É talvez altura de nos curarmos
de vez do socratismo
José Manuel
Fernandes / 25/11/2014 / OBSERVADOR
Durante muitos anos muita gente não quis ver, não quis ouvir, não quis ler,
recusou tomar conhecimento. Sócrates estava acima disso. Sócrates não tolerava
dúvidas. Mas é altura de aceitar a realidade.
Uma parte do país
– e um contingente notável de comentadores – parecem continuar em estado de
negação. Durante anos não quiseram ver, não quiseram ouvir, não quiseram
admitir que havia no comportamento de José Sócrates ministro e de José Sócrates
primeiro-ministro demasiados “casos”. Em vez disso só viram cabalas, só falaram
em perseguições, só trataram eles mesmo de ostracizar ou mesmo perseguir os que
se obstinavam em querer respostas, os que insistiam em não ignorar o óbvio,
isto é, que Sócrates não tinha forma de justificar os gastos associados ao seu
estilo de vida.
Agora, que
finalmente a Justiça se moveu, eles continuam firmes na sua devoção – e nas
suas cadeiras nos estúdios de televisão. Não lhes interessa conhecer o que se
vai sabendo sobre os esquemas que Sócrates utilizaria para fazer circular o
dinheiro, apenas lhes interessa que parte do que foi divulgado pelos jornais
devia estar em segredo de Justiça. Antes, anos a fio, quando não havia segredo
de justiça para invocar, desvalorizaram sempre todas as investigações
jornalísticas que tinham por centro José Sócrates.
Isto é doentio e
revela até que ponto o país ainda não se libertou da carapaça que caiu sobre
ele nos anos em que o ex-primeiro-ministro punha e dispunha. Nessa altura
também muitos, quase todos, se recusavam a ver, ouvir ou ler, até a tomar
conhecimento. Não me esqueço, não me posso esquecer que quando o Público, de
que eu era director, revelou pela primeira vez a história da licenciatura,
seguiu-se uma semana de pesado silêncio que só foi quebrada quando o Expresso,
então dirigido por Henrique Monteiro, resistiu às pressões do próprio Sócrates
e repegou na história e denunciou as pressões. Não me esqueço que tivemos uma
Entidade Reguladora da Comunicação Social que fez um inquérito e concluiu que o
silêncio de toda a comunicação num caso de evidente interesse público não
resultara de qualquer pressão – a mesma ERC que depois condenaria a TVI por
estar a investigar o caso Freeport. Como não me esqueço de como uma comissão
parlamentar chegou mais tarde à mesma conclusão, tal como não me esqueço de
como vi gestores de grandes empresas deporem com medo do que diziam.
Muitos dos que
agora rasgam as vestes porque o antigo primeiro-ministro foi detido no
aeroporto foram os mesmos que nunca quiseram admitir que havia um problema com
Sócrates, com os seus casos, com o seu comportamento, com o seu autoritarismo.
E também com o seu estilo de vida.
Há momentos que
chegam a ser patéticos. Como é possível, por exemplo, que um homem supostamente
inteligente, como Pinto Monteiro, queira que nós acreditemos que foi convidado
por José Sócrates para um almoço, de um dia para o outro, numa altura em que o
cerco se apertava, e que, naquele que terá sido o seu primeiro almoço a sós, só
falaram de livros e viagens, como se fossem dois velhos amigos? Como é possível
que continue a defender a decisão absurda sobre a destruição das escutas? Ou a
achar que nada mais podia ter sido feito na investigação do caso Freeport?
Mas há também um
lado doentio e provinciano na forma como se tem comentado este caso. Uma das
raras pessoas que detectou essa anormalidade foi Nuno Garoupa, professor
catedrático de Direito nos Estados Unidos e que, por ter respirado ares mais
arejados, não teve dúvidas, notando que “nós é que vivemos num mundo
mediático”, não é a Justiça que cria o circo, como se repetiu ad nauseam nas
televisões. Mais: “A opinião pública pode e deve fazer um julgamento político,
independentemente do julgamento legal e judicial. A política e a justiça não
são a mesma coisa.” Ou seja, deixem-se da hipocrisia do “inocente até prova em
contrário”, pois isso é verdade nos tribunais mas não é verdade quando temos de
julgar politicamente alguém como José Sócrates. O julgamento político, como ele
sublinha, não está sujeito aos mesmos critérios do julgamento penal.
