A queda de um Santo, por Pedro Santos Guerreiro
Ricardo Salgado acaba mal e acaba só. O grande banqueiro era afinal péssimo
gestor, arruinou um grupo familiar de 145 anos e saiu expulso do BES. Mas não
há vazios de poder: quem dominará agora? Quem vai ser o Dono Disto Tudo? Este
texto propõe uma resposta.
Pedro Santos
Guerreiro |
9:34 Quinta, 24
de Julho de 2014 in
EXPRESSO online
Talvez seja
apenas um mito e Mayer Amschel Rothschild não tenha mesmo dito aquela frase no
século XIX: "Deem-me o controlo do dinheiro de uma nação e pouco me
importarei com quem faz as suas leis." Ficou a frase infame e a família
famosa, os Rothschild, que já não são os banqueiros mais importantes da Europa
mas cuja descendência prevalece.
No mesmo século
XIX, uma família portuguesa de banqueiros era fundada por um órfão, a quem por
isso mesmo chamaram de Espírito Santo, e que atingiu o ponto mais alto da sua
influência já no século XXI. Depois - agora - os negócios faliram, num
escândalo internacional de desonra. A família perde tudo. O movimento é tão
poderoso que pode significar uma mudança de regime na economia portuguesa. Há
uma rede de poder que desaba. Outra emergirá.
Como foi possível
que um império tamanho se perdesse entre dois verões, sem invernos que
anunciassem a ruína ou primaveras que a redimissem? Talvez a resposta esteja
noutra pergunta: como foi possível sequer construir este império tamanho? A
resposta é, agora, fácil: não foi possível. Não era um império. Era um
conglomerado descapitalizado, opaco e mal gerido. A plácida cascata de ativos,
que criou um sistema de minorias acionistas encadeadas que garantia o controlo
familiar com pouco capital, tornou-se uma torrencial cascata de passivos.
É impressionante
tudo ter acontecido debaixo dos olhos da comunidade, incluindo poderes
políticos, reguladores, auditores, concorrentes. Ao contrário do BPN, que
"sempre se soube", no BES nunca se soube de nada. Escrevia-se sobre a
opacidade e a complexidade do grupo, mas não havia denúncias nem sequer
suspeitas conhecidas. O poder do BES era imenso. E era um poder de um homem,
Ricardo Salgado, 70 anos acabados de fazer. Sintomaticamente, o líder da
família desde o final dos anos 80 não tinha número dois. Era costume dizer-se
que o BES era como um comité central do Partido Comunista, não havia
"vices", havia o líder e o resto. Era um poder total, bajulado e
quase incontestado.
O poder
hegemónico
A primeira vez
que falei sobre o assunto foi em julho de 2009, há cinco anos, num encontro à
porta fechada do Projeto Farol, que decorreu no Pavilhão de Portugal. O Farol,
um think tank liberal, convidara-me para fazer uma apresentação sobre fatores
de bloqueio da economia portuguesa e eu escolhi o BES. Na minha tese, o
problema não era o BES ser poderoso, era ser hegemónico.
O jornalista José
Manuel Fernandes estava no encontro e, mais tarde, convidou-me para escrever
essa análise para o Anuário da Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde está
publicada. Dos três eixos de poder da década anterior, restava um: o BCP, muito
ligado à Teixeira Duarte, Cimpor, EDP e depois à Caixa, Berardo, Fino, estava
prostrado; o BPI, muito ligado a grandes empresas do Norte, incluindo o Grupo
Sonae, tinha-se virado para Angola; restava o BES e a sua linha de poder com a
Portugal Telecom, Ongoing, Mota-Engil, mais tarde a EDP e José Sócrates.
A falta de
oposição entre eixos financeiros permitira uma afirmação do BES que, juntamente
com o BCP e a Caixa, lucraram muitos milhões concedendo crédito no imobiliário
e nas obras públicas, onde estariam a maior parte dos grandes problemas da
economia, com malparados gigantes, obras paradas a meio, transferências para
fundos de reestruturação.
Nessa minha tese,
estes bancos haviam "fabricado" lucros, dividendos e prémios de
gestão. Os créditos, que constituíam lucro nos primeiros anos, virariam graves
prejuízos no futuro. Os bancos foram sendo esventrados. No ano 2000, BES, BCP,
BPI e Banif valiam em Bolsa um total de 18 mil milhões de euros. Os mesmos
bancos valem hoje menos de sete mil milhões. Apesar de muitos dividendos
entretanto pagos, a destruição de valor é evidente. Houve aumentos de capital
em catadupa.
