domingo, 20 de julho de 2014

Um mistério, por Vasco Pulido Valente.



Um mistério
Vasco Pulido Valente / 20-7-2014 / PÚBLICO

A aristocracia liberal não foi um substituto decente para a aristocracia histórica, que lutara por D. Miguel. Quase toda de origem militar, passou quinze anos a organizar “revoluções”, golpes de Estado e pronunciamentos. Era geralmente pobre, vivia mal e, fora um ou outro caso, não se distinguia nem pela educação, nem pela inteligência. Claro que havia meia dúzia de excepções entre a gente que se atropelava por um lugar no Governo ou por um comando de prestígio. Mas vinha quase sempre de trás: Terceira, Palmela, Fronteira e o irmão, o conde de Vila Real e mais meia dúzia. Um pequeno grupo que não chegava para “civilizar” a corte ou exercer qualquer influência sobre uma sociedade brutal e beata; e que ele mesmo se sentia deslocado nos novos tempos de agitação e mudança.
À medida que o regime da Carta se estabilizou (principalmente depois de 1851) apareceu uma aristocracia de “conselheiros”, com títulos mais do que recentes, que se aguentou até à República. O ódio visceral que Eça lhe tinha, aliás partilhado por Portugal inteiro, acabou por se tornar um lugarcomum da visão ortodoxa do século XIX. Os representantes por excelência desta pouco saborosa raça não deixaram nada que merecesse ficar na memória dos portugueses. E a parte principal acabou em escândalos financeiros, desde a “falência” do marquês da Foz, que financiava o Partido Progressista, aos sucessivos roubos do Crédito Predial, que envolviam os chefes dos dois partidos do “rotativismo” e lhes criaram uma tristíssima reputação. O que é de certa maneira injusto. O liberalismo roubava, mas roubava pouco.


Na República, apesar da retórica oficial, ainda se roubou mais. E, durante a Ditadura, se, como é óbvio, Salazar não roubava, deixava roubar. De qualquer maneira, nenhuma das centenas de criaturas que nos pastorearam do século XVIII ao século XXI serviu de exemplo ou educou o gosto da classe média ou da alta burguesia indígena. É este o mistério de Ricardo Salgado. Segundo consta, andava de Mercedes, passava as férias na Comporta com Marcelo Rebelo de Sousa, talvez fosse de quando em quando a Nova Iorque e a Paris, mas não se lhe conhece a menor extravagância ou o menor vício. Os vinte anos de glória do “Dono disto tudo” são anos de funcionário, que se consolava com a ideia imaginária do poder. Para quê, então, os riscos sem nome que tomou? Para quê a arrogância vácua que ele pessoalmente gostava de exibir? Suspeito porque, no fundo, ele não tinha mais nada na cabeça.

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