A clareza do
debate político exige pois que saibamos fazer distinções. A distinção que
António Costa fez logo na madrugada de sábado, quando disse que “os sentimentos
de solidariedade e amizade pessoais não devem confundir a acção política do
PS”, é justa e mantém toda a sua pertinência. Se o PS tem conseguido manter a
frieza – quase todo o PS, pois são raras e muito pontuais as excepções –, é
importante para esse mesmo PS ir mais longe. E tocar um ponto nevrálgico:
aquilo que nós, cá fora, sabíamos sobre as excentricidades e as práticas de
José Sócrates dão-nos apenas uma pequena amostra do que se sabia em muitos
círculos do PS. Sabia, mas não se comentava, mal se sussurrava.
Vou mais longe:
nos partidos estas coisas são conhecidas. Pelo menos no PSD e no CDS, para além
do PS. Ninguém ficou surpreendido quando a Justiça caiu sobre Duarte Lima –
todos os seus companheiros de bancada conheciam as suas excentricidades. Pior:
muitos ainda hoje comentam como a Justiça ainda não apanhou alguns antigos
secretários-gerais, aqueles que tratavam das contas e apareceram ricos de um
dia para o outro. Pior ainda: nos bastidores dos partidos as histórias de
autarcas, em particular de alguns dinossauros, são infindáveis. E há longínquas
férias na neve de dirigentes partidários que incomodam os seus correligionários
sem que nada aconteça para além de um comentário fugaz.
Vamos ser claros,
deixando a hipocrisia do respeitinho de lado. A dúvida que havia sobre José
Sócrates era sobre se seria algum dia apanhado. A percepção que corroía a
confiança nas instituições não era sobre se os seus direitos humanos poderiam
vir a ser negados (a sugestiva preocupação de Alberto João Jardim), mas sim
sobre se algum dia um aparelho judicial que, anos a fio, pareceu amestrado
seria capaz de apanhar alguns dos fios das muitas meadas tecidas pelo antigo
primeiro-ministro.
Escrevi-o muitas
vezes e vou repeti-lo: José Sócrates foi a pior coisa que aconteceu na
democracia portuguesa nos últimos 40 anos, e não o digo por causa da
bancarrota. Digo-o por causa da forma como exerceu o poder, esperando fazê-lo
de forma absoluta, sem contestação, sem obstáculos, sem críticos. Não os
tolerava no PS, no Governo, nos jornais, nos bancos, nas grandes empresas do
regime.
Não sou a
primeira pessoa a descrever assim José Sócrates. Nem essa descrição é recente.
Recordo apenas um texto de António Barreto, de Janeiro de 2008 (há quase sete
anos, bem antes da bancarrota), onde se escrevia que “o primeiro-ministro José Sócrates
é a mais séria ameaça contra a liberdade, contra a autonomia das iniciativas
privadas e contra a independência pessoal que Portugal conheceu nas últimas
três décadas”. Lembram-se? Eu não o esqueci.
O que distingue o
socratismo não é uma visão da forma de ser socialista, é uma visão schmittiana
de exercício do poder. Compreendo que o seu estilo de líder forte possa ter
fascinado quem cavalgou a onda, mas é bom que hoje olhem para o elixir que
provaram e que os inebriou, e percebam que era um veneno. Ou seja: acordem para
a realidade. Depois do que se passou nos últimos dias, do que já sabemos sobre
os contornos do processo e das acusações, do que imaginamos mas ainda não
sabemos, a pergunta que muitos têm de intimamente fazer é “como foi possível?”,
“como é que acreditei?”. Porque se não forem por esse caminho o seu único
refúgio acabará por ser uma qualquer teoria da conspiração como a imaginada
pelo insubstituível MRPP.
Ao contrário do
que se repetiu à exaustão, o carácter não é um detalhe em política. E se
ninguém deve apagar rostos em fotografias, à la Stalin, também é preciso de
olhar de frente para o que, no passado, recomenda que se exorcizem fantasmas,
demónios, maus hábitos e práticas não recomendáveis.
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