É hoje possível
argumentar que, apesar de a intervenção externa de 2011 se ter feito por causa
das contas do Estado, ela acabou por permitir uma gestão controlada e até
disfarçada dos problemas enormes que estavam nos balanços dos bancos. Já foram
reconhecidas nas suas contas mais de 24 mil milhões de euros de perdas reais e
potenciais. E é essencial perceber isto para compreender o que se passou no
Grupo Espírito Santo.
Paradoxalmente, a
devastação na economia portuguesa que foi acelerada com a intervenção externa
de 2011 não havia produzido até aqui nenhuma grande falência. Houve algumas
construtoras de média dimensão, empresas de turismo e de imobiliário a caírem
ou a serem resgatadas, mas não houve nenhuma queda abrupta de um grande grupo. Na
verdade, tal foi sendo possível precisamente pela gestão controlada da banca. Muitas
empresas zombie foram sendo transferidas para fundos de reestruturação, outras
tiveram as suas dívidas reestruturadas, sempre com perdões indiretos da banca. Na
maior parte dos casos, porque os próprios bancos não queriam (ou não podiam)
assumir todas as perdas, sobretudo numa altura em que a pressão regulatória
europeia obrigava a sucessivos aumentos de capital para garantir rácios de
solvabilidade. Em muitos outros casos, porque o "sistema" funciona
assim: preserva-se.
Assim foi com
aquele que teria sido o maior estoiro na economia portuguesa: o Grupo José de
Mello. O caso foi então noticiado mas estranhamente teve pouco impacto na
sociedade. Por causa do corte do rating do Estado para nível lixo, em 2011, os
bancos estrangeiros exigiram o pagamento imediato de empréstimos a muitas
empresas portuguesas. Ao Grupo Mello foram exigidos mil milhões de euros, o que
tendo em conta a quebra das receitas da empresa e o desequilíbrio entre ativos
e passivos a colocou num estado crítico, sendo necessário "entrar"
com o próprio património da família e, mais tarde, retirar a Brisa de Bolsa
para a revalorizar e aceder a mais dividendos.
O problema ainda
hoje não está ultrapassado, embora esteja controlado. Mas nada disso teria sido
possível se, em 2011, o Grupo José de Mello não tivesse tido o apoio dos bancos
portugueses, que então substituíram os bancos estrangeiros como seus
financiadores. O trio do costume, Caixa, BCP e BES injetaram mil milhões no
grupo, que assim pôde pagar aos bancos estrangeiros Santander, Deutsche Bank e
Société Générale.
A grande falência
aparece agora e é muito maior: o Grupo Espírito Santo. Inteiro. Uma derrocada,
de cima para baixo. Mas como? Assim: anos e anos de prejuízos não assumidos,
operações que não geravam cash flow, investimentos nunca recuperados à custa de
dívida sobre dívida nas próprias participadas, que ficavam pendurados nas
contas como se estivessem bem. Pura má gestão e algumas ligações perigosas, com
Angola à cabeça. Mas as holdings de topo, com contas opacas e triangulando
várias praças financeiras, escondiam uma montanha de passivo, para mais
agravada com dívidas que não estavam registadas nas contas, num total de 1,3
mil milhões de euros, o que pode constituir prática criminal.
A situação
tornou-se insuportável quando a dívida, além de ser grande, passou a ser em
grande parte de curto prazo. O famoso papel comercial tornou a pressão sobre a
tesouraria intolerável e sujeita a enorme risco. Pior do que isso: contaminou o
BES.
Como a família
perdeu o BES
Foi assim que a
família perdeu o controlo do banco, primeiro na gestão, depois na própria posse
das ações. Se os problemas de dívida no Grupo Espírito Santo eram já enormes, o
contágio ao banco foi um passo deliberado e aconteceu no último ano. Talvez
fosse uma última tentativa de evitar a rutura, mas transmitiu o problema das
holdings de topo pela cascata abaixo até ao banco, o que constitui um pecado
mortal e dificilmente compreensível.
A falência
poderia ter sido apenas da holding ES International, o que seria um escândalo
que arrastaria a família Espírito Santo, mas não contaminaria as empresas nas
holdings inferiores.
Mas, no início
deste ano, Ricardo Salgado começou a transferir os passivos da ES International
para a RioForte, contaminando-a irremediavelmente. A Espírito Santo Financial
Group e o BES concederam crédito às holdings de cima, ficando também desse modo
contaminadas. E o BES expôs os seus próprios clientes ao risco, quando os pôs a
financiar o GES, primeiro através de fundos de investimento como o ES Liquidez,
depois através do papel comercial. Era difícil ter sido mais destrutivo.
