Perigo de perturbação da
investigação terá justificado prisão preventiva de Sócrates
MARIANA OLIVEIRA
, ROMANA BORJA-SANTOS , ANA HENRIQUES e PEDRO SALES DIAS 25/11/2014 - PÚBLICO
O debate entre Ministério Público
e a defesa dos arguidos sobre as medidas de coacção prolongou-se por mais de
três horas. Terminou às 19h46, mas o juiz Carlos Alexandre só anunciou a
decisão já depois das 22h. Advogado de Sócrates quer recorrer.
O risco de
perturbação da investigação terá sido o fundamento para a decisão do juiz
Carlos Alexandre que decretou nesta segunda-feira a prisão preventiva do
ex-primeiro-ministro José Sócrates, a mais gravosa medida de coacção existente
no nosso ordenamento jurídico. A prisão preventiva de um ex-primeiro ministro é
inédita nos 40 anos da democracia portuguesa, em que são raríssimas as
condenações de governantes ou ex-governantes.
O risco de
perturbação de inquérito é o motivo mais plausível para a decisão de Carlos
Alexandre, segundo fontes policiais que têm acompanhado o caso e advogados
penalistas, como Artur Marques, que chegam a essa conclusão por exclusões de
partes.
Embora os
arguidos tenham sido encaminhados para a cadeia anexa à Judiciária, em Lisboa,
o ex-primeiro-ministro terá ficado detido em Évora, onde existe um
estabelecimento prisional destinado a polícias e outras pessoas que exercem ou
exerceram funções nas forças e serviços de segurança e a quem mais necessitar
de “especial protecção”.
As leis penais só
admitem a prisão preventiva em três casos: quando há perigo de fuga do
suspeito, quando há risco de continuação da actividade e quando há perigo de
perturbação do inquérito. Até agora, não são conhecidos quaisquer elementos que
permitam sustentar o risco de fuga de José Sócrates, tendo o PÚBLICO noticiado
há dias que os investigadores do caso acreditavam que o ex-governante regressou
a Portugal já sabendo que seria detido à chegada.
Sócrates tinha
voo marcado para o final de quinta-feira e até já teria feito o check-in quando
decidiu não viajar e fazê-lo apenas no dia seguinte à noite. Segundo o
comunicado do Tribunal Central de Instrução Criminal, o seu motorista foi
detido às 21h38 minutos, umas horas mais cedo do que o amigo de infância de
Sócrates e empresário Carlos Santos Silva e do advogado de uma das empresas
deste, Gonçalo Trindade Ferreira.
Apenas este
último, detido depois das 2h de sexta-feira, escapou à prisão preventiva,
ficando obrigado a apresentar-se duas vezes por semana no Departamento Central
de Investigação e Acção Penal, onde está a ser conduzido este inquérito que
investiga crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
Artur Marques
considera impossível que o ex-primeiro-ministro pudesse ser sujeito à mais
gravosa medida de coacção por risco de continuação da actividade criminosa, já
que o crime mais grave, a corrupção, pressuporia que ainda se mantivesse em
funções públicas. Artur Marques sublinha que, apesar de considerar viável
apenas o risco de perturbação, tal é difícil de compreender, quando a
investigação já tem um ano e está sustentada sobretudo em prova documental. O
advogado de Fátima Felgueiras critica a “arrogância” do comunicado do juiz
Carlos Alexandre, que não faz qualquer referência ao enquadramento que serviu
de base à prisão preventiva. Realçando o impacto internacional do caso, Artur
Marques lamenta: “A imagem que vamos passar é a de que mandamos um ex-primeiro-ministro
para a cadeia e não precisamos sequer de explicar porquê”.
O advogado de
Sócrates, João Araújo, anunciou à saída do tribunal deverá recorrer da medida
de coacção aplicada ao cliente, mas tal não deverá ter nenhum efeito prático
pelo menos durante alguns meses. Isto, porque a defesa tem um mês para preparar
esse recurso e o Ministério Público tem mais um mês para contestar esse
recurso. Os juízes que analisarão o pedido, neste caso da Relação de Lisboa,
deverão decidir em um mês, um prazo que, contudo, é meramente indicativo.
