ANTÓNIO COSTA
Os socialistas, os mercados e a
dívida
João Marques de
Almeida
20 -7-2014 / 20.00
/ OBSERVADOR.
Se António Costa for eleito líder do PS e os socialistas ganharem as
eleições em 2015, menos de um ano depois teremos um novo programa de resgate e
a “troika” de volta a Portugal.
A entrevista de
António Costa ao Púbico é muito preocupante. O provável candidato socialista a
primeiro-ministro, a acreditar nas sondagens, não entende o que se passou em
Portugal desde 2011. Segundo o candidato socialista, as políticas de
austeridade foram o resultado da “ideologia liberal da direita” que está no
poder e da subordinação da política à “tecnocracia”. Infelizmente, os
entrevistadores não tiveram a lucidez de apontar a evidente contradição entre
as duas afirmações. Os entrevistadores também nunca perguntaram quais foram,
para Costa, as causas da crise, por isso não sabemos o que pensa sobre isso. Só
sabemos que não pensa “o mesmo que a direita pensa”. E para o futuro, Costa
afirma “que é preciso um outro caminho e bem diferente”. Ora, quando o comum
dos leitores julgaria que a pergunta seguinte seria, ‘muito bem, então qual
será esse caminho?’, os entrevistadores, mais uma vez, aceitaram uma resposta
(e que resposta) sem qualquer escrutínio.
Aliás, não é
fácil recordar-me de uma entrevista tão simpática para um político como esta.
Vejam a pergunta que se seguiu, à tal afirmação cuja clarificação seria
fundamental para os portugueses: “as legislativas devem ser antecipadas, até
por causa do orçamento do Estado?” Em vez de querer saber o que Costa faria de
diferente do actual governo, o que os entrevistadores querem saber é se Costa
pretende eleições antecipadas.
A resposta do
candidato socialista é espantosa: “Há um consenso grande para reajustar os
calendários eleitorais ao calendário orçamental e aos semestres europeus.” A
propósito, esse consenso existe? O PSD poderia perguntar ao Tribunal
Constitucional se é constitucional dissolver a Assembleia da República para
ajustar o calendário eleitoral ao calendário orçamental. Continua Costa:
“Portanto, que as legislativas passem a ser em Abril-Maio. Ainda que
tecnicamente se tenha que recorrer à dissolução, deve ser visto como um
ajustamento de calendário”. Calculo que isto seja o verdadeiro exemplo de
subordinar a “técnica à política”, o que segundo Costa é verdadeiramente o que
o distingue dos outros. O facto da “técnica” aqui ser a Constituição Portuguesa
é apenas um pequeno pormenor.
Sem desejar
parecer arrogante, gostaria de recordar dois ou três pontos a António Costa. O
primeiro tem a vêr com o poder dos mercados. Quando os países europeus começaram
a construir o Estado social, a relação entre a produtividade económica, a
demografia e os benefícios sociais eram muito diferentes do que são hoje. Não é
necessário ser brilhante em matemática (ou ser neo-liberal) para perceber que
se as despesas sociais aumentarem, a produtividade e a economia também devem
crescer de um modo proporcional. O grande problema em muitos países europeus
foi que aconteceu o inverso. As despesas sociais aumentaram mais e mais
depressa do que a produção de riqueza. Se o que um país produz é insuficiente
para pagar o que o seu Estado gasta, só há duas maneiras de resolver o
problema: aumentar a carga fiscal e financiamento externo. Portugal tem
recorrido simultaneamente aos dois, mas progressivamente o financiamento
externo tornou-se decisivo para pagar as despesas sociais. Ora, um país só
poderá recorrer ao financiamento externo se fôr capaz de garantir juros
razoáveis. Se os juros aumentarem para níveis insuportáveis, o financiamento
nos mercados acaba. Foi o que aconteceu em 2011.
