O banco de todos os regimes
11 Julho 2014 /
OBSERVADOR
Novo livro descreve Ricardo Salgado como um homem de 'backstage'.
"Saiu de cena quando, em finais de 2013, estava a ser atacado em várias
frentes e tinha inúmeros fogos a que acudir".
Intitula-se “O
Último Banqueiro – Ascensão e Queda de Ricardo Salgado”, é editado pela Lua de
Papel e estará a partir de sábado, 12 de julho, nas livrarias. Escrito pelas
jornalistas Maria João Babo e Maria João Gago, do Jornal de Negócios, o livro
traça o percurso, o perfil e as relações com o poder de Ricardo Salgado,
presidente executivo do Banco Espírito Santo (BES) desde 1991, que renunciou,
recentemente, ao cargo, na sequência da crise que se abateu sobre o Grupo Espírito
Santo.
Em
pré-publicação, o Observador revela um dos capítulos do livro, “O banco de
todos os regimes”. No texto, as autoras mostram como Ricardo Salgado se
relacionou com os sucessivos governos e com os protagonistas da vida política
portuguesa. Uma declaração do banqueiro é um dos elementos reveladores do
pragmatismo que lhe serviu de orientação na gestão dos interesses do BES e do
Grupo: “Estivemos na monarquia, na implantação da República, na ditadura, nas
nacionalizações deixámos de estar porque tivemos de emigrar, quando voltámos
com as privatizações continuámos a dialogar com todos os governos, seja de um
partido ou de outro”.
“Vítor Gaspar
entrou na reunião com a Associação Portuguesa de Bancos a pés juntos. “Se eu
fizesse declarações sobre a dívida do BES tinha muito a dizer”, avisou, num tom
claro, duro e incisivo, perante os 15 responsáveis convocados para o encontro
no Ministério das Finanças.
Dias antes, a 3
de Junho de 2013, o presidente do BES tinha manifestado publicamente dúvidas
sobre a sustentabilidade da dívida soberana, que muito desagradaram ao
ministro. “Será que a dívida portuguesa é sustentável e vamos poder viver sem
uma reestruturação da dívida? Esta é a grande questão que vai ter que ser
respondida”, deixou escapar Ricardo Salgado numa conferência em que participara
no Porto.
Vítor Gaspar
entendeu que não podia deixar passar em claro as declarações do banqueiro. Na
primeira oportunidade pronunciou a ameaça que podia destruir o banco. O puxão
de orelhas tinha ainda um subentendido: a fragilidade financeira do BES era
muito mais complicada do que naquele momento se imaginava.
Os sete membros
da direcção da Associação Portuguesa de Bancos e Álvaro Santos Pereira, ainda
ministro da Economia, paralisaram perante o inédito da situação. Nunca um
governante tinha censurado de forma tão implacável o decano dos banqueiros
portugueses.
Ricardo Salgado
não participava na reunião. Foi Amílcar Morais Pires, seu braço direito, o alvo
da recriminação. Depois de um longo silêncio, o administrador financeiro
apressou-se a garantir que o presidente do BES não tinha tido a intenção de
passar uma imagem negativa da dívida nacional. As declarações de Salgado,
alegou, tinham em vista apenas ajudar a baixar os juros.
Mas o mal já
estava feito. E o desconforto que a situação provocou na cúpula do banco levou
o próprio Ricardo Salgado a ligar mais tarde ao ministro desculpando-se e
explicando não ter querido dizer o que disse.
Em Portugal, o
regresso aos mercados era o tema quente do momento. No final de Maio, tinha
sido entregue o Orçamento Rectificativo para responder à obrigação de repor os
subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos ditada pelo Tribunal
Constitucional. Enraizava-se a ideia de que o programa de ajustamento português
precisaria de mais tempo, risco que o Executivo recusava.
Paulo Portas
tinha assumido a tarefa de elaborar o guião da reforma do Estado. A crise na
coligação agudizava-se. A 1 de Julho, Vítor Gaspar apresentava a definitiva demissão,
depois das tentativas anteriores, queixando-se da falta de coesão no Governo.