O debate entre
Ministério Público e defesa sobre as medidas de coacção prolongou-se por mais
de três horas - terminou às 19h46 -, tendo Carlos Alexandre anunciado a decisão
já depois das 22h. João Perna, motorista de Sócrates, fica também em prisão
preventiva, indiciado por fraude qualificada, branqueamento de capitais e
detenção de arma proibida, tal como Santos Silva, indiciado pelos mesmos crimes
que o ex-primeiro-ministro: fraude qualificada, corrupção e branqueamento de
capitais. Trindade Ferreira, que ficou proibido de contactar com os demais
arguidos e de se ausentar do país, aguardará julgamento em liberdade, na
condição de se apresentar duas vezes por semana no Departamento Central de
Investigação e Acção Penal. Está indiciado de fraude qualificada e
branqueamento de capitais.
Em Julho deste
ano, foi decretada a excepcional complexidade do processo, o que permite
dilatar os prazos para a conclusão da investigação e alongar os limites máximos
da prisão preventiva.
Pinto Monteiro
explica almoço com Sócrates
Para o antigo
procurador-geral da República, Pinto Monteiro, um “político não pode ser
beneficiado nem prejudicado” aos olhos da Justiça. O magistrado, que esteve à
frente do Ministério Público quando Sócrates era primeiro-ministro, prefere não
comentar a decisão de Carlos Alexandre. “Até podia fazê-lo, se soubesse os
fundamentos da decisão e os factos que estão em causa no processo, mas não sei.
O homem pode ter mil e uma culpas, mas eu não o sei”, disse.
Pinto Monteiro,
que admite ter almoçado com Sócrates na última terça-feira, em Lisboa, três
dias antes da detenção do ex-primeiro-ministro, garantiu ao PÚBLICO que o
encontro serviu só para “conversar sobre livros”. “Que fique claro que eu nem
imaginava que isto ia acontecer, nem durante o encontro que tivemos isso foi de
forma alguma abordado. Foi a primeira vez que almoçamos a sós”, sublinhou o
magistrado que reconheceu, porém, que a coincidência temporal entre o almoço
com Sócrates e a semana em que foi detido é realmente “curiosa” e
“desagradável”.
Apesar de não
querer pronunciar-se sobre o caso em concreto, Pinto Monteiro, considera que
“está a haver um aproveitamento político num caso jurídico e uma promiscuidade
entre a política e a Justiça”. O antigo procurador-geral da República nega que
tenha protegido o ex-primeiro-ministro durante os anos em que esteve em
funções. Em entrevista à RTP, garante que o caso Freeport, que envolveu o nome
de José Sócrates, é uma "fraude". "Foi um processo
inventado". Sobre o caso Face Oculta, afirma que as escutas feitas às
conversas entre José Sócrates e Armando Vara foram destruídas porque "não
havia crime nenhum".
"Nunca na
vida eu era capaz de travar um caso", assegura, acrescentando que o actual
processo que envolve José Sócrates "é novo, não tem nada a ver com os
anteriores". "Nunca me senti pressionado, até porque tenho mau feitio
para pressões", acrescenta.
Em 2009, enquanto
procurador-geral da República, considerou não existirem indícios contra
Sócrates quando o procurador João Marques Vidal e um juiz de instrução criminal
de Aveiro, lhe apontaram suspeitas de crime de atentado ao Estado de Direito
por tentar controlar a comunicação social através de um plano que previa a
compra da TVI. Também então o presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
Noronha do Nascimento, ordenou a destruição das escutas, realizadas no âmbito
do processo Face Oculta, em que Sócrates tinha sido apanhado em conversa com
Armando Vara. As intercepções revelavam
indícios daquele crime, na perspectiva do procurador titular do processo e do
juiz de instrução criminal que o presidia.