Se o Banco de
Portugal não tivesse forçado a constituição de provisões para pagar aos
clientes de retalho do papel comercial, a hecatombe dos clientes teria sido
devastadora. Um BPP multiplicado muitas vezes.
O que levou o GES
à crise revela no mínimo incompetência, mas a própria gestão da crise desde o
fim do verão do ano passado foi desastrosa, revelando uma equipa bloqueada, em
negação e obcecada por uma guerra interna de sucessão. Como criticou Fernando
Ulrich recentemente, a informação financeira foi sendo relevada aos poucos,
cada comunicado trazia um novo número, nunca houve transparência total e tudo
isso gerou uma desconfiança insanável dos mercados, sobretudo depois de os
investidores terem acreditado no BES para um derradeiro aumento de capital de
mil milhões de euros há cerca de dois meses. Esses investidores sentem-se
enganados. Têm boas razões para isso. Mas houve mais: foram sendo anunciados
aumentos de capital na RioForte que nunca aconteceram, vendas em Bolsa que não
ocorreram, reestruturações que não existiram. Tudo colapsou, estrondosamente.
A melhor
definição que ouvi até hoje sobre o sistema de poder económico em Portugal foi
dada por Paulo Morgado, líder da filial portuguesa da Cap Gemini. Mais do que
uma estrutura hierárquica piramidal, ou de que um polvo com tentáculos, o poder
em Portugal assenta num sistema em rede. É, descreveu Paulo Morgado, como um
jogo de micado: vários paus cruzam-se e é quase impossível mexer num sem tocar
noutros.
Essa
interdependência serviu ao mesmo tempo de rede de sustentação e de força de
resistência passiva. Ninguém ousava dar um murro na mesa e atirar as peças de
micado todas pelos ares, o efeito sistémico seria imprevisível. A falência do
Grupo Espírito Santo e o afastamento da família é esse murro na mesa e sim, tem
efeito sistémico, porque arrasta centenas de empresas com milhares de
trabalhadores. Alexandre Soares dos Santos já disse que o efeito é
"brutal, brutal, brutal..."
Hoje, Ricardo
Salgado é um homem só. Poucos dos seus aliados ainda o são, muitos dos seus
mais próximos já deixaram de o ser. Começou por aqueles que eram enfeitiçados
pelo dinheiro ou mesmo pagos pelo Grupo: esfumaram-se. Passou depois para os
amigos, para a família, para os clientes, para dentro do banco.
É preciso
perceber a mitificação que existia à volta de Ricardo Salgado, em muitos
membros da comunidade mas sobretudo dentro do Banco Espírito Santo. Os quadros
falavam de Salgado como de um banqueiro predestinado, um líder de que se
orgulhavam, um homem que estaria sempre acima dos desafios e dos seus pares. Foi
assim pelo menos até novembro do ano passado, quando começou a guerra na
família. Mas mesmo no princípio da fase mais aguda da crise, muitos quadros do
banco recusavam-se a aceitar a informação que ia sendo divulgada, como se o
grupo estivesse a ser alvo de conspirações.
De alguma
maneira, a situação foi semelhante no BCP aquando da crise de Jardim Gonçalves:
era venerado pelos seus quadros, a incredulidade foi semelhante. Acresce que,
no caso de Ricardo Salgado, muitos se sentiram mais do que dececionados:
sentiram-se traídos. Esse terá sido o caso de Amílcar Morais Pires e de outros
altos quadros do BES: indefetíveis até ao fim, foram deixados cair.
Curiosamente,
Salgado foi negociando com quem o traíra a ele. Como Pedro Queiroz Pereira, com
quem acabou por fechar um negócio que separou os dois grupos familiares. Com
Carlos Costa, que lhe foi tirando o tapete aos poucos. E com José Maria
Ricciardi, o seu primo que liderou uma tentativa de "golpe de Estado"
em novembro que falhou. Ricciardi falara então com diversos membros da família,
isoladamente, para retirar a confiança a Salgado, mas quem acabou isolado foi
ele próprio. Teria o desfecho sido diferente se Ricciardi tivesse conseguido
afastar Salgado?