O episódio com
Ricardo Salgado foi, para alguns dos que testemunharam o puxão de orelhas de
Vítor Gaspar ao banqueiro, das melhores intervenções do ministro.
A relação da
banca com o Governo estava, ao fim de tantos anos, diferente. O pedido de ajuda
de Portugal e a chegada da troika distanciara banqueiros e governantes.
Enfrentar os interesses instalados era a marca do discurso do novo
primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho.
"Como nenhum outro
banqueiro, a sua influência junto dos diferentes governos foi sempre forte.
Nunca se inibiu de comentar as grandes decisões políticas. Mais para as
elogiar, do que criticar ou condenar. Habituou-se a ser ouvido."
“O BES é um banco
de todos os regimes. É assim há mais de 100 anos”. É esta a resposta que o mais
antigo banqueiro português costuma dar sempre que é confrontado com a acusação
de que o BES é o banco do regime.
“O BES tem de
dialogar com todos os governos e todos os regimes. Estivemos na monarquia, na
implantação da República, na ditadura, nas nacionalizações deixámos de estar
porque tivemos de emigrar, quando voltámos com as privatizações continuámos a
dialogar com todos os governos, seja de um partido ou de outro”, dizia numa
entrevista à RTP em finais de 2010. Nessa altura, eram frequentes as
declarações públicas de Ricardo Salgado apoiando José Sócrates e as suas
políticas.
Como nenhum outro
banqueiro, a sua influência junto dos diferentes governos foi sempre forte. Salgado
destacou-se sempre dos seus pares pelo poder da perenidade. Permaneceu em
funções durante mais de duas décadas. Como líder do BES, nunca se inibiu de
comentar as grandes decisões políticas. Mais para as elogiar, do que criticar
ou condenar. Habituou-se a ser ouvido. Fosse pelo tempo no cargo, fosse pelos
contactos e conhecimentos privilegiados que por várias vezes se mostraram úteis
aos executivos. Sempre disse que as suas relações com os políticos eram “de
respeito mútuo”. Apenas essas. E que tinha amigos “em todos os partidos”.
Mas por alguma
razão o banqueiro foi o único com quem José Sócrates quis falar quando, em
2011, resistia ainda a pedir ajuda externa. Uma inevitabilidade que Teixeira
dos Santos tinha compreendido quando ouviu Salgado dizer “estamos numa situação
limite”.
A chegada da
troika em 2011 viria, porém, a mudar a relação da banca com o Governo. O
memorando de entendimento assinado com o FMI, a Comissão Europeia e o Banco
Central Europeu foi a base do programa de Pedro Passos Coelho. E o
primeiro-ministro estava decidido, desde a sua chegada a São Bento, a ir mais
longe do que mandavam os credores internacionais.
Os independentes
que escolheu para as Finanças e para a Economia, pastas com que a banca mais se
relaciona, aproveitaram para mostrar o seu distanciamento. Sem ligações
partidárias nem pretensões com o poder económico, Vítor Gaspar e Álvaro Santos
Pereira fizeram questão de separar as águas.
A crise tinha
agrilhoado as instituições financeiras portuguesas, que viam o seu poder
abalado. O corte dos ratings, a sua exposição à dívida pública e ao sector
empresarial do Estado, as pressões para que o seu reforço de solidez fosse
feito com dinheiro público tinham fragilizado os bancos. A capacidade de se
assumirem como parceiros que sempre foram dos governos, aliança benéfica para
ambas as partes, estava diminuída.
"O primeiro confronto com o
grupo Espírito Santo não se fez esperar. A 30 de Agosto de 2011 (...) o Governo
contratou por ajuste directo a Caixa Banco de Investimento e a boutique
financeira Perella Weinberg para assessorar as privatizações do sector
energético. A escolha indignou o BES Investimento, habituado a partilhar estas
operações com o banco do Estado."
Pedro Passos
Coelho chegou a São Bento no Verão de 2011 para cumprir o desejo da troika de
desalojar interesses instalados. A banca era um dos sectores alvo dessa
hostilidade política.
