurar que, mesmo após a concessão de ARI, se verificava, “com regularidade, a inexistência de situações que, pela sua relevância criminal”, pudessem “obstar à manutenção da autorização concedida”.

Até aqui, o registo criminal dos candidatos aos vistos gold apenas era exigido na altura da concessão da autorização de residência. Questionado então pelo PÚBLICO sobre o assunto, Miguel Macedo mostrou-se cauteloso, remetendo a autoria da ideia [novos procedimentos] para um grupo de trabalho criado para acompanhar os vistos gold, composto pelo director-geral dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas, pelo director do SEF, agora detido, e pelo presidente da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal. “Não posso ainda especificamente enumerar quais sejam os novos procedimentos, embora tenha uma noção daqueles que estão a ser ponderados”, referiu o ministro. A cautela de Miguel Macedo demarcou-se dos prazos categóricos do documento oficial. “Pode ser este ano ainda”, limitou-se a afirmar.

A ideia do reforço do mecanismo de controlo surgiu numa altura em que foi detido pela PJ um cidadão chinês, na sequência de um mandado de captura internacional emitido pela Interpol, a pedido das autoridades chinesas, e que tinha visto gold.

Na investigação desse casso, foram reveladas fragilidades na atribuição dos vistos. A polícia recolheu indícios de que a compra de casas de valor superior a 500 mil euros ou a transferência, para Portugal, de capitais que ascendam a, pelo menos, um milhão de euros era apenas, na maior parte dos casos, um recurso para obter autorização de residência por mais de seis anos e viajar pelo espaço europeu sem obstáculos.

Macedo distante de Palos
O ministro Miguel Macedo não era favorável à recondução de Manuel Palos à frente do SEF, para o qual fora nomeado ainda por António Costa, quando este foi ministro da Administração Interna de José Sócrates num governo do PS. Já em 29 de Agosto de 2005, na abertura da Universidade de Verão do PSD em Castelo de Vide, Macedo, então secretário-geral do PSD, que estava na oposição e era liderado por Marques Mendes, defendeu a demissão de Palos, na sequência de uma entrevista dada por este ao PÚBLICO, na qual o director do SEF manifestou a sua discordância com o regime de quotas de entrada de imigrantes em Portugal. “A única solução é convidar o Governo a demiti-lo”.

Já como ministro, em Dezembro de 2012, Miguel Macedo reconduziu Manuel Palos à frente do SEF. Mas na cerimónia, o ministro salientou querer que a tomada de posse assinalasse “o momento de viragem de página do SEF” e observou que havia aspectos a melhorar, como a intensificação da acção inspectiva e a melhoria do relacionamento dos cidadãos com o serviço.

Estas afirmações de há dois anos de Macedo, que defendia a tese de uma polícia única integrando o SEF, foram interpretadas como descontentamento perante pressões atribuídas ao CDS para manter Manuel Palos no cargo. Esta versão não foi, no entanto, corroborada ao PÚBLICO por Nuno Magalhães, líder da bancada centrista, e que, como secretário de Estado da Administração Interna, nos XV e XVI governos, tutelou a área do serviço de estrangeiros, e a quem eram atribuídas as pressões. “Não é verdade que eu ou o CDS tenhamos feito qualquer pressão para indicar qualquer director no âmbito do MAI [Ministério da Administração Interna] ou de qualquer outro ministério”, sublinhou. Sobre o director do SEF, o dirigente do CDS/PP destacou: “Se me pergunta se o dr. Manuel Palos foi, quando trabalhei com ele [2002/2005], um profissional dediado, competente e sério, digo obviamente que sim.” com Ricardo Garcia, Nuno Ribeiro e Ana Henriques


Sem comentários: