Cinema Londres: o fim da aventura
9/11/2014 / João
Pedro Pincha / OBSERVADOR
Foi discoteca,
salão de bowling e refúgio de cinéfilos. O cinema Londres fechou
definitivamente uma página da sua história e vai tornar-se, em breve, uma loja
de produtos chineses. E não só.
O antigo cinema
Londres vai mesmo ser uma loja chinesa. Depois de nove meses paradas, as obras
no recinto recomeçaram nos últimos dias e os proprietários do edifício esperam
poder ter o novo espaço comercial aberto algures nos próximos três meses. Neste
momento só falta a Câmara Municipal de Lisboa autorizar a mudança de uso do
antigo cinema para que o processo fique completo.
Segundo António
Serralha Ferreira, co-proprietário do edifício onde se situa o Londres e
representante dos restantes proprietários, as obras “não carecem de licença
camarária”, por serem no interior do espaço, mas, ainda assim, será entregue um
projeto dos trabalhos à autarquia. “Quer os chineses quer eu temos a nítida
perspetiva de que, se isto não estiver rigorosamente tudo bem, aqueles senhores
ressabiados irão pegar”, comenta.
Os “senhores
ressabiados” a que Serralha Ferreira se refere são os representantes do
Movimento de Comerciantes da Avenida Guerra Junqueiro, Praça de Londres e
Avenida de Roma, que durante os últimos meses lutaram para que o antigo cinema,
encerrado ao público em fevereiro de 2013, se mantivesse um espaço cultural.
“Fico triste”. É assim que Carlos Moura-Carvalho, daquele movimento, reage à
anunciada transformação do espaço em loja chinesa.
“Ficamos todos um bocadinho
mais pobres. Uma loja não traz valor acrescentado. Aquilo que nós propúnhamos
podia ajudar [o espaço] a ser um aglutinador do bairro”, refere.
A vida era bela
A chegada dos
empresários chineses é o fim da linha para o Londres, o fim de uma aventura
cinematográfica iniciada em janeiro de 1972, com a exibição do filme Morrer de
Amar, de André Cayatte. O filme não fez grande história, mas inaugurou aquela
que durante muitos anos foi considerada a “mais luxuosa sala-estúdio de
Lisboa”, com as famosas cadeiras que deslizavam para baixo onde, ao longo dos
anos, milhares de espetadores viram títulos como Vivre sa Vie, Hiroxima, meu
Amor, Fitzcarraldo, Paris Texas e, mais recentemente, êxitos de bilheteira como
A Vida é Bela e Titanic, entre tantos outros.
“O meu falecido
tio comprou o prédio em 1948″, lembra António Serralha Ferreira, a cujas mãos o
edifício chegou em 1985, na sequência da morte daquele familiar. Na altura, a
fração A já era ocupada pelo cinema. Mas podia nunca ter existido Londres. O
espaço fora já uma discoteca e um salão de bowling e só por acaso não se
transformou num supermercado.
“Quando aquilo deixou de ser
[um salão de] bowling, ficou devoluto e o meu tio pediu-me para ver se havia
hipótese de arranjar alguém, uma entidade do Estado, nomeadamente a obra social
do Ministério das Corporações, que tinha um supermercado [que ocupasse o
espaço]. Essa hipótese pôs-se, chegou-se a estudar, mas entretanto apareceu a
Socorama”.
A Socorama,
distribuidora de cinema ligada à família Castello Lopes, ocupou o Londres até
fevereiro de 2013. Nessa altura, a empresa pediu insolvência e viu-se obrigada
a encerrar essa e outras salas por falta de pagamento da conta da luz. Apesar
de, à data, o encerramento ter sido dado como meramente provisório, a verdade é
que a histórica sala não voltou a abrir as portas e as tão famosas cadeiras
ficaram paradas definitivamente, à espera de melhores dias.
Uma questão de vida ou de morte
Os dias melhores
nunca chegaram. E, quando António Serralha Ferreira recebeu a confirmação
definitiva de que o Londres já não exibiria mais filmes da Castello Lopes,
começou a movimentar-se. “Eu tentei junto de vários empresários do ramo
cinematográfico – que fizeram algumas visitas – e do ramo cultural – que
fizeram algumas visitas -, que aquilo continuasse da mesma forma. Tanto assim é
que eu pedi ao João Paulo Abreu, administrador da Socorama, que não mexessem em
nada, deixassem estar tudo tal e qual, equipamentos, salas montadas, cadeiras,
projetores, tudo, para ver se conseguia encontrar alguém que os substituísse.”
Ao mesmo tempo, o
Movimento de Comerciantes da Avenida Guerra Junqueiro, Praça de Londres e
Avenida de Roma tentava também encontrar uma solução que permitisse viabilizar
a manutenção do Londres como pólo cultural, onde se combinaria uma sala de
cinema, algumas lojas e restauração. “Arranjámos parceiros para um terço
daquilo que achávamos ser o valor das obras” necessárias, explica Carlos Moura-Carvalho,
que encetou contactos com a câmara e a junta de freguesia do Areeiro para que o
dinheiro que faltava viesse dessas fontes. Nunca obtiveram resposta.
