OPINIÃO
A Santa Casa na roleta
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO 24/07/2014 – PÚBLICO
A Suíça não é
propriamente um país troglodita, atrasado e bacoco. Pelo contrário. Ora, em 2012, a Suíça introduziu na
Constituição uma norma que fixa que os lucros do jogo "sejam integralmente
aplicados a fins de utilidade pública, nomeadamente nos domínios cultural,
social e desportivo".
A Constituição
federal de 1999 já tinha disposições disciplinadoras, completadas por preceitos
a afectar receitas do jogo ao seguro social de velhice, sobrevivência e
invalidez. E, perante a ofensiva dos poderosos interesses do jogo
internacional, os suíços não foram de modas: por referendo, em 11 de Março de
2012, tornaram mais assertiva a protecção do bem comum. A maioria foi clara:
87,1% dos votantes aprovaram a nova norma da Constituição, proposta pela
Iniciativa Popular "Por jogos a dinheiro ao serviço do bem comum",
que entrou logo em vigor. Ponto final.
Isto é o que se
passa num país democrático decente. Mas, numa questão bem importante e
sensível, nem peço tanto. Basta que mantenhamos e aprofundemos – em vez de
destruirmos de uma penada – a política social de jogos que temos em Portugal
desde há décadas, sempre com bons resultados.
Fui, há dias,
surpreendido pela Proposta de Lei n.º 238/XII, em que, a propósito da
legalização do jogo online, o Governo apresenta profundíssima modificação do
regime longamente consolidado. Não estou de acordo. Estivesse eu na oposição e
desancaria violentamente um texto que coroa, infelizmente, os piores sinais
inquietantes que vinham já dos Governos Sócrates. Pertencendo ao arco do
Governo, tenho que ser mais comedido, sem embargo de manifestar e explicar a
minha discordância.
Conheço bem,
desde há anos, a fortíssima pressão, dita “liberal”, dos interesses que se
movimentam e prosperam no universo do jogo online. Alguns correspondem ao pior
que possamos imaginar – e, quando digo o pior, quero mesmo dizer o pior. Combati-a
no Parlamento Europeu, sempre com sucesso, e como presidente do CDS. Buscam
portas franqueadas num quadro europeu de política do jogo em que os regimes
liberais, que lhes são favoráveis, eram raras excepções. Procuram manipular os
tratados europeus e a liberalização dos serviços contra os regimes de exclusivo
público ou outros modos de condicionamento e protecção do interesse social. Têm
averbado, porém, muitas derrotas, pois o seu argumentário assenta em falácias:
é falso que o Direito Comunitário esteja do seu lado – e que estivesse... Participei,
com eurodeputados de outros países, em duas fragorosas derrotas que sofreram. E
têm perdido causas no Tribunal Europeu. Por duas vezes perderam contra o Estado
português; mas, é claro que, se, agora, a proposta de lei se puser contra
Portugal e ao lado desses interesses, irão ganhar – porque nós meteremos o golo
na própria baliza. Com a mão.
Sei que o ataque
continuou. Sempre servidos por muito, muito dinheiro, têm conseguido avanços
noutros países. Conseguiram aliados nos serviços da Comissão Europeia por vias
que intrigam. A pressão em Portugal nunca abrandou, com alguns escritórios por
conta. Tinha já assistido a tibiezas deploráveis nos Governos Sócrates; e sabia
das pressões ditas “liberais” dentro do PSD, nomeadamente por mãos que hoje
moram na Goldman Sachs e interesses ligados ao “futebol”. Mas o quadro bem
ancorado e sólido da nossa política pública neste domínio e o êxito que sempre
teve quando posta à prova faziam-me acreditar que não conseguiriam levar a sua
avante. A legislação evoluiria, mas no quadro social bem experimentado do país.
Surpreendeu-me – e desgostou-me – ver, agora, também o nome do CDS envolvido
naquele novelo e enredo.
Não reputo
politicamente legítima esta mudança. Partidos, como PSD e CDS, que sempre
desenvolveram uma política de jogo com forte responsabilidade social, não podem
mudá-la do dia para a noite assim como quem muda de camisa. Não é mudar de
camisa, é mudar de corpo – trata-se de uma política estrutural e estruturante. Uma
mudança desta envergadura e com impacto tão profundo (negativo) não pode ser
feita sem, ao menos, um debate prévio, largo, sério e informado, no interior
dos partidos. Os suíços fizeram um referendo. Nós queremos passar por isto como
cão por vinha vindimada. Não pode ser.
O CDS teve dois
provedores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que titula o exclusivo dos
jogos sociais e polariza a aplicação do seu produto ao bem comum: Pedro de
Vasconcelos e Maria José Nogueira Pinto. O CDS sempre defendeu essa política; e
os seus provedores sempre a aplicaram e valorizaram, com distinção. Há 10 anos,
no último mandato CDS, a introdução do Euromilhões permitiu-nos lançar novas
linhas de apoio a idosos e doentes, nomeadamente nas áreas tão candentes dos
cuidados continuados e cuidados paliativos. O PS, entretanto, já tinha mudado
isso; mas o essencial mantém-se. Seria deplorável que, em vez de repor e
reforçar a boa linha social, viéssemos, agora, comprometer, imediatamente e a
prazo, esta âncora tão importante do Estado social e fragilizar áreas
absolutamente carentes.
Além disso, não
podemos facilitar a vida a interesses obscuros, altamente corruptores,
invertendo uma política de combate à fraude e ao crime. Nem podemos franquear o
caminho a novos modos de adicção e dependência que atingem duramente os
consumidores mais vulneráveis, nomeadamente menores. Não é um bom caminho, por
muitos impostos que o vício pudesse render.
Hoje, os jogos
explorados pela Santa Casa proporcionam perto de 700 milhões de euros anuais de
receita pública, quase integralmente usada a financiar políticas sociais em
diversos ministérios, com destaque para segurança social e saúde, além de
desporto, cultura, educação e segurança. Com o regime proposto e a alteração do
quadro da oferta, centenas destes milhões serão paulatinamente apropriados por
privados, lesando as políticas sociais que servem. Em nome de quê? E, a prazo,
todas as cautelas que a proposta procura ainda salvaguardar serão derrubadas
pela Comissão e os tribunais europeus, já que a incoerência do regime quanto às
razões de ordem pública deixará sem sustentabilidade jurídica a posição do
Estado português. Todos os que acompanham este dossiê sabem que é assim – e não
tenho a mais pequena dúvida de que os escritórios que apoiam a ofensiva dos
interesses do jogo têm a lição bem estudada. Como substituiremos os recursos
alienados? Seria violento rombo. Como explicar tão grave decadência do
interesse público? Por que motivo desalinharemos das melhores práticas
europeias, como é a nossa e da Suécia, Finlândia e Alemanha, por exemplo? Não pode ser.
Deputado do CDS-PP
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