OPINIÃO
O baixo preço da nossa dignidade
JOÃO MIGUEL
TAVARES 18/11/2014 - PÚBLICO
Os vistos gold são uma lei que se sabia, à partida, ter uma gigantesca
probabilidade de atrair dinheiro sujo.
Os vistos gold
são uma imoralidade. Às vezes é importante sublinhar os factos mais básicos,
que nós tendemos a esquecer no meio das piruetas argumentativas. São uma
imoralidade digna de país de Terceiro Mundo, onde certos princípios elementares
são torpedeados porque é preciso ganhar a vida. Que essa iniciativa tenha
nascido numa área partidária que se assume como democrata-cristã, eis a triste
ironia de tudo isto. Paulo Portas precisa de estar mais atento às homilias de
domingo.
A razão é óbvia:
os vistos gold são uma escandalosa violação de um princípio de igualdade que
deveria ser sagrado, tanto para cidadãos nacionais como para estrangeiros. Nenhum
de nós admitiria que direitos fundamentais como a residência ou circulação
estivessem dependentes do tamanho da nossa conta bancária. Isso seria uma clara
inconstitucionalidade. Mas é isso que a Lei 29/2012 permite a cidadãos
estrangeiros: comprar o direito a viver em Portugal e a passear pela Europa por
500 mil euros. Ainda por cima, vendemo-nos por pouco.
Pior: três curtos
meses depois de a lei ter entrado em vigor, a 8 de Outubro de 2012, ela já
estava em saldo. A 29 de Janeiro de 2013, os requisitos originais estavam a ser
facilitados por despacho: a necessidade de criar postos de trabalho passou de
30 para 10, os investimentos imobiliários passaram a poder ser feitos em regime
de co-propriedade, e a transferência de capitais passou a ser permitida através
de quotas de empresas não cotadas em bolsa. Tudo devidamente alinhavado para
facilitar negócios e diminuir a transparência dos processos.
Assim sendo,
chamar aos vistos gold “Autorização de Residência para Actividade de
Investimento em Portugal” é apenas um nome pomposo para um processo que pisca
os dois olhos à lavagem de dinheiro e onde nunca houve verdadeira “actividade
de investimento”. É por isso que não faz sentido pretender, neste caso, separar
o domínio da justiça do domínio da política – pela simples razão de que esta é
uma lei que se sabia, à partida, ter uma gigantesca probabilidade de atrair dinheiro
sujo. Era obrigação de um legislador avisado precaver-se para que tal não
acontecesse. Como está à vista de todos, não se precaveu.
Assim sendo, a
comparação que o ministro Poiares Maduro usou para comentar este caso – “se for detectada uma alegada corrupção na
construção de um hospital, eu acho que ninguém vai sugerir que não devemos
construir hospitais” – é um absurdo, e um absurdo indigno da sua, e da nossa,
inteligência. A construção de um hospital é um bem cuja utilidade é reconhecida
por todos e que serve a todos. Os vistos gold são um bem cuja utilidade é
apenas reconhecida pelo Governo e que serve a muito poucos.
Não chega,
portanto, a espantar que a Operação Labirinto tenha dado no que deu. É certo
que a forma como a corrupção parece ter batido nos estratos mais elevados do
funcionalismo público acaba por ser surpreendente, sobretudo devido à
velocidade com que a rede se constituiu. Sem dúvida que isso é sintoma de uma
preocupante cultura de facilidade e de uma rede de influências de dimensão
assustadora. Mas estamos – e convém sublinhá-lo mais uma vez – a falar de uma
lei que se punha a jeito de tantos esquemas, que ter acabado onde acabou é
apenas a consequência natural da sua elaboração. Dizer que não há ilações
políticas a tirar daqui, é apenas atirar mais areia para os nossos agastados
olhos.
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