O primeiro
confronto com o grupo Espírito Santo não se fez esperar. A 30 de Agosto de
2011, menos de dois meses depois de tomar posse, o Governo contratou por ajuste
directo a Caixa Banco de Investimento e a boutique financeira Perella Weinberg
para assessorar as privatizações do sector energético. O Estado estava de saída
da EDP, da REN e da Galp. A escolha indignou o BES Investimento, habituado a
partilhar estas operações com o banco do Estado. Afinal, estavam em causa
comissões de cerca de 15 milhões de euros.
José Maria
Ricciardi não demorou a telefonar ao primeiro-ministro e ao ministro dos
Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, para transmitir o seu desagrado. A
escolha da Perella tinha sido feita sem concurso público e sem consulta aos
bancos pré-qualificados. E interrompia uma prática de adjudicação a bancos
portugueses, reclamava o presidente do banco de investimento do BES.
“Transmiti a
vários membros do Governo a minha discordância pelo facto de o Estado ter
contratado a firma norte-americana Perella por ajuste directo, quando se
exigia, na observância do rigor e da ética, que se elegessem as assessorias
financeiras através de concurso público”, confirmou Ricciardi, em Outubro de
2012. O comunicado surgia na sequência das notícias que davam conta de que
tinha sido escutado a falar com o primeiro-ministro no âmbito das investigações
ao caso de fraude fiscal Monte Branco.
O banqueiro
recusava as pressões de que era acusado. “Não traduz ilicitude, irregularidade
ou sequer censura que se questione eventualmente um membro do Governo sobre se
há intenção de ceder a pressões políticas promovidas pelas lideranças
europeias”, defendia-se.
A revelação dos
telefonemas entre o banqueiro e o primeiro-ministro obrigou Passos Coelho a
reagir. “Tenho todo o prazer e até gosto que essas escutas sejam publicamente
reveladas. Estou muito consciente das minhas conversas privadas ou telefónicas
e não tenho nenhum receio de que alguma coisa que tenha dito venha ao conhecimento
público”. Para o líder do Governo o episódio era mais uma prova do seu empenho
na guerra aos velhos poderes.
“Valeu a pena protestar”,
criticou Fernando Ulrich ainda nesse Outubro de 2012. "Quem contestou teve
logo outro ajuste directo a seguir", denunciou o líder do BPI, apontando o
dedo ao BES sem o nomear."
“Valeu a pena
protestar”, criticou Fernando Ulrich ainda nesse Outubro de 2012. “Quem
contestou teve logo outro ajuste directo a seguir”, denunciou o líder do BPI,
apontando o dedo ao BES sem o nomear. O banqueiro não deixou passar em claro
que o segundo contrato como assessor do Estado para as privatizações, desta vez
da TAP e da ANA, tinha sido entregue “a quem protestou” contra a anterior
escolha da Perella Weinberg.
Apesar de não ter
sido contratado pelo Estado na privatização da EDP, o BESI acabou por
participar na operação, como assessor financeiro da China Three Gorges, a
empresa que saiu vencedora. E além da assessoria ao Estado nas privatizações da
TAP e da ANA, o banco conseguiu ainda ficar responsável pelo dossier de
transferência dos fundos de pensões da banca para a Segurança Social, no final
de 2011.
Tal como havia
elogiado José Sócrates antes, Ricardo Salgado lisonjeava agora Passos Coelho.
“O Governo está a actuar de forma excelente e tem a confiança da maioria dos
portugueses e a minha também”, manifestava em Agosto de 2011, dois meses depois
das eleições que deram a vitória ao PSD.
O banqueiro
considerava ainda “extraordinária” a forma como o Executivo liderado por Passos
Coelho estava a encarar o compromisso assumido com a troika e a cumprir os
objectivos traçados como contrapartida do empréstimo de 78 mil milhões de euros
a Portugal.
