A tentação hollandista de António
Costa
José Manuel Fernandes
/ 1-12-2014 / 2014.
Costa continua sem concretizar
políticas e sem dizer como vai pagar o fim da austeridade, mas tal não evitará
que lhe cobremos pelas ilusões que vai criando, sobretudo quando opta por virar
à esquerda
Seis meses depois
de ter desafiado António José Seguro, António Costa foi ontem entronizado líder
do PS. Durante estes seis meses conseguiu uma proeza: nunca disse como, com que
recursos, com que dinheiro, vai fazer diferente. Esquivo, não fala do dia
seguinte, aquele que preocupa quem tem os pés na terra, elabora apenas sobre a
década seguinte. Mas isso não o tem impedido de fazer mais do que promessas –
na verdade tem vindo sobretudo a alimentar ilusões. Por este caminho está a
colocar-se numa posição “à la Hollande”, mesmo que muitos o tenham alertado
para o risco dessa estratégia.
Num congresso de
que não se esperavam novidades, a novidade foi a viragem à esquerda. Viragem à
esquerda na selecção de quem discursava e quem não discursava, deixando
Francisco Assis de fora. Viragem à esquerda na escolha dos nomes para o núcleo
duro da direcção, o secretariado. Viragem à esquerda na recusa de qualquer
entendimento com os partidos à direita do PS, o novo tabu de Costa. Viragem à
esquerda na preparação, desde já, de um confronto com o Presidente da
República, pois é esse o significado da passagem “não podemos estar 80 dias à
espera de um acordo de coligação” – se “não podemos”, então já se está a ver
que, caso o PS não tenha maioria absoluta, vai pedir para governar sozinho,
contra a vontade de Belém e as necessidades do país.
Em política os
sinais são muito importantes, e o sinal que António Costa quis dar coloca-o bem
mais longe da imagem de moderação que alimentou junto de certos sectores da
opinião pública. A escolha de Ferro Rodrigues para liderar a bancada
parlamentar afinal não aconteceu por acaso nem se destinou apenas a acalmar uma
parte das hostes. Ao chamar para a sua direcção política deputados cujo
discurso muitas vezes mal se distingue do discurso do Bloco de Esquerda, como é
o caso de Sérgio Sousa Pinto ou João Galamba, António Costa não está à procura
de equilíbrios, está sim a mostrar que quer um PS mais radical do que o PS
histórico. Um PS radicalizado que já está, de resto, a fazer estragos, como
sucedeu esta semana no Parlamento, ao romper o acordo que tinha com a actual maioria
relativo à descida gradual do IRC.
Se ficarmos
apenas pela superfície das coisas, típica de algumas análises políticas,
poderíamos interpretar esta guinada como uma manobra destinada a tentar
encurralar os partidos mais à esquerda e a impedir o crescimento eleitoral de
forças capazes de pescar nas águas turvas dos “indignados”. Costa não tem
ilusões sobre a possibilidade de governar em coligação com o PCP ou com o
Bloco, e por isso deseja reduzir esses dois partidos à expressão mínima, única
forma de poder sonhar com uma maioria absoluta (quanto ao Livre, cada dia que
passa essa formação se parece mais com uma espécie de novo MDP do PS).
Mas esta
interpretação é insuficiente e é perigosa. Insuficiente porque ilude um dos
problemas do actual PS, o problema de muitos dos seus quadros e militantes
terem hoje uma retórica radical, uma retórica que afasta o partido do
centro-esquerda e o aproxima da esquerda radical. E perigosa porque assente em
ilusões que tornam o PS de Sócrates imensamente parecido com o PSF de Hollande,
um partido cuja retórica recupera muitas das lógicas estatizantes e
anti-capitalistas, por vezes com imaginário quase utópico, com referências
discursivas que nos habituámos a encontrar apenas na esquerda radical.
Não me surpreende
que um PS na oposição radicalize o seu discurso e descreva os últimos anos de
forma apocalíptica. Está na natureza das coisas. Já me surpreende que o PS
acredite poder alimentar a ilusão de uma viragem radical de políticas, algo que
os seus quadros mais lúcidos, os que têm os pés na terra, sabem que não vai
acontecer. Aliás basta ver aquilo, muito pouco, que saiu de concreto deste
Congresso para perceber que o PS de Costa nem sequer sabe como fazer essa
viragem, muito menos como pagá-la.
Na verdade, que
tem o PS de Costa para oferecer aos portugueses? Primeiro, uma aposta na
qualificação, uma velha mezinha com que todos estarão de acordo mas que, mesmo
tendo êxito, nunca terá resultados no curto ou até no médio prazo. E
negociações com a União Europeia, na retórica para corrigir as assimetrias da
moeda única, na prática para tentar encontrar mecanismos de outros pagarem as
nossas contas. É muito, muito pouco, mas revela bem um drama que não é apenas
dos socialistas portugueses, é de toda a social-democracia europeia.
A verdade é que a
esquerda social-democrata europeia não tem hoje respostas para os problemas
europeus, sobretudo para os problemas da zona euro. Quando está na oposição,
barafusta contra a austeridade. Quando governa, é obrigada a promover as reformas
a que antes se opunha, reformas como as que estão a fazer Renzi em Itália e
Valls em França.
Ora Costa levou
para a sua direcção quadros que têm sido virulentos nas críticas não só a estes
dois primeiros-ministros socialistas, como ao Tratado Orçamental, o que sugere
que pretende uma qualquer nova via, capaz de descobrir dinheiro onde ele não
existe e restaurar a honra perdida da esquerda socialista. Mais: deixou de fora
de todos os órgãos directivos e ostracizou no Congresso um dos poucos
socialistas que tem procurado, com realismo, reflectir sobre estes dilemas –
Francisco Assis.
Este caminho que
Costa está a seguir, mesmo sem promessas de impostos sobre as fortunas ou de
descidas da idade da reforma, é o caminho que Hollande percorreu antes de
chegar ao poder. E por o ter percorrido, por ter alimentado ilusões
irrealistas, a desilusão foi o que foi e o que está a ser.
Para além de que
Costa não vai poder aguentar mais dez meses sem concretizar as suas políticas.
Houve um tempo em que o eleitorado queria ouvir promessas, mas esse tempo
passou. Hoje o eleitorado exige também saber como, com que recursos, se cumprem
as promessas. Ou se pagam as ilusões alimentadas nestes dois dias que foram,
também, de fingimento – o fingimento de que ali ninguém tinha a nada a dizer
sobre o ausente, para depois colocar a voz e o pensamento do ausente, por
interpostos figurantes, no próprio secretariado.
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