segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Cinema Londres: o fim da aventura / OBSERVADOR


“Ficamos todos um bocadinho mais pobres. Uma loja não traz valor acrescentado. Aquilo que nós propúnhamos podia ajudar [o espaço] a ser um aglutinador do bairro”, refere.
Carlos Moura-Carvalho
“Temos pena que desapareça mais um pólo cultural e que as entidades públicas não olhem para isto como uma oportunidade de regeneração da cidade”, comenta Moura-Carvalho.
“Quando a administração de insolvência [da Socorama] viu que aquilo não tinha saída resolveu fazer a venda de todos aqueles equipamentos, desde a parte de cinema à parte de restauração. Quem retirou aquilo partiu tudo. Não foi tirar, foi partir, partiu paredes, uma coisa inacreditável, só quem viu… Cadeiras arrancadas, o soalho saltou, as próprias cablagens elétricas foram puxadas, tudo caiu, estava tudo no meio do chão”

Cinema Londres: o fim da aventura
9/11/2014 / João Pedro Pincha / OBSERVADOR

Foi discoteca, salão de bowling e refúgio de cinéfilos. O cinema Londres fechou definitivamente uma página da sua história e vai tornar-se, em breve, uma loja de produtos chineses. E não só.
O antigo cinema Londres vai mesmo ser uma loja chinesa. Depois de nove meses paradas, as obras no recinto recomeçaram nos últimos dias e os proprietários do edifício esperam poder ter o novo espaço comercial aberto algures nos próximos três meses. Neste momento só falta a Câmara Municipal de Lisboa autorizar a mudança de uso do antigo cinema para que o processo fique completo.

Segundo António Serralha Ferreira, co-proprietário do edifício onde se situa o Londres e representante dos restantes proprietários, as obras “não carecem de licença camarária”, por serem no interior do espaço, mas, ainda assim, será entregue um projeto dos trabalhos à autarquia. “Quer os chineses quer eu temos a nítida perspetiva de que, se isto não estiver rigorosamente tudo bem, aqueles senhores ressabiados irão pegar”, comenta.

Os “senhores ressabiados” a que Serralha Ferreira se refere são os representantes do Movimento de Comerciantes da Avenida Guerra Junqueiro, Praça de Londres e Avenida de Roma, que durante os últimos meses lutaram para que o antigo cinema, encerrado ao público em fevereiro de 2013, se mantivesse um espaço cultural. “Fico triste”. É assim que Carlos Moura-Carvalho, daquele movimento, reage à anunciada transformação do espaço em loja chinesa.

“Ficamos todos um bocadinho mais pobres. Uma loja não traz valor acrescentado. Aquilo que nós propúnhamos podia ajudar [o espaço] a ser um aglutinador do bairro”, refere.

A vida era bela

A chegada dos empresários chineses é o fim da linha para o Londres, o fim de uma aventura cinematográfica iniciada em janeiro de 1972, com a exibição do filme Morrer de Amar, de André Cayatte. O filme não fez grande história, mas inaugurou aquela que durante muitos anos foi considerada a “mais luxuosa sala-estúdio de Lisboa”, com as famosas cadeiras que deslizavam para baixo onde, ao longo dos anos, milhares de espetadores viram títulos como Vivre sa Vie, Hiroxima, meu Amor, Fitzcarraldo, Paris Texas e, mais recentemente, êxitos de bilheteira como A Vida é Bela e Titanic, entre tantos outros.

“O meu falecido tio comprou o prédio em 1948″, lembra António Serralha Ferreira, a cujas mãos o edifício chegou em 1985, na sequência da morte daquele familiar. Na altura, a fração A já era ocupada pelo cinema. Mas podia nunca ter existido Londres. O espaço fora já uma discoteca e um salão de bowling e só por acaso não se transformou num supermercado.

“Quando aquilo deixou de ser [um salão de] bowling, ficou devoluto e o meu tio pediu-me para ver se havia hipótese de arranjar alguém, uma entidade do Estado, nomeadamente a obra social do Ministério das Corporações, que tinha um supermercado [que ocupasse o espaço]. Essa hipótese pôs-se, chegou-se a estudar, mas entretanto apareceu a Socorama”.

A Socorama, distribuidora de cinema ligada à família Castello Lopes, ocupou o Londres até fevereiro de 2013. Nessa altura, a empresa pediu insolvência e viu-se obrigada a encerrar essa e outras salas por falta de pagamento da conta da luz. Apesar de, à data, o encerramento ter sido dado como meramente provisório, a verdade é que a histórica sala não voltou a abrir as portas e as tão famosas cadeiras ficaram paradas definitivamente, à espera de melhores dias.

Uma questão de vida ou de morte

Os dias melhores nunca chegaram. E, quando António Serralha Ferreira recebeu a confirmação definitiva de que o Londres já não exibiria mais filmes da Castello Lopes, começou a movimentar-se. “Eu tentei junto de vários empresários do ramo cinematográfico – que fizeram algumas visitas – e do ramo cultural – que fizeram algumas visitas -, que aquilo continuasse da mesma forma. Tanto assim é que eu pedi ao João Paulo Abreu, administrador da Socorama, que não mexessem em nada, deixassem estar tudo tal e qual, equipamentos, salas montadas, cadeiras, projetores, tudo, para ver se conseguia encontrar alguém que os substituísse.”