Mas as
circunstâncias não permitiam fazer apenas elogios. Com os ratings na categoria
de “lixo”, o reforço das exigências do Banco de Portugal para os rácios de
solidez da banca e a necessidade de desalavancagem, era a vez das instituições
financeiras colocarem pressão sobre o Estado. Os bancos, nomeadamente o BES e o
BCP, tinham dado o máximo apoio na compra de dívida soberana assim como no
financiamento às empresas públicas, e agora estavam a sofrer as consequências.
No total, a
exposição da banca ao Estado estava estimada em 50 mil milhões de euros.
Ricardo Salgado avisava: o BES poderia “aumentar o crédito à economia se o
Estado e diversas entidades públicas pagassem as dívidas”.
O financiamento
às empresas era a preocupação central do então ministro da Economia, Álvaro
Santos Pereira. Em 2011 e no início de 2012, a necessidade de desalavancagem da banca
reduziu o crédito em quase 20 mil milhões de euros. As PME estavam a ser
sacrificadas.
"Também com Álvaro Santos
Pereira, a reindustrialização, o financiamento da economia ou a criação do
banco de fomento foram temas de discussão com os banqueiros. O BES,
historicamente ligado às empresas, avisava que não podia fazer mais."
Como noutros
momentos, com outros governos, os bancos tinham sido chamados para apoiar
políticas de investimento público ou de desenvolvimento tecnológico, assessorar
o Estado ou financiá-lo. Também com Álvaro Santos Pereira, a reindustrialização,
o financiamento da economia ou a criação do banco de fomento foram temas de
discussão com os banqueiros. O BES, historicamente ligado às empresas, avisava
que não podia fazer mais.
Para Ricardo
Salgado a prioridade era então passar a crise sem necessidade de recorrer ao
apoio do Estado – a linha de 12 mil milhões de euros negociada com a troika
para a banca a que BCP, BPI e Banif tiveram de acorrer.
“Na nossa casa
costumamos dizer que o interesse primeiro é o do país, o segundo é o da instituição
e só em terceiro lugar é que aparecem os accionistas”. O lema de família,
evocado por Ricardo Salgado em diversas situações, tem mais de 100 anos.
Historicamente o
BES teve sempre uma relação de parceria com os governos e com as empresas. Com a
particularidade de não fazer banca só no sentido estrito, mas também para
ganhar influência no mercado social, institucional, financeiro e político.
A sua colaboração
com o poder em exercício chegou a ser mais activa do que a da Caixa Geral de
Depósitos. Era frequente o BES antecipar-se ao próprio banco público na
aprovação de financiamentos ao sector empresarial do Estado mesmo quando, no
auge da crise, esse apoio lhe era solicitado.
Assim aconteceu
quando Vítor Gaspar pediu à banca nacional que substituísse os bancos
estrangeiros no financiamento às empresas públicas. O acordo assinado com a
troika tinha revelado um buraco de 20 mil milhões de euros de dívidas do sector
empresarial que era necessário renovar. Com a banca internacional de partida de
um país resgatado, foram os grandes bancos que socorreram o Estado. O BES
tomava mais uma vez a dianteira, sendo dos primeiros a oferecer-se para assumir
a sua quota nesses empréstimos.
“O BES
posiciona-se sempre como um banco privado mas que não deixa de ser um
instrumento de apoio ao desenvolvimento da economia”, define um banqueiro
concorrente de Salgado.
O voluntarismo do
BES faz-se notar mesmo perante dificuldades de outros bancos, se essa for a
preocupação do Governo. Foi a única instituição que em 2012 se disponibilizou a
apoiar o processo de recapitalização do Banif. Já antes, em Maio de 2009,
apesar de assumir não ter nenhum interesse em ajudar a recuperar o Banco
Privado Português, o banqueiro admitia “estudar” essa opção “se o Estado o
solicitar”.
Há quase 150
anos, como diz Ricardo Salgado, que o BES se relaciona com todos os regimes.
Mas com nenhum outro primeiro-ministro teve o presidente do banco uma relação
tão próxima como com José Sócrates. Próxima por acreditar nas ideias do
ex-primeiro-ministro para Portugal. E por respeitar aqueles que têm coragem.
Apoiou
publicamente a política de fomento de grandes obras públicas, como a construção
do novo aeroporto de Lisboa e da ligação de comboio de alta velocidade até
Espanha. Aplaudiu, enquanto maior accionista da Portugal Telecom, os projectos
do Governo para o País dar o salto tecnológico. Defendeu, enquanto pôde, o PEC
IV, o plano de austeridade que mereceu o chumbo do PSD e que acabou por levar à
demissão de Sócrates e ao pedido de ajuda à troika.
Salgado raras
vezes se manifestou publicamente contra decisões de José Sócrates. A venda da
participação da Portugal Telecom na operadora brasileira Vivo à Telefónica foi
das poucas situações em que o desacordo foi visível.
"Quando, a 30 de Junho de
2010, o Governo vetou em assembleia geral a venda da participada da PT, com a
justificação do 'interesse nacional', o banqueiro era dos poucos que sabia que
José Sócrates iria usar a 'golden share'."
Quando, a 30 de
Junho de 2010, o Governo vetou em assembleia geral a venda da participada da
PT, com a justificação do “interesse nacional”, o banqueiro era dos poucos que
sabia que José Sócrates iria usar a “golden share”, as 500 acções que davam ao
Estado poderes especiais. Defensor do negócio, Salgado votou a favor da venda,
desafiando publicamente o Executivo. O líder do BES remeteu para o
primeiro-ministro a responsabilidade de encontrar uma solução para o processo
cujo desfecho antevia “complicado”.
No entanto, menos
de um mês depois, a 28 de Julho, na sequência das negociações da equipa de
Henrique Granadeiro com a Telefónica, a venda da Vivo era aprovada por mais 350
milhões de euros. Ficava ainda assegurada a permanência da PT no Brasil, com
uma posição na operadora Oi. Depois das críticas públicas, Salgado acabou por
agradecer a intervenção de Sócrates, que elevou o valor do negócio a 7,5 mil
milhões de euros.
O BANCO QUE NUNCA
DEIXA CAIR OS SEUS
Não há Governo em
Portugal que não tenha tido na sua estrutura algum quadro do BES. Mas o mesmo
acontece com os restantes bancos. Entre o Executivo e o BCP já circularam mais
responsáveis do que entre São Bento e qualquer outro grupo.
Manuel Pinho,
administrador do BES que assumiu a pasta da Economia do Governo de José
Sócrates, foi das transferências mais criticadas de sempre na praça pública.
Até esse momento, não era comum um membro da administração de um grande banco
passar directamente para o Executivo.
Quando recebeu o
convite para ser porta-voz para os assuntos económicos do então candidato José
Sócrates, ainda Santana Lopes era o líder do Governo. Não se perspectivavam
sequer eleições.
O economista
visitava um museu em Nova Iorque quando recebeu o telefonema. Fazia 50 anos e
tinha já declinado um convite anterior, de Eduardo Ferro Rodrigues, para
participar em debates organizados pelo PS sobre economia.
Consciente do que
a assunção do cargo de porta-voz de Sócrates implicava, ligou de imediato a
Ricardo Salgado. O banqueiro mostrou-se contrário às pretensões do seu
administrador. “Não nos queremos meter em política, nem pense!”, comunicou-lhe.
Mas Pinho entendia que a decisão era sua e enfrentou o chefe de há uma década.
Cerca de uma hora depois, o banqueiro ligou-lhe de volta: “Estive a pensar melhor.
Faça lá isso. Mas tente não dar muito nas vistas. E não me embarace”, avisou-o.
Nas eleições
antecipadas marcadas por Jorge Sampaio, Manuel Pinho aceitou ser candidato a
deputado por Aveiro e, com a vitória de Sócrates, subiu a ministro da Economia.
Meses antes, era já óbvio para Ricardo Salgado que o economista iria assumir a
pasta após a vitória nas legislativas.
Pinho, no BES
desde 1994, pediu a demissão do banco. Salgado entendeu que era a atitude
correcta. Mas garantiu-lhe que quando quisesse voltar as portas estariam
abertas. Foi o que aconteceu meses depois da sua saída abrupta do Governo, em
Julho de 2007. O economista regressou ao grupo para um lugar simbólico na
administração do BES África.
