Caiu um banqueiro. Cairá o
sistema de poder que ele representava?
José Manuel
Fernandes / 19-7-2014 / OBSERVADOR
Ninguém é "dono disto tudo" se não alimentar o concubinato com o
poder político. Isso é mais, muito mais, do que ser apenas o "banqueiro de
todos os regimes", pois é todo um sistema de poder.
Um dos paradoxos
quando olhamos para os activos do Grupo Espírito Santo é a desproporção entre
as suas propriedades palpáveis e a fama do “dono disto tudo”. Para além do BES,
e do que o BES tem na PT, por exemplo, a famosa RioForte tem em Portugal apenas
a Herdade da Comporta, os negócios na área da Saúde, a cadeia de hóteis Tivoli
e mais uns investimentos imobiliários e ainda a Espirito Santo Viagens. Bem sei
que há mais investimentos no Brasil e Angola e que as ramificações do Banco
ainda chegam a mais países, mas quando olhamos para o portfolio da holding que
agrupa as participações não financeiras da família Espírito Santo surge-nos a
pergunta inevitável: mas como foi que com isto se acumulou uma dívida estimada
em sete mil milhões de euros? E de onde é que vinha afinal o poder do “dono
disto tudo”?
Esta pergunta é
crucial pois ainda há três ou quatro anos Ricardo Salgado era visto como o
homem mais poderoso de Portugal. Mais poderoso do que o primeiro-ministro.
Muito mais poderoso do que os empresários que aparecem na lista dos mais ricos.
Muitíssimo mais poderoso do que os presidentes dos bancos concorrentes.
Para
compreendermos o enorme estoiro do grupo e o maremoto de consequências que aí
vem temos de tentar perceber como é que Ricardo Salgado chegou tão alto. E como
caiu.
Uma parte da
história do grupo nas últimas duas ou três décadas não é substancialmente
diferente da história de muitas outras ascensões vertiginosas em Portugal e,
sobretudo, no estrangeiro. Algumas dessas histórias acabaram muito mal quando a
crise financeira se declarou, e a nossa história do GES só não acabou na mesma
altura e da mesma maneira porque o poder dos Espírito Santo não era só
financeiro – era também político e cultural.
Comecemos pela
forma como o grupo se organizava, com participações em cascata, uma estratégia
muito habitual em quem não tem capital e quer dominar grupos muito grandes. Muito
esquematicamente, funciona assim: eu tenho, por hipótese, 100% de uma holding
familiar, que depois tem uma minoria de controle de 25% numa holding maior, a
qual por sua vez tem outra minoria de controle de 40% (por exemplo) noutra
holding mais abaixo que por sua vez tem 25% de um banco e, com isso, direito a
escolher o seu presidente por acordo com outros accionistas. Fazendo as contas,
isto significa que posso chegar a controlar um banco que vale, por hipótese,
mil milhões, a partir de um capital inicial de apenas 25 milhões. É a este
esquema de participações sucessivas que se chama “participações em cascata”. Não
estou a dizer que foi exactamente assim que se organizaram as participações do
grupo Espírito Santo, mas o retrato real não há-de ser muito diferente.
Toda cascata de
holdings estava, ao mesmo tempo, muito alavancada em dívida. Muitos dos
negócios não financeiros em que entretanto a família se foi envolvendo não
geravam dinheiro suficiente para controlar de forma equilibrada a dívida, pelo
que se ia fazendo mais dívida para suportar a dívida existente. Foi assim que
muita empresa estoirou na crise financeira: se não fosse conhecido que o GES
tem actividades em vários sectores e em vários países, a queda do grupo
assemelhar-se-ia ao estouro de um “esquema de Ponzi”, ou em linguagem mais
portuguesa e mais popular, de um “esquema Dona Branca”. É que esta forma de
funcionamento, com imprudência e acumulação de negócios ruinosos, sempre com
base na crença de que um dia os resultados chegarão e se conseguirá amortizar
as dívidas, só funciona se houver entrada permanente de dinheiro fresco capaz
de suportar os encargos crescentes.
