quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O rei tinha um sota chamado Adrião


O rei tinha um sota chamado Adrião
LUCINDA CANELAS 20/11/2014 - PÚBLICO
As reservas do novo museu dos Coches abrem uma janela sobre a corte portuguesa entre os séculos XVIII e XX. Nos cabides e gavetas há casacas e luvas, calções e cabeleiras que têm etiquetas com os nomes dos seus donos. Inauguração do museu foi adiada para o Verão.

O átrio deserto, onde só se vêem e ouvem os pássaros que fazem ninhos no tecto, entre as calhas técnicas e as grades de ferro, faz-nos pensar num espaço abandonado à beira-rio, mas o edifício projectado pelo arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, com o atelier português de Ricardo Bak Gordon, já tem “inquilinos”. Ainda não são os coches e berlindas que continuam a atrair visitantes ali bem perto, no picadeiro do Palácio de Belém que a rainha D. Amélia converteu em museu há mais de 100 anos, mas estão ligados ao seu universo feito de reis e príncipes, de músicos e torneios equestres, de cavalos e cavaleiros. São coletes e bicórnios, trombetas e espadins, selas e estribos, luvas e cabeleiras, livros de partituras e sapatos de fivela de prata.

Muitos dos fardamentos têm etiquetas da prestigiada firma inglesa Hammond & Co, em que, junto à frase “for the royal king of Portugal”, alguém escreveu à mão o nome do membro da equipagem da casa real que devia usá-lo. E é por isso que hoje sabemos que havia um sota – o homem  que monta o cavalo da esquerda da parelha da frente de um conjunto de vários cavalos que puxa um coche – chamado Adrião, e ainda um Perez ou um Baptista. Se quisermos reunir todo o seu guarda-roupa, é possível.

Nas reservas do novo Museu Nacional dos Coches, que está terminado desde o final de 2012, cabem, para já, 7700 peças e cada uma, garante a sua conservadora, conta uma história. Podem falar, exemplifica Rita Dargent, de uma rainha que gostava de cavalos ou de um príncipe que patrocinava torneios equestres, vestindo uma elegante casaca de veludo verde e botões brilhantes.

“Fazer a transferência das reservas foi como abrir uma caixa mágica”, diz esta técnica de conservação preventiva que acompanhou de perto a passagem dos milhares de objectos do velho museu para o novo, que é como quem diz, de um lado da rua para o outro. “Mesmo as pessoas do museu não conheciam a colecção na sua totalidade, porque só se mostrava uma peça daqueles armários [uns Olaio onde se arrumava o acervo no museu do picadeiro] de vez em quando, quando o rei fazia anos.”

Dargent, que desde Fevereiro de 2013 fez da oficina do novo edifício a sua casa, vê esta reinstalação como uma “segunda oportunidade” para a colecção que guardava algumas peças soltas e não inventariadas. “Às vezes, com as peças separadas por tipologias, nas prateleiras e bancadas, isto parecia uma secção de perdidos e achados.”

Quem entra hoje nas reservas, divididas por quatro salas, tem dificuldade em imaginar uma fase em que todos aqueles milhares de peças não ocupavam o lugar que hoje lhes é dado nos cabides e gavetas cuidadosamente etiquetados. Cada um destes espaços parece um closet profissional em que, garante Dargent, é mais fácil encontrar uma peça do uniforme de determinado músico da charamela real (corpo de trombetas de corte) do que saber onde guardámos um lenço ou um par de luvas no roupeiro lá de casa. “Temos muitas visitas de investigadores – o grau de especialização nestas áreas dos cavalos e dos uniformes é inacreditável – e é preciso saber onde encontrar as peças pretendidas e depressa.”

Um novo vocabulário
Para referenciar as “peças pretendidas” é preciso abrir um dicionário. Dargent, que trabalhou 19 anos nos palácios de Sintra antes de chegar aos Coches (quase metade da sua vida, já que tem 42 anos), teve de se familiarizar com todo o vocabulário, o que não parece nada fácil para quem vem de fora. Xairel, coxim, teliz, cabeçada, cepilho, bridão, gualdrapa, sota, xabraque…