“'Dos talvez dez ministros das
Finanças que o País teve [desde as privatizações], cinco entraram ou saíram de
outros bancos em Portugal e nenhum para o BES', lembrava Ricardo Salgado numa
entrevista ao Diário de Notícias, em Abril de 2010."
Como funciona
numa perspectiva de longo prazo, o banco é conhecido por tratar bem os seus
quadros antes, durante e depois de saírem da instituição. Uma ligação umbilical
que fomenta a perpetuação do poder.
O BES ganhou a
imagem de nunca deixar cair ninguém. Por essa razão, muitos dos que saem, mais
cedo ou mais tarde voltam à instituição. Em cada Governo em Portugal esteve um
quadro do BES. Em regra, em pastas ligadas às Finanças, Economia ou Obras
Públicas, quando este era um sector relevante. O banco sempre contestou essa
apreciação.
“Dos talvez dez
ministros das Finanças que o País teve [desde as privatizações], cinco entraram
ou saíram de outros bancos em Portugal e nenhum para o BES”, lembrava Ricardo
Salgado numa entrevista ao Diário de Notícias, em Abril de 2010. O banqueiro
admitia, ainda assim, que “Durão Barroso foi conselheiro do BES e Manuel Pinho
foi de facto do grupo”.
Mas muitos outros
foram os nomes de ministros e secretários de Estado que passaram pelo banco.
António Mexia, administrador do BESI entre 1990 e 1998, foi ministro das Obras
Públicas, Transportes e Comunicações do Governo de Santana Lopes. Do mesmo
elenco fez também parte Manuel Lencastre. O antigo secretário de Estado do
Desenvolvimento Económico integrava o comité de investimento do BES Capital de
Risco em 2009.
Ainda antes, com
Durão Barroso, também ele ex-consultor do banco e ministro de Cavaco Silva, foi
Miguel Frasquilho, director na Espírito Santo Research, que assumiu o lugar de
secretário de Estado do Tesouro e Finanças. Uma escolha que nunca agradou à
então ministra Manuela Ferreira Leite, sendo públicos os seus desentendimentos.
Do Governo de Passos
Coelho fez parte Ana Rita Barosa, administradora de várias empresas do grupo de
Ricardo Salgado. A gestora assumiu a Secretaria de Estado da Administração
Local em Janeiro de 2013, mas ficou menos de três meses no cargo. Voltou ao
BES.
Numa outra remodelação,
Pedro Gonçalves, também com uma carreira no Banco Espírito Santo, onde
desempenhou vários cargos de direcção, entrou para o Executivo PSD/CDS-PP como
secretário de Estado da Inovação, Investimento e Competitividade.
"A família cultiva o poder
instalado em cada momento. Foi assim com Salazar, Sócrates ou Passos Coelho,
como com todos os outros Executivos."
Os exemplos
recuam até aos anos 1980, quando o BES ainda se chamava BESCL e estava nas mãos
do Estado. Pelo Governo e pelo banco passaram nomes como José Silveira Godinho,
Alexandre Vaz Pinto, Ernâni Lopes, Proença de Carvalho, João Lopes Raimundo,
Miguel Horta e Costa, Francisco Murteira Nabo, Mário Martins Adegas ou Rui
Machete.
Em 2014, foi a
vez de Jaime Gama, ex-presidente da Assembleia da República, assumir funções
como presidente não executivo do BES Açores.
A família cultiva
o poder instalado em cada momento. Foi assim com Salazar, Sócrates ou Passos
Coelho, como com todos os outros Executivos.
Mas é por Mário
Soares que Ricardo Salgado tem uma consideração especial. É ao antigo
Presidente da República que os Espírito Santo devem a recuperação do banco no
início dos anos 1990. Sem a sua intervenção junto de François Mitterrand, a
parceria com o Crédit Agricole nunca teria ido tão longe e o grupo não teria
sido reconstruído.