Os mercados têm
poder porque as “grandes conquistas do Estado social” são financiadas por eles.
O acesso aos mercados permite a educação e a saúde gratuitas, os subsídios de
desemprego e as pensões de reforma. Num contexto de fraco crescimento económico,
as últimas duas décadas em Portugal reforçaram a dependência das despesas
sociais dos financiamentos nos mercados. Ninguém tenha qualquer dúvida: se não
nos financiarmos nos mercados, deixará de haver educação e saúde gratuitas e os
subsídios e as pensões continuarão a baixar; a não ser que se encontre petróleo
na costa e Portugal se torne uma espécie de Noruega do sul.
Uma das conlusões
da crise foi o aumento das exigências dos mercados em relação às economias e às
finanças públicas dos países que financiam. Para os mercados emprestarem
dinheiro com juros aceitáveis, precisam de ver os governos a introduzirem
reformas que aumentem o crescimento económico e reduzam a despesa pública. Se
os governos não o fizerem, os mercados compram dívidas a outros países, onde a
“política se subordina à tecnica” da boa gestão pública. E os mercados, convém
clarificar, não são as personagens sinistras de Wall Street e da City que as
caricaturas de Hollywood nos mostram.
Por exemplo, os
fundos de pensões dos países ricos do norte da Europa e da América do Norte e
os fundos soberanos são provavelmente as instituições mais relevantes dos
chamados ‘mercados’. São eles que financiam os fundos de investimentos que
investem na dívida pública de países como Portugal, e impõem os mais rigorosos
critérios para emprestar dinheiro. O dinheiro que garante as reformas dos
suecos e dos holandeses ajuda a pagar os desempregados em Portugal e em
Espanha, mas os gestores desses fundos precisam de garantias que os empréstimos
serão pagãos, caso contrário o futuro dos seus membros estará em risco. Dito de
outro modo, os Estados sociais ricos financiam os Estados sociais mais pobres
através dos mercados.
Claro que muitos
líderes socialistas europeus, aos quais Costa é mais um a juntar-se, pretendem
que a ‘Europa’ (ou seja, a Alemanha) os proteja dos mercados, substituindo os
financiamentos que aí adquirem sem a exigência de reformas e de cortes na
despesa. Como a crise tem demonstrado, isso não vai acontecer, por uma razão
muito simples: A ‘Europa’ (a Alemanha) não tem dinheiro para financiar a França
e a Itália. A Europa (juntamente com o FMI) emprestou e continuará a emprestar
dinheiro aos países sem acesso aos mercados, mas impondo reformas e cortes nas
despesas. E apesar dos desejos de Costa, e por mais que a “política se imponha
à técnica”, a Europa no essencial não vai mudar porque não tem poder para o
fazer. É uma ilusão perigosa acreditar que o poder da Europa é ilimitado,
sobretudo no mundo de hoje.
No fundo, a
realidade é muito simples, mesmo que seja dolorosa e dura. O Estado social
necessita do financiamento dos mercados e estes só financiam a juris aceitáveis
se os governos fizerem reformas e cortes. Claro que estamos perante um problema
político muito complicado, sobretudo quando se fizeram promessas e criaram
expectativas durante décadas, que agora não podem ser cumpridas, e quando não
se disse a verdade às populações atempadamente, e foi necessária a bancarrota
para lhes impor a realidade de um modo brutal. Acusar o actual governo e o PM
por tudo isto constitui uma dos maiores exercícios de demagogia e de
irresponsabilidade da história recente de Portugal.
António Costa e a
maioria do PS recusam-se a aceitar a realidade, como ficou mais uma vez demonstrado
com a entrevista ao Público. Se António Costa for eleito líder do PS e os
socialistas ganharem as eleições em 2015, menos de um ano depois teremos um
novo programa de resgate e a “troika” de volta a Portugal. Compete ao PSD e ao
CDS, juntos ou separados, explicarem isto aos portugueses.
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