Sócrates é culpado até prova em
contrário
Por Luís Osório
publicado em 27
Nov 2014 in
(jornal) i online
Oferece-se o que as pessoas
querem, não o que as pessoas precisam. O político precisa das televisões que
precisam de notícias que precisam de audiências que precisam de novos
personagens. Presunção de inocência morreu. Deixou de fazer sentido
A presunção de
inocência nasceu com a Revolução Francesa e a sua Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão. Lá aparecia, no topo da declaração, o “Olho da Providência”,
prova de força dos ideais maçónicos. O justo ataque à ideia de culpa
judaico-cristã mobilizou a burguesia revolucionária, e foi nesse sentido que os
réus passaram a ter direitos, mesmo o de se calarem, de não responderem a
perguntas sobre matérias de facto. E em caso de dúvida absolvia-se porque
nenhuma dúvida da acusação poderia ser desfavorável ao acusado.
Nunca tanto se
falou da presunção de inocência, um equívoco. Porque há momentos na história em
que as revoluções não são anunciadas, o curso das circunstâncias impõe
naturalmente uma nova ordem. Foi o que aconteceu. A presunção de inocência
morreu.
Não afirmo
concordar. Estou ao lado dos que pensam ser este um tempo de degradação moral,
uma época amoral em que os princípios são tão voláteis como enredos de novela. Não
apenas os princípios constitucionais e políticos, mas também os económicos,
culturais e familiares. A sociedade alterou-se, vários pressupostos
degradaram-se e foram substituídos por outros pressupostos, e pouco ou nada
poderá ser feito para o contrariar – ou, pelo menos pouco poderá ser feito sem
a imposição de uma indesejada ditadura que procurasse impor uma nova ordem.
A democracia já
não é a democracia de que continuamos a falar. O “governo do povo”, a apologia
do poder político e da sua autodeterminação é uma falácia, uma história para
embalar crianças. Vivemos num sistema desregulado em que o poder está em todo o
lado e não está em lado nenhum, o mercado é sacrossanto e instalou-se sem
bilhete de volta.
O sistema
financeiro vive de emoções, como a política, a sociedade e a generalidade da
comunicação social. Oferece-se o que as pessoas querem, não aquilo de que
precisam. O político precisa das televisões que precisam de notícias que
precisam de audiências que precisam de novas personagens.
Não há presunção
de inocência porque tudo é público no momento a seguir e todos os cidadãos
podem fazer juízos de valor. Como existe uma degradação moral, todos os arguidos
são presumidos culpados, mesmo que venham a ser inocentes.
A presunção de
inocência não foi o único conceito a morrer. Também o segredo de justiça
morreu. Porque foi feito para um outro tempo, não para este. O que se criou
para proteger a investigação e o arguido é hoje um instrumento de
contra-informação. Ao não se dizer nada, abriu-se a porta a que tudo possa ser
dito e imaginado. E escancarou-se a porta ao embrutecimento do próprio
jornalismo, nomeadamente o televisivo. Uma caixa de Pandora em que nós,
jornalistas, temos especiais responsabilidades. A de ser mais equilibrados num
novo regime que nasceu da liberdade, mas que matou alguns dos mecanismos em que
ela se alicerçava.
Em nenhum momento
pensei em José Sócrates. Mas como outros antes, ou depois, não é
presumivelmente inocente. É culpado até prova em
contrário.
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