Quando em 2005
Mário Soares se adivinhava de novo candidato à Presidência da República, o
banqueiro participou num almoço em casa de Ilídio Pinho, em Vale de Cambra, que
acabou por se transformar numa iniciativa de apoio ao antigo Chefe de Estado. O
empresário tem por hábito promover estes encontros com personalidades de áreas
que vão da política à banca, passando pelos negócios.
No evento do
início desse Verão de 2005, Salgado, o primo José Maria Ricciardi e as mulheres
de ambos chegaram juntos. O banqueiro, com uma agenda permanentemente ocupada,
fez questão de estar no almoço informal. Presentes estavam algumas dezenas de
amigos de Ilídio Pinho, entre os quais muitos simpatizantes de Mário Soares, de
diferentes áreas políticas.
O antigo
Presidente da República não estava presente, mas a sua mulher, Maria Barroso,
serviu de mensageira do recado que Ilídio Pinho fez questão de transmitir a
Soares. No final do almoço, o anfitrião dirigiu-se à antiga primeira-dama e
disse: “Espero que o dr. Mário Soares avance para nova candidatura”.
Para os
presentes, ficou claro que o almoço em Vale de Cambra acabou por funcionar como
o empurrão que faltava para o histórico do PS entrar na corrida a Belém. Ainda
que alguns dos convidados de Ilídio Pinho tenham sido surpreendidos pelo
desfecho do encontro.
A 31 de Agosto de
2005, Mário Soares havia de anunciar oficialmente a sua terceira candidatura à
Presidência da República contra Cavaco Silva.
"As ideias de Sócrates
assentaram como uma luva no conceito que o banqueiro sempre teve para o País. O
salto tecnológico e as grandes obras públicas eram música para os ouvidos de
Salgado, que sempre se opôs a um 'Portugal dos pequeninos'."
A José Sócrates,
Ricardo Salgado nunca deu o seu apoio político explícito. Mas nunca teve tanta
sintonia com outro dirigente como com o antigo primeiro-ministro.
As ideias de
Sócrates assentaram como uma luva no conceito que o banqueiro sempre teve para
o País. O salto tecnológico e as grandes obras públicas eram música para os
ouvidos de Salgado, que sempre se opôs a um “Portugal dos pequeninos”.
A evolução nas
telecomunicações, que o primeiro-ministro ambicionava, exigia o apoio do maior
accionista da Portugal Telecom. O aumento do número de computadores nas
escolas, o desenvolvimento da banda larga e da fibra óptica em todo o País
implicava que a operadora apoiasse e contribuísse para o programa. Era matéria
da administração da PT, mas o Executivo queria o apoio dos seus maiores
accionistas.
Por isso, o
ministro Mário Lino chamou o líder do BES, accionista estratégico da PT. Como
tinha explicado às várias operadoras o que o projecto envolvia, o governante
quis dar nota pessoal a Salgado dos objectivos que perseguia.
"Também os grandes projectos
de infra-estruturas foram tema de reuniões. Salgado compreendeu o objectivo do
Governo. Era pelo desenvolvimento do País e contra os que defendiam que se
devia apanhar o TGV em Badajoz."
Também os grandes
projectos de infra-estruturas foram tema de reuniões. Salgado compreendeu o
objectivo do Governo. Era pelo desenvolvimento do País e contra os que
defendiam que se devia apanhar o TGV em Badajoz. O banqueiro manifestou-se
publicamente a favor do novo aeroporto e da alta velocidade, mais do que
qualquer responsável de outro banco.
Em Janeiro de
2012, Salgado defendia publicamente a modernização dos portos, a melhoria das
redes de caminho-de-ferro e aeroportos com capacidade para receber aviões
Airbus 380. “Estamos no centro da globalização”, frisava.
Com Sócrates terá
debatido o projecto de compra da TVI por parte da Ongoing, que acabou chumbado
pela Autoridade da Concorrência.
Foi também no
mandato do último primeiro-ministro socialista, em Novembro de 2006, que a
Espírito Santo International, holding de controlo do grupo, vendeu a companhia
aérea Portugália à TAP, por 140 milhões de euros.
