Investigação a mega fraude nas
farmácias em risco de prescrever
Mais de dois anos após ter sido tornada pública uma mega fraude com
farmácias, apelidada ‘SOS Pharmacias’, ainda não há arguidos formalmente
acusados. Em Espanha foi descoberta uma rede idêntica.
Filomena Martins
/ 26-11-2014 / OBSERVADOR
As expectativas
eram altas quando, naquele 27 de março de 2012, 150 elementos da Polícia
Judiciária (PJ) e da Autoridade Tributária (AT) partiram para o terreno e
fizeram mais de 30 buscas a farmácias e a residências de todo o País. Os
últimos meses tinham sido de investigação minuciosa a um esquema de burla a
fornecedores, bancos e Estado avaliada em quase 100 milhões de euros. Mas, dois
anos e meio depois, só quatro dos oito suspeitos são arguidos no processo. Não
há detidos, o Ministério Público, ainda, não acusou ninguém e o processo corre
o risco de prescrever já em dezembro.
O problema para
os investigadores está na complexidade do esquema usado, um sistema piramidal.
No topo, os dois principais suspeitos: Nuno Guerreiro, empresário do setor das
farmácias, e Bruno Lourenço, igualmente empresário farmacêutico, dono do Grupo
Progresso Saúde. Ambos negaram relações comerciais, mas os investigadores
acreditam que eles são os ‘cabecilhas’ desta fraude. E a hipótese de existir
alguém acima deles não está posta de parte.
Fontes próximas
do processo revelaram ao Observador como funcionava o esquema. Tudo começava
com a aquisição de farmácias com recurso a um crédito bancário. Como a lei
impede mais do que quatro farmácias por dono, os suspeitos ocultavam a sua
verdadeira identidade de compradores e usavam os chamados ‘homens de mão’,
adquirindo-as em nome destes. Normalmente eram pessoas com quem tinham já
negócios, que aceitavam constituir empresa para comprar a farmácia com a
promessa de que mesma integraria um grupo de farmácias. E havia vantagens: as
compras eram feitas em conjunto o que permitia maior poder negocial junto dos
fornecedores, com a consequente melhoria das margens de comercialização.
Noutros casos,
estas empresas podiam também assumir a gestão de estabelecimentos farmacêuticos
em dificuldades financeiras e cujos proprietários tinham acumulado dívidas
consideráveis. O negócio também era apetecível para estes: iam para casa com
uma renda mensal ‘simpática’ ou podiam, até, manter-se ao balcão, com a
promessa de que os novos gestores assumiam o enorme défice.
Onde se lucrava
com o esquema
Com 20 a 30 farmácias num só
grupo, negociar os preços com os fornecedores de medicamentos tornava-se mais
fácil, uma vez que as encomendas eram feitas globalmente, como se de uma
central de compras se tratasse: perante as quantidades de medicamentos
comprados, os laboratórios baixavam os preços. O mesmo acontecia com os
armazéns de medicamentos, que obtinham maiores ‘margens’ de lucro. Os prazos de
pagamento também se dilatavam, até porque enquanto o esquema funcionou cada
encomenda global era feita em nome de uma farmácia (para abastecer todas elas)
podendo prolongar o tempo das dívidas sem afetar os stocks – ainda que o
esquema tenha provocado carência de medicamentos no mercado. Os bancos, por sua
vez, emprestavam olhando para a dimensão do negócio.
Os armazéns
passaram a desempenhar também um papel fulcral. Através deles, faziam-se a
maioria dos negócios. Antes e ainda agora. Cada grupo de farmácias (em Portugal
haverá 10 grandes grupos e 30 mais pequenos) detém já um armazém através do
qual passam todas as compras de medicamentos. Funciona como uma central de
compras, com preços e prazos muito mais vantajosos. No estratagema investigado,
estes armazéns terão sido uma peça essencial. Eram também adquiridos aos seus
antigos proprietários, que ficavam como sócios satisfeitos com a maior
perspetiva de negócio. Todos ganhavam, uma vez que as margens de lucro
conseguidas com a baixa de preços por parte dos laboratórios eram bem maiores.
E podiam depois passar para algo ainda mais lucrativo: a exportação.
As grandes
encomendas das farmácias, em volume superior ao das suas próprias necessidades,
passavam a ser feitas aos armazenistas e laboratórios, através destes armazéns.
O sistema em si não é ilegal, mas as autoridades suspeitam que fossem usadas
receitas falsas. Por outro lado, houve situações em que faltaram medicamentos
nas farmácias, com prejuízo para o utente.
Em seguida, os
armazéns enviavam para as farmácias uma parte da mercadoria, ficando com a
restante na sua posse. Esta era depois revendida para o estrangeiro, com altas
margens de lucro. E ao contrário do que se possa pensar, o grande mercado não
seria o africano, mas sim o europeu. O Observador apurou que há casos em que um
medicamento é comprado na Alemanha e depois reentra no circuito alemão dez
vezes mais caro. E todos lucram.
Na investigação
em causa, os cabecilhas terão percebido também que o negócio podia passar por
aí. Associavam-se aos donos desses armazéns, que usavam para comprar os
medicamentos para as suas farmácias, e deixavam as ‘sobras’ para o negócio
rentável da exportação que os primeiros proprietários geriam com enormes proveitos.
Com esta perspetiva em mãos, a maioria aceitava depois participar no referido
esquema de aquisição de farmácias.
Um esquema que os
suspeitos no processo em causa nunca admitiram. Negaram desde o início deter
mais farmácias que o permitido por lei, alegando que o que se passou foi que as
farmácias decidiram associar-se entre si, criando uma marca, para poderem fazer
estas compras grossistas sob o mesmo chapéu. Exemplo disso é o Grupo Progresso.
Na altura os arguidos disseram tratar-se de uma estrutura informal. Mas a
investigação aponta no sentido contrário. Diz que os suspeitos detinham grupos
de 20 farmácias, cuja propriedade estava em nome das referidas sociedades. E
que era assim que faziam as compras milionárias de medicamentos, arrecadando a
margem de lucro de venda ao público, bem com a comparticipação do Estado a
muitos desses remédios.
Bens de luxo
apreendidos
O esquema
estoirou quando alguns dos intervenientes que entraram no negócio perceberam
que as dívidas em seu nome não estavam a ser pagas. E até estavam a aumentar:
dívidas em medicamentos, ao banco e ao Estado. As queixas sucederam-se levando
à investigação da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ em colaboração
com a Autoridade Tributária que terão detetado que as verbas recebidas eram
desviadas para usufruto pessoal.
No processo por
fraude fiscal, associação criminosa, falsificação de documentos e burla levado
a cabo há mais de dois anos foram apreendidos imóveis de luxo avaliados em mais
de 20 milhões de euros, um iate de 1,5 milhões, 14 automóveis de gama alta
(Mercedes, Lamborghinis, Porsches, quadros valiosos e joias caras). Mas do
rasto do restante dinheiro nada se sabe.
Os ‘visados’ pela
justiça são agora os referidos ‘empresários’ que deram o nome que figura nas
empresas que compraram ou ficaram a gerir as farmácias devedoras, fazendo uma
declaração de dívida aos verdadeiros donos. À medida que as dívidas se
acumulavam, essas empresas eram extintas, com todas as responsabilidades a cair
em cima dos seus detentores formais, ou seja, os referidos ‘empresários’.
Fonte ligada ao
processo revela que a maioria nunca teve ideia dos negócios que eram feitos em
seu nome, limitando-se a assinar alguns papéis a troco de mais um negócio ou de
forma a não perder as ‘vantagens’ da inserção das ‘suas’ empresas no grupo. A
maioria não movimentava as contas bancárias abertas em nome da empresa a que
tinham dado o nome, já que todos os pagamentos eram feitos com recurso à
utilização de procurações pelo outro titular.
As outras
‘vítimas’ foram os donos de farmácias que cederam o contrato de exploração ou
gestão, e cuja maioria está em insolvência. Em vez da promessa de que as
dívidas acumuladas seriam saldadas, a verdade é que essas dívidas se
multiplicaram, tornando-se em alguns casos cinco ou seis vezes superiores,
sendo eles os responsáveis por elas, pois as empresas ‘fantasma’ declararam
falência e foram extintas, sem se perceber quem de facto as detinha. Além das
dívidas, os donos perderam todo o stock de medicamentos. Nalguns casos,
perderam computadores e e mobiliário. Ficaram com as farmácias vazias.
