Opinião :: A água, de quem é?
Enquanto o senso
comum diz que é de todos, os fatos tendem a contradizê-lo: o aquecimento global
e as mudanças climáticas associadas tornaram a água em algo tanto ou mais
cobiçado do que o petróleo, e as grandes empresas estão-se a tornar donas deste
recurso natural, estranhamente com a ajuda das Nações Unidas, a organização
criada para garantir os direitos dos habitantes do planeta. Neste caso, e não
só, parece mais inclinada a preservar uns do que outros. Bernard Shaw disse
acertadamente que o senso comum é o menos comum dos sensos.
Uma das primeiras
medidas tomadas por Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, foi o lançamento do
CEO Water Mandate, "uma iniciativa público-privada especial destinada a
ajudar as empresas no desenvolvimento, implementação e difusão de políticas e
práticas sustentáveis na esfera das águas". Uma meta louvável, os
resultados não tanto. Megalópios como Marck & Co. ou Siemens recorrem ao
mandato para privatizar um bem público. Como acontece com outros grandes
projectos da ONU, FMI, Banco Mundial e bancos regionais de desenvolvimento, em
geral, são responsáveis pela sua gestão.
O Banco Mundial
acaba de assumir o controle do Fundo Verde da Conferência sobre Mudança
Climática, financiado em 100 mil milhões de dólares. É notória a pouca ou
nenhuma a transparência do BM no que faz em projetos semelhantes, mas estas
iniciativas repetem-se "não só porque os Estados membros mais poderosos da
Organização das Nações Unidas os impulsionam", disse Maude Barlow,
presidente do Conselho Nacional dos Canadenses (CNC): também porque a ONU é
sub-financiada e as suas agências e programas "recorrem ao patrocínio
privado para funcionar". Barlow é o
autor, entre outros livros, de Ouro Azul e O Pacto Azul: A Crise Global da Água
e a luta pelo direito à água.
A ambientalista
canadense sublinhou, no prefácio de um estudo realizado pelo CNC sobre a
influência do setor privado nas Nações Unidas, que o planeta está à beira de
uma crise de proporções assustadoras em matéria de abastecimento de água
(blueplanetproject.net). Ela observa que o FMI "força as nações
endividadas a vender bens públicos, incluindo os aquíferos, como condição para
a concessão de assistência financeira. Todo o sistema (da ONU) é regido por
estas empresas". Que só buscam o lucro, é claro.
O relatório do
CNC detalha esse domínio em várias organizações do sistema, mesmo antes de
2007. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) entrou em 2005 numa
parceria de negócios com a Volvic, empresa fornecedora de água mineral, e
realizou uma campanha pública de grandes proporções na Alemanha com o slogan
"um litro por cada 10 litros". A empresa comprometeu-se a contribuir
financeiramente para um programa da UNICEF nestes termos: para cada litro de
água Volvic vendido num país europeu, a empresa forneceria o necessário para os
habitantes do distrito de Amhara, na Etiópia, terem acesso a 10 litros de água
potável. A iniciativa foi repetida noutros mercados ocidentais, o que permitiu
que o programa fosse estendido para áreas do Níger e Mali.
A Volvic doou
meio milhão de dólares de vendas nos EUA e Canadá em 2008-2009, para financiar
projetos da Unicef (www.drink1give10.com). Bem, mas deve-se notar que as vendas
da seção "água" do grupo francês Danone, ao qual pertence a Volvic,
totalizaram aproximadamente 3,7 mil milhões de dólares apenas em 2008
(www.danone.com, 6/24/10). O CNC diz que no estudo que a vinculação explícita
da UNICEF com a Volvic em grandes mercados, como a França, Japão, Canadá e EUA,
é um valor agregado, e estima que as vendas de produtos engarrafados da Danone
"pode muito bem ter ultrapassado a contribuição (correspondente) de 500
mil dólares para a UNICEF".
A Unidade de
Inspeção Conjunta das Nações Unidas afirmou num relatório do ano passado que
essas parcerias não têm "um sistema de controlo eficaz para medir a implementação
efectiva dos princípios (estabelecidos) pelos participantes", o que
provocou críticas de vários estados membros da ONU, e o risco de manchar a
reputação da organização internacional. No entanto,
aumenta a sua participação nestes empreendimentos "especiais".
Um aspecto
característico dessas transações, reconhecido pelo Banco Mundial, é que as
empresas se recusam a investir nas infra-estruturas necessárias para melhorar o
acesso a este recurso: só querem cortar operações para aumentar os seus lucros.
Assim, o preço da água aumenta e sua qualidade piora. Na França, considerado o
impulsionador mais importante da privatização da água, há marcha-atrás: em
junho, a Câmara de Paris recomprou os serviços de água executados pela Veolia e Suez. Mas a ganância não encontra sempre travão.
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