Nos armários da área dos têxteis são muitas as casacas de abas vermelhas arrumadas lado a lado, a lembrar a do Soldadinho de Chumbo do conto de Hans Christian Andersen (só que aqui não há bailarinas). Os números ajudam a imaginar o dia-a-dia da pequena equipa que ali tem vindo a trabalhar desde Fevereiro de 2013 – quatro técnicos, que por vezes vão buscar reforços ao outro lado da rua, ao Instituto José de Figueiredo e ao grupo de voluntários do museu (neste momento são 11) – na limpeza, restauro, organização, etiquetagem e inventariação de milhares de peças de Lisboa e Vila Viçosa (onde os Coches têm um pólo). São 206 pares de sapatos, 33 cabeleiras, 310 chapéus de várias tipologias, 332 casacas, jaquetas, capas e sobretudos, 485 pares de meias, 131 espadins e seus acessórios, 39 telizes (pano para cobrir a sela do cavalo), 24 trombetas de prata…

Dargent vai abrindo gavetas e armários, pega nas peças delicadas para mostrar detalhes curiosos ou a perfeição dos acabamentos, no bordado de uma gola, nos remates de uma luva de pele ou de uma manga de renda miudinha. “O inventário estava já muito bem feito, mas esta casa nova deu-nos um impulso para nos aperfeiçoarmos ainda mais.”

A casaca de D. Afonso, irmão de D. Carlos, evoca o Torneio do Fio Verde, importante prova equestre; uma cabeçada de arreio com aplicações de prata lembra a ligação que D. Maria II tinha aos cavalos; o espadim de D. Pedro V traz à memória a elegância do filho de D. Maria e Fernando II, no retrato de Miguel Ângelo Lupi que está no Palácio da Ajuda; e as 24 trombetas de prata, associadas a pequenos livros de partituras, apontam para o aparato e o papel que nele tinha a música na corte de D. José. Nos uniformes, por exemplo, podem identificar-se os diferentes monogramas dos monarcas nos botões – mudava o rei, mudavam os botões.

“Todas estas peças nos ajudam a olhar para a vida da corte de outra maneira e, de certa forma, aproximam-nos da história e humanizam as figuras da casa real, que parecem sempre muito distantes”, continua Dargent, caminhando entre alguns (poucos) dos coches e malapostas que se encontram já na grande oficina do museu, por motivos vários: uns foram doados recentemente, outros estiveram em limpeza, e há ainda outro que foi emprestado a um museu parisiense. Não se sabe ainda, explica a conservadora, quando é que a colecção de coches, uma das mais importantes do mundo no seu género, fará a transição do museu original para o novo edifício. “Na zona das galerias não está ainda nada porque o espaço não está sequer climatizado”, diz Dargent, sublinhando que o transporte dos coches não inspira grandes preocupações, tirando o de Filipe II (século XVII), pela sua antiguidade e estado de conservação, e os da embaixada de D. João V ao Papa, por serem muito pesados.

Silvana Bessone, directora do museu, estima que o transporte da colecção para o edifício de Paulo Mendes da Rocha possa ser feito em 15 ou 20 dias, mas garante que o que está ainda por fazer não permite que a inauguração venha a acontecer em Maio, como anunciou o secretário de Estado da Cultura Jorge Barreto Xavier. “Terá de ficar para o Verão”, diz ao PÚBLICO. “Isto porque o timing dos concursos que estão já a decorrer não deixa que seja de outra maneira.”

Os concursos internacionais não se destinam ao transporte dos coches, mas à sinalética, à museografia e à passadeira sobre a linha do comboio, que permitirá a ligação do museu ao rio e a uma área de estacionamento. “Há que esperar pelas propostas e que as analisar e tudo isso leva muito tempo.”

Desde 2012 que o museu está à espera, praticamente vazio, o que levou a que apresentasse já problemas de infiltrações nas coberturas. Bessone desvaloriza: “Estas infiltrações são coisas pequenas, normais numa obra muito grande como esta. E nós estamos muito atentos. Para estarmos mais perto ainda, mudámos para o novo edifício alguns dos gabinetes logo em Fevereiro de 2013, quando as reservas começaram a ser transferidas. É uma casa muito grande e decidimos logo que habitá-la seria fundamental para que não se degradasse sem uso.”

Silvana Bessone sente, para já, que tem “dois museus para dirigir”, e estabelece como prioridade “abrir as portas, sem privar o público desta colecção durante muito tempo”. Quanto aos espaços a concessionar e a alugar no novo museu – lojas, auditório e área de exposições temporárias – não tem ainda novidades. “O auditório tem vindo a ser rentabilizado com eventos vários, mas de resto não sabemos nada ainda, a não ser que há muitos interessados. Até o espaço exterior, da praça, com bom tempo, pode ser aproveitado. Mas tudo isto terá, também, de ser sujeito a concurso.”


Para já, apetece dizer que as reservas dos novos Coches deviam ter visitas guiadas.

Sem comentários: