segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Sócrates. Há uns mais iguais do que outros.

 Os tempos estão a mudar. Habituem-se.

Sócrates. Há uns mais iguais do que outros
Por Luís Rosa
publicado em 24 Nov 2014 in (Jornal) i online
Não é uma Justiça igual para todos que destrói a democracia - é a impunidade

Trabalhei com um jornalista, assumidamente do PS, que analisava qualquer caso judicial sobre políticos com uma lente infalível: "não há corrupção na esquerda. A direita, por defender o capital, é naturalmente corrupta". Uma visão simples que o deixava dormir mais descansado e que lhe permitia ver num processo contra uma figura de esquerda uma conspiração da direita.

Vem esta pequena história a propósito de muitas das posições dos comentadores de esquerda sobre a prisão de José Sócrates. Ouve-se e ficamos incrédulos. Parece que a elite de esquerda, num assomo aristocrático, pensa que não somos todos iguais perante a lei. Ou melhor, há uns mais iguais do que outros. Como dizem essas mentes brilhantes, não se pode tratar de forma igual o que é diferente. Quem tanto deu ao país, como José Sócrates, merece um tratamento privilegiado à altura do seu prestígio. Porquê? Porque é um ex-primeiro--ministro. Do PS, acrescento eu. Se assim é, não pode ser detido. Muito menos à noite e com um espectáculo mediático à sua volta. Não. Para ouvir Sócrates, a Justiça tem de enviar uma cartinha registada e com aviso de recepção a convocar o senhor engenheiro para ser constituído arguido e prestar esclarecimentos às 10h - não pode ser demasiado cedo para não perturbar o descanso de Sua Excelência. E proibir qualquer notícia e câmara de televisão num raio de 800 kms - que essa coisa de notícias sobre processos em segredo de Justiça só vale para Passos Coelho, Paulo Portas e, vá lá, para os capitalistas horríveis chamados Ricardo Salgado, João Rendeiro ou Oliveira Costa.

O mais extraordinário em toda a argumentação utilizada por boa parte dos comentadores de esquerda é a transformação da detenção de José Sócrates numa violação do Estado de Direito. "Se este exagero judicial acontece com um ex-primeiro- -ministro, imagine-se o que pode fazer um juiz ao cidadão comum!". Esta extraordinária inversão das prioridades (como se o juiz ou o procurador fosse mais perigoso que o arguido) pretende, não tenhamos dúvidas, desvalorizar e descredibilizar os indícios que foram recolhidos contra Sócrates.

Sejamos sérios na análise dos factos. Em primeiro lugar, o processo nasceu de uma comunicação da Caixa Geral de Depósitos que obriga à abertura de um inquérito. O processo foi aberto de forma legítima por um magistrado do Ministério Público e está a ser escrutinado, como manda a lei, por um juiz de instrução criminal. O primeiro pediu autorização para a detenção de José Sócrates e o segundo validou essa decisão depois de conhecer os indícios recolhidos. Sócrates está no centro da investigação. Se assim é, é natural que tenha sido detido juntamente com os restantes arguidos. A eficácia de uma investigação obriga inúmeras vezes a deter ao mesmo tempo todos os arguidos de forma a preservar a recolha da prova e a obter a máxima informação possível dos interrogatórios. Todos estes passos são normais e justificam-se face às suspeitas que estão em causa.

Estes são os factos que conhecemos e nenhum deles justifica as críticas que temos vindo a ouvir - a não ser que esses comentadores tenham saudades do corte e tesoura dos conselheiros Noronha de Nascimento e Pinto Monteiro que impediram outra investigação legítima a José Sócrates.

Seja qual for o político, chame- -se Passos, Portas ou Sócrates, todos devem ser escrutinados, e sem contemplações, pela Justiça. Não há PS, PSD ou CDS que lhes valha. Não é uma Justiça igual para todos que destrói a democracia - é a impunidade.


A detenção de Sócrates, como a de Ricardo Salgado ou prisão de Isaltino Morais ou as condenações de Maria de Lurdes Rodrigues, demonstram que o princípio da igualdade de todos perante a lei começa a ser aplicado em Portugal. E isso só fortalece o nosso regime democrático. Os tempos estão a mudar. Habituem-se.

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