“Temos pena que desapareça
mais um pólo cultural e que as entidades públicas não olhem para isto como uma
oportunidade de regeneração da cidade”, comenta Moura-Carvalho.
Falhadas todas as
hipóteses de manter um cinema em funcionamento no local, “recebi vários
contactos de uma empresa chinesa” para o arrendamento do Londres, refere
Serralha Ferreira – e isso veio a oficializar-se em dezembro de 2013.
“Quando a administração de
insolvência [da Socorama] viu que aquilo não tinha saída resolveu fazer a venda
de todos aqueles equipamentos, desde a parte de cinema à parte de restauração.
Quem retirou aquilo partiu tudo. Não foi tirar, foi partir, partiu paredes, uma
coisa inacreditável, só quem viu… Cadeiras arrancadas, o soalho saltou, as
próprias cablagens elétricas foram puxadas, tudo caiu, estava tudo no meio do
chão”
É aqui que as
versões entre movimento de comerciantes e os proprietários divergem. Após a
assinatura do contrato com os empresários chineses, a 7 de dezembro de 2013,
estes promoveram imediatamente obras no espaço. António Serralha diz que os
trabalhos eram necessários dada a destruição causada pela retirada de
equipamento. Carlos Moura-Carvalho rejeita que a responsabilidade seja toda da
administração de insolvência da Socorama. “Não foi só a massa falida a
destruir, foram também as obras dos chineses”, que, aliás, “queriam que o
entulho fosse a base” do nivelamento do chão do cinema. O co-proprietário
desvaloriza as críticas. Isso, diz, foi “mais uma guerra levantada por essa
famigerada associação de comerciantes”.
Voando sobre um
ninho de cucos
“Se eu preferia
um uso diferente? Preferia, mas não era possível. A ideia era boa, mas pura e
simplesmente inexequível.” António Serralha Ferreira é peremptório quando fala
no projeto proposto pelo movimento de comerciantes, que chegou a contar com o
apoio de Rui Nabeiro, fundador da Delta Cafés. Só em dezembro de 2013, quando o
negócio entre os proprietários do Londres e os chineses estava já consumado, é
que houve a primeira reunião entre Serralha e Moura-Carvalho, entre outros
negociantes. Desse contacto saiu desilusão para ambas as partes.
“Ali não estava
nenhum interesse cultural, ali estava um interesse totalmente comercial e
financeiro, nada mais do que isso. Eles entendem que uma loja de chineses ali
lhes vai fazer sombra em diversos aspetos. É a minha impressão de tudo aquilo”,
acusa António Ferreira.
“Fomos sempre
procurando mantê-los [aos proprietários] no processo. Nunca quiseram
[dialogar]“, acusa, por seu turno, Carlos Moura-Carvalho.
Assinado o novo
contrato de arrendamento, foi pedido à Secretaria de Estado da Cultura que, tal
como está na lei, autorizasse a afetação do recinto a outros usos que não os
cinematográficos. Essa desafetação chegou apenas em junho deste ano, mas já em
maio o Expresso noticiara que essa seria a decisão de Jorge Barreto Xavier.
Entretanto, as obras iniciadas foram suspensas e o responsável governamental
reuniu-se com o movimento de comerciantes para avaliar a viabilidade do seu
projeto. “Falámos com ele e correu muito bem”, lembra Moura-Carvalho. “Não
fomos para a posição cómoda à espera do dinheiro do Estado. Apresentámos um
plano financeiro sólido”, afirma. Também com o adido cultural da Embaixada da
China chegou a haver um encontro. “Mostrou-se acessível, mas não queria
polémicas”.
Barreto Xavier
recebeu os comerciantes, mas não os proprietários, que apenas foram ouvidos por
dois assessores do secretário de Estado numa reunião que juntou todas as partes
à mesma mesa. “Senti-me mal”, admite António Ferreira, que ficou “com a pior
impressão” do responsável do Governo.
Adeus, Cinema Paraíso
Eis-nos chegados
ao momento presente. Desde que o Londres fechou passaram 21 meses e ninguém
parece ter realmente ganho nada com tudo o que aconteceu. O movimento de
comerciantes não conseguiu ver implementado o seu projeto. Os chineses não
conseguiram ainda abrir a sua loja, onde, dizem, haverá móveis de Paços de
Ferreira e atoalhados de Torres Novas à venda. António Serralha Ferreira não
recebeu um único euro em rendas. O prejuízo já será superior a 200 mil euros.
Quem terá perdido
mais, contudo, foram os espetadores. “Era frequentador do cinema, fui lá muita
vez. Muito frequentador. Foi uma surpresa muito desagradável”, garante o
proprietário, que tinha dois lugares reservados em todas as estreias. “Tive
pena, pois tive, como tive pena que fechasse o King”. Ele e muitas pessoas, que
durante anos rumaram à Avenida de Roma e arredores em busca do cinema
alternativo que ofereciam o Londres, o King, o Star, o Quarteto, o Roma… Agora,
na zona, não há qualquer cinema de rua.
E, como é
unanimemente apontado por quantos se envolveram na ‘questão Londres’, a criação
da loja chinesa é um mal menor. Tal como no fim do Cinema Paraíso, deste filme
não se sai sem um sabor agridoce na boca.
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