Outras reacções
Teófilo Santiago,
um histórico da Polícia Judiciária e responsável por aquela investigação em
Aveiro, diz já não guardar “mágoas” sobre esse episódio. “Isso pertence ao
passado. Já lá foi. O que importa é que a Justiça esteve atenta e que funciona.
Sempre confiei na Justiça. Os responsáveis por esta investigação de agora são
profissionais de muita qualidade e Sócrates é um cidadão normal”, apontou.
Para o
constitucionalista e comentador televisivo José Fontes, têm de haver “indícios
muito fortes” de actividade criminosa para o juiz Carlos Alexandre ter
decretado a prisão preventiva de José Sócrates. “Na história recente de
Portugal é algo inédito”, observa, referindo o caso de Sarkozy, preso
preventivamente no Verão passado por suspeitas de tráfico de influências e
violação do segredo de justiça, como um dos poucos do género a nível europeu. O
que se passou em Portugal “demonstra que as instituições estão a funcionar,
independentemente de se tratar ou não de políticos que estão em causa”.
Para José Fontes,
se o processo não tiver “pernas para andar” – seguindo para julgamento, com
eventual condenação dos arguidos – isso também não significará o descrédito da
justiça: “Todos os dias há pessoas absolvidas em tribunal”. Já o PS fica em
maus lençóis, observa, numa altura em que se assistia uma reabilitação política
de Sócrates. “O seu legado estava a ressuscitar, como se vê pelas figuras que
ascenderam à primeira linha com António Costa, como Ferro Rodrigues”, o novo
líder da bancada parlamentar. A partir de agora, “de cada vez que levantarem a
voz contra o Governo, vão ouvir falar de Sócrates”. “E o Governo precisa da
existência de uma oposição forte”, faz notar o analista político, para quem os
socialistas vão ter de arranjar grande capacidade de resiliência.
“É um caso
inédito na história da nossa democracia”, refere também Conceição Gomes, do
Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Encarando o sucedido como “um
sinal de afirmação do poder judicial e de que não há intocáveis”, a
especialista sublinha que, com esta decisão, foi elevada a fasquia das
expectativas que a sociedade deposita na justiça. Os agentes do sistema
judicial viram a sua legitimidade social reforçada, ao mesmo tempo que aumenta
o fosso entre os cidadãos e os políticos, por via da descredibilização destes
últimos.
Opinião diferente
tem o professor de Direito Penal Costa Andrade: “Do ponto de vista criminal,
esta detenção não altera nada. Não é relevante”, comenta, embora reconhecendo
tratar-se de um facto inédito por estar em causa um ex-primeiro-ministro. “A
decisão de detenção não significa nada relativamente à culpa do arguido, mas
apenas que o juiz de instrução considerou que era a melhor forma de assegurar a
eficácia da investigação”. Em casos de
especial complexidade, como este, a prisão preventiva pode durar até um ano,
mas Costa Andrade refere que José Sócrates não tem de ficar preso até um
eventual julgamento: “Antes disso pode ser-lhe decretada uma medida de coacção
menos gravosa”. Se o juiz entender que deixou de haver perigo de destruição de
provas ou de continuação da actividade criminosa, por exemplo. “A comunicação
social criou uma grande bolha em torno das medidas de coacção”, resume o
penalista. “Já do ponto de vista político vai ter consequências dramáticas”,
reconhece. “Desde logo para o destino pessoal do arguido”.
Num comentário na
TVI24, a bastonária dos advogados, Elina Fraga, chamou a atenção para o facto
de ainda ser desconhecida a versão que José Sócrates e o seu advogado
apresentam dos factos. “O que é perigoso”, assinala, defendendo que o segredo
de justiça deixe de existir neste caso, uma vez que foi violado ao longo dos
últimos dias.
Já o penalista
Paulo Sá e Cunha lamentou que o comunicado de Carlos Alexandre lido pela
funcionária judicial não tenha “adiantado rigorosamente nada” em relação ao que
já se sabia sobre o caso.
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