EDITORIAL
Os dois caminhos da Justiça
DIRECÇÃO EDITORIAL
24/11/2014 - PÚBLICO
Um pilar do Estado de direito não
poder descer ao terreno da luta partidária
Temos em cima da
mesa o caso mais grave da democracia portuguesa. Um ex-primeiro-ministro foi
detido pelas autoridades judiciais no âmbito de um inquérito que investiga
suspeitas de crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção. Ainda
mal refeitos das buscas e prisões de altos quadros da Administração Pública e
da demissão de um ministro na sequência do escândalo dos vistos gold, eis que
outra vaga de detenções acontece, com José Sócrates no epicentro deste novo
caso. Mas é preciso não esquecer que não passaram ainda muitos meses desde que
o centro das atenções foi o banqueiro do regime, que acabou por sair arguido do
Campus da Justiça sob a imposição de uma caução milionária. Este tipo de
acontecimentos provoca sentimentos mistos: por um lado, a satisfação de se
perceber que o longo braço da lei não se inibe perante ninguém; por outro, a
incomodidade de se constatar que nem sempre ao frenesim da justiça correspondeu
a descoberta da verdade. Isto também acontece porque os interesses são grandes
e os mecanismos de fiscalização e escrutínio são já muitas vezes construídos
com fragilidades úteis para serem aproveitadas por quem tem a informação
necessária para as aproveitar. A facilidade com que o dinheiro se desloca e
“foge” é inversamente proporcional à capacidade da justiça para acompanhar
esses movimentos e cooperar entre si. Mas esse não é, de todo, um problema da
justiça, mas antes, um problema decisivo da política.
Estes
epifenómenos de mediatização da justiça, a que muitas vezes se seguem períodos
de refluxo e de esvaziamento dos casos que lhes dão origem, são extremamente
negativos, pois geram sentimentos de frustração e de impunidade que acabam por
fragilizar a democracia. É por isso que um processo destes não pode falhar. Deve
estar construído na base de elementos de prova sólidos, obtidos através de
meios legais inequívocos e garantidos os direitos de todos os envolvidos. Mas
temos que convir que não começou bem e não só porque, na hora da detenção, lá
estavam as câmaras televisivas para garantir o espectáculo. Repare-se que só se
soube da existência de mais três detidos, depois de ser conhecida a situação de
José Sócrates. Mas desde há cerca de um mês que circulavam informações sobre a
iminência da detenção do ex-primeiro ministro e corriam rumores dando conta de
investigações em curso. Também havia teorias da conspiração para todos os
gostos e gente de mais a dar a entender ter conhecimento de movimentações
judiciais que, à luz dos acontecimentos actuais, se percebe terem extravasado
as fronteiras das diligências em curso. É absolutamente relevante que esse tipo
de informações circulasse nos meios políticos e muitas vezes fosse apresentada
como forma de atingir ou ser atingido no terreno da luta partidária. A justiça deveria
pensar bem se quer ser parte nessa guerra ou se, pelo contrário, consegue
resistir a essa voragem exibicionista e cumprir apenas o papel fundamental que
lhe compete no Estado de direito
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