OPINIÃO
A presumível inocência de
Sócrates
JOÃO MIGUEL
TAVARES 27/11/2014 - PÚBLICO
Sócrates é culpado daquilo que o acusam. Tenho todo o direito de o escrever
– pela simples razão de que as regras do espaço público não são as regras de um
tribunal.
Da mesma forma
que os gatos têm sete vidas, eu acho excelente que um cidadão tenha sete
presunções de inocência. O problema de José Sócrates, tal como o de um gato que
falece, é que já as gastou. Sócrates foi presumível inocente na construção de
casas na Guarda, foi presumível inocente na licenciatura da Independente, foi
presumível inocente na Cova da Beira, foi presumível inocente no Freeport, foi
presumível inocente na casa da Braamcamp, foi presumível inocente no assalto ao
BCP, foi presumível inocente na tentativa de controlar a TVI, foi presumível
inocente no pequeno-almoço pago a Luís Figo. Mal começou a ser escrutinado, a
presunção de inocência tornou-se uma segunda pele.
Claro que José
Sócrates continua presumível inocente aos olhos da justiça, e assim continuará
até ao trânsito em julgado da sentença. Claro que a presunção de inocência é
pedra angular de uma democracia decente e de qualquer sistema judicial digno.
Mas eu não sou juiz, nem polícia. Sou um cidadão e um colunista. E, enquanto
tal, tenho todo o direito – repito: todo o direito – de presumir, face ao que
leio nos jornais, às minhas deduções, às minhas convicções, à minha
experiência, à minha memória e ao esgotamento de sete presunções de inocência,
que Sócrates é culpado daquilo que o acusam. E tenho todo o direito de o
escrever – pela simples razão de que as regras do espaço público não são as
regras de um tribunal.
Esta insistência
em confundir o plano mediático com o plano da justiça é absurda. Levado ao
extremo, faria com que só pudéssemos pronunciar-nos sobre a honorabilidade de
José Sócrates daqui a sete ou oito anos, quando todos os recursos tivessem sido
esgotados e a sua sentença transitado em julgado. Eu não tenho o poder de um
juiz. Não posso, felizmente, prender ninguém. E se não tenho o seu poder, é
óbvio que também não tenho as suas limitações. É por isso que a minha liberdade
de expressão é mais lata do que a do juiz Carlos Alexandre: ele fala pouco
porque pode muito; eu falo muito porque posso pouco. À justiça o que é da
justiça, aos jornais o que é dos jornais.
Existe uma
admirável coincidência entre os fazedores de opinião que estão a demonstrar uma
hiper-sensibilidade às falhas do segredo de justiça e uma notável abnegação na
defesa da presunção de inocência, e aqueles fazedores de opinião que durante
anos e anos defenderam José Sócrates contra os ataques ad hominem e o julgaram
vítima de infames conspirações. Quando vejo Miguel Sousa Tavares ou Clara
Ferreira Alves mais entretidos a discutir fugas de informação e timings de
detenção do que a possibilidade muito real de um ex-primeiro-ministro ser
corrupto, eu sei que eles estão menos a defender Sócrates do que a
defenderem-se a si próprios, e àquilo que andaram a escrever ao longo dos anos.
Ainda ontem, no
DN, Ferreira Fernandes dizia o seguinte: “Em 2009, escrevi: ‘Prendam-no ou
calem-se.’ A turba, com muita gana mas sem prova, chegou primeiro do que a
opinião pública – e depois?” E depois, caro Ferreira Fernandes, é que ali entre
2007 e 2011 boa parte da opinião pública preferiu fechar os olhos ao elefante
no meio da sala. Se não havia provas, havia infindáveis indícios – e boa parte
da opinião pública preferiu engolir as teses surreais de Sócrates, mantendo-se
impassível diante do sufoco evidente do poder judicial às mãos do poder
político. Viram, ouviram e leram. Mas preferiram ignorar. É uma escolha, claro.
Só que convém assumi-la, até para que ninguém a esqueça.
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