No caso do Grupo
Espírito Santo, a única forma de manter de pé este castelo de cartas foi
conseguir alguns negócios de resultados garantidos. À cabeça de todos esses
negócios esteve sempre a PT, mas é bom não esquecer também a EDP. Para o
conseguir Ricardo Salgado tinha de estar nas boas graças do governos – mais:
tinha de ser ao mesmo tempo cúmplice e mandante dos governos. Até porque
vivíamos o tempo das “golden share”. Ou seja, é preciso ser mais do que
“banqueiro de todos os regimes” para ter chegado a gozar das facilidades de
acesso ao poder que Ricardo Salgado tinha, e houve períodos em que isso
aconteceu.
A relação de BES
e de Ricardo Salgado com a PT, com os governos que também mandaram na PT e com
os gestores que foram passando pela PT, é o melhor exemplo de algo que era
muito mais do que o respeito do banqueiro pelo regime – era um concubinato em
que uns favores pagavam outros favores, em que uma mão limpava a outra e, no
fim do dia, tudo acabaria, caso Ricardo Salgado fosse um pouco mais plebeu, com
uma palmada nas costas e um “porreiro, pá”.
O pináculo do
poder do “dono disto tudo” coincidiu com o pináculo do poder do
primeiro-ministro que levou mais longe o despudor neste tipo de relações: José
Sócrates. Da tomada de poder no BCP à tentativa de compra da TVI passando pela
OPA da Sonae à PT, Sócrates ajudou Salgado e Salgado ajudou Sócrates. Aqui e
nas PPP ou nos negócios da energia. Ou na recíproca ajuda do BES ao Estado
quando começou o aperto da dívida.
Esta teia de
poder tinha muitas ramificações, nomeadamente na comunicação social. Aqui não
era preciso sequer ter participações no capital, se bem que as houvesse por
empresas amigas, como a Ongoing. Bastava saber que as empresas estavam todas
aflitas e que anunciantes como a PT ou a EDP, para não falar do próprio BES,
sempre pesaram muito nas receitas de jornais, rádios e televisões. Perdê-los
podia ser a falência a prazo, e isso sabia-se em muitas redações.
Quando a crise
financeira destapou o sobre-endividamento de todo o grupo, a solução foi a fuga
em frente, com apoio político de um governo que estão se endividava até à
estratosfera. A ruptura só chegou, nume primeira fase, com o episódio da venda
da Vivo, e depois com as descidas do rating da república que deixaram os bancos
encostados à parede.
Os últimos anos
foram de fuga em frente e de negação da realidade. São os anos em que Ricardo
Salgado deixa de ter cúmplices em São Bento e no Banco de Portugal. Os anos em
que recusa a ajuda a que recorreram os outros bancos porque sabia que iria ter
alguém a olhar para as suas contas por detrás do seu ombro, porventura até com
secretária no lendário open space da administração no 15º andar da sede da
avenida da Liberdade. Os anos que conduziriam à aflição dos últimos meses,
quando para alimentar a pilha de dívida foi necessário começar a emitir papel
comercial, a prazos muito curtos.
Houve um tempo em
que os investidores comentavam que em Portugal ainda era mais difícil entrar do
que em Angola: tudo tinha de passar por Sócrates e Salgado, como se esta
aliança entre o poder político e o poder financeiro tivesse constituído uma
espécie de medieval “direito de pernada” sobre a economia portuguesa. Mas
engana-se quem pensar que as cumplicidades começaram e acabaram nesse tempo. Não
é assim e todos nos lembramos como em alguns dos mais polémicos e discutidos
negócios das duas últimas décadas apareceu demasiadas vezes alguma empresa do
universo Espírito Santo. Estou a lembrar-me, por exemplo, da Escom no caso dos
submarinos, ou do polémico abate de sobreiros no caso Portucale.
É por tudo isto
que se olha para o que se passou e não se consegue saber se estamos apenas
perante o caso da queda de mais um banqueiro, uma queda fragorosa porque era o
“dono disto tudo” e, de repente, olha em volta e vê faltarem-lhe os amigos, ou
se é mais do que isso, se é o sinal do fim de um regime e dos seus hábitos
promíscuos, o fim de um regime fechado, não concorrencial, onde se protegem
amigos e os amigos nos protegem a nós, um regime onde se obedece aos poderes
instalados
Era bom que fosse
o fim desse Portugal, mas não sei. Não sei mesmo.
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