“Ao regime democrático, não
lhe basta ter eleições genuínas, vários partidos e uma imprensa livre. Precisa
também de políticos e funcionários de confiança.”
|
O Estado no seu labirinto
Rui Ramos
16/11/2014, 23:15
/ OBSERVADOR
A conversa que a
Operação Labirinto suscitou é burlesca: caiu o ministro, a coligação aguenta?,
haverá remodelação? A politiquice tem o efeito de pôr demasiada gente para além
do bem e do mal.
A rede da
“Operação Labirinto” apanhou até agora onze “altos quadros” da Administração
Pública, incluindo o director de uma polícia. Funcionários com carreiras
longas, em lugares da máxima confiança, envolvidos na segurança do Estado. É
verdade: tudo está em processo e ainda não há culpados. Mas as suspeitas, suficientemente
fortes para justificarem prisões, justificam também alguma meditação para além
do “deixem funcionar a justiça”.
A Autorização de
Residência para Investimento data de 2012. Isto quer dizer que o “esquema” já
foi montado num ambiente em que toda a gente, em público, discute e repudia a
corrupção. Mais: o “esquema” não estava localizado numa qualquer periferia da
administração pública, envolvendo um ou dois indivíduos obscuros. Terá sido,
segundo parece, arquitectado no meio do “Quem é Quem” do regime, por
personalidades conhecidas da oligarquia lisboeta de almoços, telefonemas,
históricas comuns e atenções mútuas. Conclusão, a confirmarem-se as suspeitas:
a avidez de alguns oligarcas chegou aparentemente ao ponto de estarem dispostos
a arriscar tudo – a carreira, a posição social, e essa coisa que antes era
preciosa, o bom nome –, por dinheiro.
Dizem-nos agora
algumas boas almas, como o Dr. Marques Mendes, que a operação é a prova de que
o Estado “funciona”. Pois é esse precisamente o aspecto mais inquietante de
toda a história. É que outras operações policiais, como a “Face Oculta”, já
deviam ter demonstrado que o Estado “funciona”. Mas não chegaram para levar os
“altos quadros” agora detidos a manterem-se acima de toda a suspeita. As
escutas, as prisões, o aviltamento mediático, as sentenças – nada disso os terá
feito pensar, hesitar, desistir. A tentação foi mais forte? Ou sentiam-se
protegidos?
Tanto como a
investigação judiciária, este caso merece um inquérito de outro tipo,
sociológico ou psicológico. Convém apurar eventuais responsabilidades
criminais, mas também perceber o que se passa com a casta superior do regime. Há
quem, por oposição à sociedade civil ou aos mercados, só tenha fé no Estado
como centro de racionalidade e foco de padrões morais. Que pensar, quando o
próprio Estado se torna a base dos comportamentos mafiosos? É a humanidade que
é fraca, esteja num banco ou numa repartição pública? Ou é o Estado, envolvido
em quase tudo, que gera demasiadas tentações e oportunidades? E sendo assim,
poderá um Estado destes sobreviver moralmente a não ser enquanto Estado
policial, vigiando-se constantemente a si próprio, como uma espécie de pequena
RDA? Ontem, por coincidência, constou que o governo federal nos EUA está a usar
cada vez mais agentes à paisana, isto é, espiões, para detectar fraudes e
corrupção nos serviços públicos. Mas quem vigia os agentes?
Podemos ter toda
a polícia e toda a espionagem que quisermos. Podemos fazer todo o escarcéu
sobre a corrupção. Podemos ameaçar com as mais severas punições para os
culpados. O que não podemos, de facto, é esperar que alguma máquina de vigilância
e exautoração substitua o sentido individual do dever e da honra. Onde este não
existe, não há concurso, escrutínio, vigilância ou dissuasão que “funcionem”.
Ao regime
democrático, não lhe basta ter eleições genuínas, vários partidos e uma
imprensa livre. Precisa também de políticos e funcionários de confiança. Por
isso, a conversa que este caso suscitou até agora é paroquialmente burlesca:
caiu o ministro, a coligação aguenta?, haverá remodelação governamental? A
politiquice tem o efeito de pôr demasiada gente para além do bem e do mal. O que, por vezes, significa muito aquém da inteligência.
Sem comentários:
Enviar um comentário