Ao mesmo tempo, o Movimento de Comerciantes da Avenida Guerra Junqueiro, Praça de Londres e Avenida de Roma tentava também encontrar uma solução que permitisse viabilizar a manutenção do Londres como pólo cultural, onde se combinaria uma sala de cinema, algumas lojas e restauração. “Arranjámos parceiros para um terço daquilo que achávamos ser o valor das obras” necessárias, explica Carlos Moura-Carvalho, que encetou contactos com a câmara e a junta de freguesia do Areeiro para que o dinheiro que faltava viesse dessas fontes. Nunca obtiveram resposta.

“Temos pena que desapareça mais um pólo cultural e que as entidades públicas não olhem para isto como uma oportunidade de regeneração da cidade”, comenta Moura-Carvalho.

Falhadas todas as hipóteses de manter um cinema em funcionamento no local, “recebi vários contactos de uma empresa chinesa” para o arrendamento do Londres, refere Serralha Ferreira – e isso veio a oficializar-se em dezembro de 2013.

“Quando a administração de insolvência [da Socorama] viu que aquilo não tinha saída resolveu fazer a venda de todos aqueles equipamentos, desde a parte de cinema à parte de restauração. Quem retirou aquilo partiu tudo. Não foi tirar, foi partir, partiu paredes, uma coisa inacreditável, só quem viu… Cadeiras arrancadas, o soalho saltou, as próprias cablagens elétricas foram puxadas, tudo caiu, estava tudo no meio do chão”

É aqui que as versões entre movimento de comerciantes e os proprietários divergem. Após a assinatura do contrato com os empresários chineses, a 7 de dezembro de 2013, estes promoveram imediatamente obras no espaço. António Serralha diz que os trabalhos eram necessários dada a destruição causada pela retirada de equipamento. Carlos Moura-Carvalho rejeita que a responsabilidade seja toda da administração de insolvência da Socorama. “Não foi só a massa falida a destruir, foram também as obras dos chineses”, que, aliás, “queriam que o entulho fosse a base” do nivelamento do chão do cinema. O co-proprietário desvaloriza as críticas. Isso, diz, foi “mais uma guerra levantada por essa famigerada associação de comerciantes”.
Voando sobre um ninho de cucos

“Se eu preferia um uso diferente? Preferia, mas não era possível. A ideia era boa, mas pura e simplesmente inexequível.” António Serralha Ferreira é peremptório quando fala no projeto proposto pelo movimento de comerciantes, que chegou a contar com o apoio de Rui Nabeiro, fundador da Delta Cafés. Só em dezembro de 2013, quando o negócio entre os proprietários do Londres e os chineses estava já consumado, é que houve a primeira reunião entre Serralha e Moura-Carvalho, entre outros negociantes. Desse contacto saiu desilusão para ambas as partes.

“Ali não estava nenhum interesse cultural, ali estava um interesse totalmente comercial e financeiro, nada mais do que isso. Eles entendem que uma loja de chineses ali lhes vai fazer sombra em diversos aspetos. É a minha impressão de tudo aquilo”, acusa António Ferreira.

“Fomos sempre procurando mantê-los [aos proprietários] no processo. Nunca quiseram [dialogar]“, acusa, por seu turno, Carlos Moura-Carvalho.

Assinado o novo contrato de arrendamento, foi pedido à Secretaria de Estado da Cultura que, tal como está na lei, autorizasse a afetação do recinto a outros usos que não os cinematográficos. Essa desafetação chegou apenas em junho deste ano, mas já em maio o Expresso noticiara que essa seria a decisão de Jorge Barreto Xavier. Entretanto, as obras iniciadas foram suspensas e o responsável governamental reuniu-se com o movimento de comerciantes para avaliar a viabilidade do seu projeto. “Falámos com ele e correu muito bem”, lembra Moura-Carvalho. “Não fomos para a posição cómoda à espera do dinheiro do Estado. Apresentámos um plano financeiro sólido”, afirma. Também com o adido cultural da Embaixada da China chegou a haver um encontro. “Mostrou-se acessível, mas não queria polémicas”.

Barreto Xavier recebeu os comerciantes, mas não os proprietários, que apenas foram ouvidos por dois assessores do secretário de Estado numa reunião que juntou todas as partes à mesma mesa. “Senti-me mal”, admite António Ferreira, que ficou “com a pior impressão” do responsável do Governo.

Adeus, Cinema Paraíso

Eis-nos chegados ao momento presente. Desde que o Londres fechou passaram 21 meses e ninguém parece ter realmente ganho nada com tudo o que aconteceu. O movimento de comerciantes não conseguiu ver implementado o seu projeto. Os chineses não conseguiram ainda abrir a sua loja, onde, dizem, haverá móveis de Paços de Ferreira e atoalhados de Torres Novas à venda. António Serralha Ferreira não recebeu um único euro em rendas. O prejuízo já será superior a 200 mil euros.

Quem terá perdido mais, contudo, foram os espetadores. “Era frequentador do cinema, fui lá muita vez. Muito frequentador. Foi uma surpresa muito desagradável”, garante o proprietário, que tinha dois lugares reservados em todas as estreias. “Tive pena, pois tive, como tive pena que fechasse o King”. Ele e muitas pessoas, que durante anos rumaram à Avenida de Roma e arredores em busca do cinema alternativo que ofereciam o Londres, o King, o Star, o Quarteto, o Roma… Agora, na zona, não há qualquer cinema de rua.


E, como é unanimemente apontado por quantos se envolveram na ‘questão Londres’, a criação da loja chinesa é um mal menor. Tal como no fim do Cinema Paraíso, deste filme não se sai sem um sabor agridoce na boca.

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