Em nenhum
momento, público ou privado, o banqueiro contestou uma decisão de um Governo
sem manifestar ao mesmo tempo compreensão. E nas conversas que ao longo dos
anos foi tendo com os diversos ministros, sempre fez uma análise da correlação
de forças entre os interesses do BES e do Estado.
"[Ricardo Salgado] nunca se
bate pela sua posição, não entra em desacordo explícito, não se impõe nem faz
pressão. Dá apenas a sua opinião quando lha pedem."
“Ricardo Salgado
procura sempre uma solução que salvaguarde os interesses que ele considera que
tem a defender, mas que, ao mesmo tempo, vá ao encontro dos interesses dos
outros”, retratam ex-governantes. A sua sensibilidade política é reconhecida
por vários antigos ministros.
O banqueiro
mostra a sua influência porque conhece bem os assuntos. Informa-se sobre os
seus interlocutores. Pensa em soluções que sejam do interesse de todos. Promove
um equilíbrio que se ajuste aos diferentes pontos de vista. Não quer perder.
Por isso, não vai perder.
Nunca se bate
pela sua posição, não entra em desacordo explícito, não se impõe nem faz
pressão. Dá apenas a sua opinião quando lha pedem e faz questão, mesmo que
esteja em desacordo, de mostrar que entende as posições da outra parte. É a arte
do banqueiro a lidar com os governos.
As reuniões de
Ricardo Salgado com os ministros são rápidas, práticas, sem confrontações nem
rodeios. O banqueiro nunca se perde com pormenores, vai directo aos assuntos e
é bom ouvinte. Não empata. Se um assunto está tratado, não espera mais
conversa. Marca as reuniões que lhe são pedidas com a maior brevidade possível
e é sempre pontual.
Também para os
outros banqueiros, o BES é proactivo e voluntarioso. Salgado é a imagem da
discrição, da sobriedade e parco em palavras. Pronuncia apenas as suficientes
para transmitir a ideia de confiança e de liderança.
Como instituição
muito próxima do regime, colaborador do sistema político e económico, o grupo
assumiu poder ao longo dos anos na sociedade portuguesa. Num país pequeno, onde
são muitas vezes visíveis as fragilidades das instituições, onde o BES entra é
para ter poder. E o seu foi o único que perdurou.
Ricardo Salgado
só funciona no backstage. Saiu de cena quando, em finais de 2013, estava a ser
atacado em várias frentes e tinha inúmeros fogos a que acudir. Com a guerra
aberta por Pedro Queiroz Pereira pelo controlo da Semapa, os problemas em
Angola deixados pela gestão de Álvaro Sobrinho e as dificuldades financeiras
detectadas no grupo, Salgado protegeu-se.
"O grupo ficou frágil por
força da sua política. A crise acentuou os resultados da sua estratégia de
parceria, pelas maiores exigências de capital e pelo maior escrutínio das
autoridades ao sistema financeiro."
A sua frequente
ausência passou a ser notada nas reuniões no Banco de Portugal, no Ministério
das Finanças e na Associação Portuguesa de Bancos. O seu braço direito Amílcar
Morais Pires e António Souto, também administrador do BES, passaram a
representá-lo nestes encontros.
Para alguns, o
grupo ficou frágil por força da sua política. A crise acentuou os resultados da
sua estratégia de parceria, pelas maiores exigências de capital e pelo maior
escrutínio das autoridades ao sistema financeiro. As
fragilidades tornaram-se visíveis.
Desde que assumiu
a liderança do banco, no início dos anos 1990, Ricardo Salgado nunca se inibiu
de comentar publicamente as grandes decisões do Governo ou as políticas
seguidas no País. De orçamentos de Estado a elencos governativos, de aumentos
de impostos a grandes investimentos públicos. E nunca levou um puxão de orelhas
como o que Vítor Gaspar lhe deu quando o banqueiro levantou dúvidas sobre a
sustentabilidade da dívida pública.”
Sem comentários:
Enviar um comentário