Os últimos meses
revelaram que, na geração em causa, a família Espírito Santo só tinha dois
potenciais líderes, Salgado e Ricciardi, que são tão parecidos um com o outro
como o sal é do açúcar. José Maria Ricciardi foi o único a estar frontalmente
contra Salgado e o tempo mostrou que tinha razão. Mais: ele podia ter sido o
líder que salvaria o grupo. Mas não teve apoio da família. E, sobretudo, nunca
teve um plano alternativo a não ser propor-se a si próprio como líder. Teve uma oportunidade história, não esteve à altura dela.
Hoje, o resto da
família já estará com ele. Ou, pelo menos, está contra Ricardo Salgado. Há uma
revolta surda entre os vários membros da família dos demais ramos, sobretudo os
que estiveram com ele até ao fim, mas já não estão. Hoje, há membros de uma
nova geração a despontar, como André Amaral ou Caetano Barão da Veiga, mas não
há muito por que lutar. Dos mais velhos, já mais nenhum se solidariza com
Salgado. Lealdade não é o mesmo que fidelidade.
O próximo poder
Voltemos à frase
atribuída a Rothschild: os banqueiros sabem que o poder maior numa economia
está em criar moeda, o que Portugal aliás já não pode fazer. Em Portugal, o
poder maior reside no Estado, através da despesa pública e dos impostos, e nos
bancos, pela concessão de crédito. Mesmo nos últimos anos, com menos crédito
concedido, o poder dos bancos foi suficiente para decidir a vida ou a morte de
muitas empresas, pela renovação ou não renovação de créditos e linhas de
tesouraria. Fale com qualquer gestor de uma PME, ele
explica.
A queda da
família no BES está consumada, mas essa não é a única alteração acionista em
perspetiva. É hoje difícil perceber como ficará o poder no banco, que está
tomado por muitos acionistas especulativos de curto prazo. Além disso, uma
entrada do Estado, ainda que com títulos híbridos, significa uma diluição enorme
dos acionistas, incluindo dos investidores que entraram no último aumento de
capital e que podem acionar legalmente o banco. Mas é óbvio que o BES acabará
comprado, porque acabará vendido, mesmo que seja aos poucos, em mercado.
A queda do BES
enquanto eixo de poder poderia ter o efeito reverso que teve a queda do BCP em
2007: abrir caminho para que outro banco assomasse. Contudo, nenhum dos bancos
portugueses parece ter a força ou sequer a dinâmica para se catapultar neste
momento, até porque o mercado português continua a ser um mau
"negócio". Assumindo que não há vazios de poder - sempre que há rei
morto, há rei posto -, quem, então, pode assumir as rédeas do poder?
A resposta
depende menos dos acontecimentos e mais das circunstâncias (Vítor Gaspar vai
gostar desta): é o credor estrangeiro. Às vezes chamam-lhe
"mercados". O credor torna-se acionista à força e vira investidor. É
a força mais poderosa que se abateu sobre a economia portuguesa desde 2010,
precisamente por sermos devedores. É o credor estrangeiro que está a
reconfigurar a economia portuguesa (e a sua política, que depois de perder as
ferramentas cambial e monetária, perdeu agora na prática a liberdade
orçamental). É ele que escolhe gestão profissional em vez de familiar, e que
prefere sempre fluxos de caixa a qualquer outro tipo de retorno, que pode
sempre pressionar o pagamento de dividendos em vez de reinvestimento. É isso
que está a acontecer dramaticamente no BES. É isso que vai reconfigurar a
economia portuguesa: uma mudança de fora para dentro.
O discurso dos
centros de decisão nacional sempre foi essencialmente um discurso de poder, e
de manutenção desse poder pelo regime vigente. Hoje é um anacronismo ridículo.
O investidor estrangeiro já tomou conta. A EDP e a Ren são hoje chinesas, a Ana
é francesa, o BCP, BIC, Zon e Optimus são angolanos, o BPI é hispano-angolano,
o BES há de ser de quem o quiser, a Cimpor é brasileira, a PT quer sê-lo, a
Galp é apátrida e há dezenas de grandes empresas à venda, incluindo hotéis,
seguros, saúde e imobiliário do Grupo Espírito Santo, a TAP ou os resíduos do
Estado.
O sistema mudou
porque estava falido. O novo regime fala estrangeiro. Precisa de reguladores
fortes, para que produza em vez de extrair riqueza de Portugal. Mas essa é a
maior mudança a que assistimos. Não foi a troika que a trouxe, foi a dívida. O
triste fim do Grupo Espírito Santo não é senão uma forma dramática e
espetacular de o percebermos. Como diria José Sócrates, o mundo mudou.
Texto publicado
na Revista do Expresso, a 19 de julho de 2014
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