Segundo o Código
do Processo Penal, uma investigação pode prolongar-se por 18 meses, no máximo,
devido à sua complexidade. Neste caso, passaram já 32 meses, mas a contagem do
processo tem sido suspensa graças a várias diligências processuais levadas a
cabo. Ainda assim, o processo pode prescrever já em dezembro, deitando por
terra tudo o que já foi feito.
Contactada pelo
Observador, fonte do Ministério Público afirmou existirem dois inquéritos a
decorrer no âmbito desta operação. Mas ainda não passaram disso mesmo, de
investigações. Ninguém foi formalmente acusado. E os prazos ainda não
prescreveram porque vão sendo feitas pequenas diligências.
Chuva de
processos
Paralelamente a
este processo, outras queixas foram feitas ao Ministério Público vindas dos
bancos onde foram contraídos os créditos. Entre eles está o BES e o BCP. As
dívidas serão superiores a 50 milhões. Há também queixas de fornecedores,
armazéns e laboratórios de medicamentos. A Udifar, por exemplo, terá sido
lesada em mais de 16 milhões, e a Alliance Healthcare, em 18 milhões. Nunca
pararam de fornecer, embora impondo agora o pagamento prévio, de forma a não
ficarem sem clientes importantes num mercado que tem estado a perder margem de
lucro, perante as leis que fizeram baixar o preço dos medicamentos e impuseram
a venda de mais genéricos.
Nenhum dos
lesados conseguiu recuperar qualquer montante.
Como funcionava o esquema da mega
fraude nas farmácias
Os investigadores têm-se
defrontado com a complexidade do esquema usado na mega fraude das farmácias, um
esquema que funcionava como um sistema piramidal. Pontos essenciais.
A investigação
apontou essencialmente a Nuno Alcântara Guerreiro, farmacêutico, filho de
farmacêuticos, casado com uma mulher com dupla nacionalidade, portuguesa e
brasileira, o que o leva(va) a passar grandes temporadas no Brasil. E Bruno
Lourenço, também licenciado em farmácia, e mestre em Economia da Saúde. Além
deles, haveria mais cinco envolvidos num nível inferior, seguindo-se um lote de
‘homens de mão’, usados para comprar farmácias além do permitido pela lei
(quatro). Há suspeitas de quem haverá um cabecilha no topo, e outros
envolvidos, como advogados e técnicos de contas.
Tudo começava com
a compra de farmácias através de empresas criadas em nome de ‘homens de mão’.
Estes eram recrutados entre sócios, trabalhadores ou gestores no ramo da saúde,
nomeadamente armazéns de medicamentos. Recebiam a promessa das vantagens
empresariais resultantes da inserção destas empresas no grupo, tendo apenas de
dar o nome e ser co-titular de uma conta bancária. A maior atração era a
possibilidade de negócio oferecida, nomeadamente grandes encomendas de
medicamentos, feitos para o grupo de farmácias, que levavam os laboratórios a
baixar o preço fazendo subir as margens de lucro. Além disso, as encomendas
eram excedentárias, levando a vendas e a devoluções, que eram depois
encaminhadas para a exportação, novamente com enormes lucros.
As grandes
encomendas de medicamentos, feitas em rotação pelas empresas proprietárias das
várias farmácias, raramente eram pagas. O lucro dos medicamentos vendidos, bem
como a comparticipação paga pelo Estado para a maioria dos remédios, seria
encaminhada para uso pessoal. Além disso, os créditos bancários também nunca
foram liquidados. Há dívidas de 50 milhões à banca e cerca de 30 milhões a
fornecedores (armazéns e laboratórios). Os responsáveis por essas dívidas
passaram a ser os elos mais fracos da cadeia: os ‘testas de ferro’ que deram o
nome aos negócios e alguns donos de farmácias que, endividados, cederam a
gestão das mesmas a troco de pagamento dessas dívidas e pouco tempo depois as
receberam de volta sem stock, sem móveis e em total falência.
Sem comentários:
Enviar um comentário