Não se mencione o excremento
João Miguel
Tavares / 31-7-2014 / PÚBLICO
Tomás de Alencar
é uma das mais coloridas personagens de Os Maias, poeta de grandes assomos
românticos e cultor de um absoluto desprezo pela literatura realista.
Infelizmente, em finais do século XIX, os ares dos tempos não estavam com ele.
E à medida que a
moda do realismo ia torpedeando o velho romantismo, Alencar achou por bem
cunhar uma frase definitiva, que ele utilizava para colocar um ponto final em
qualquer conversa sobre o tema: “Rapazes, não se mencione o excremento!”
António Costa
está a transformar-se no Tomás de Alencar de 2014: a dívida é o seu excremento.
Afinal, se podemos estar entretidos com o romantismo de uma “agenda para a
década”, para quê perdermos demasiado tempo com o realismo das contas públicas?
E por isso, na sua miniconvenção do passado sábado, em Aveiro, Costa definiu um
programa político onde não havia uma única palavra sobre a dívida, argumentando
que “não podemos viver limitados ao dia de amanhã”. No seu entender, a
consolidação orçamental é apenas “uma questão instrumental”, que implica
medidas de “curto prazo”, e que, por isso, não cabe num debate sobre uma “visão
estratégica” para o país.
É uma
argumentação extraordinária, esta, e o meu único consolo é acreditar que
António Costa não acredita no que está a dizer. Costa até pode ser discípulo
daquele ramo socrático das finanças públicas que defende que a dívida não é
para pagar, mas apenas para gerir. Só que a questão - a verdadeira questão da
década - é que a dívida se tornou ingerível, e portanto é impensável uma
qualquer estratégia de longo prazo que não tenha como base as limitações
económicas do país. Não é uma mera questão de “curto prazo”. É de curto, é de
médio e é de longo prazo. Mesmo sendo verdade que nos últimos anos o controlo
da dívida foi o único ponto da estratégia do actual Governo, e que nessa
obsessão se perdeu capacidade para ver além da ponta do nariz, convém que
António Costa reconheça que o nariz está lá
Perante a
enxurrada de críticas que caiu sobre a “agenda para a década” e sobre a sua
evidente alienação política, Costa lá foi obrigado a referir o tema na sua
intervenção final. Mas, mais uma vez, fê-lo através da nobre arte de abrir a
boca para não dizer coisa alguma, área em que se tem vindo a revelar destacado
especialista, assumindo apenas a necessidade de equilibrar “o serviço da
dívida” com o investimento na economia. De que forma? Não interessa. Melhor:
não se deve sequer responder a tal pergunta, na medida em que é indispensável
mudar de quadro mental. Responder-lhe seria pensar como a direita, e quando se
pensa como a direita, governa-se como a direita.O facto de António Costa achar
que este género de retórica chega como programa político significa que não tem
os portugueses em grande conta — e está a notar-se muito. Nesse aspecto,
Seguro, ao impor um calendário eleitoral extensíssimo, entalou o seu
adversário. Esta campanha vai dar cabo do PS, mas também está a dar cabo de
Costa, vítima de um desgaste público que não esperava. É muito difícil estar
três meses seguidos a falar de tudo menos daquilo que mais importa. É uma
exposição terrível para quem procura desesperadamente não mencionar o
excremento, sobretudo quando o excremento está à vista de todos e cheira tão
mal. “Quando o vejo”, dizia Tomás de Alencar, “enfrascome logo em
água-de-colónia”. Esperemos que António Costa já tenha encomendado um vasto
stock de Old Spice.
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