quarta-feira, 16 de julho de 2014

O banco de todos os regimes / “O Último Banqueiro – Ascensão e Queda de Ricardo Salgado”


O banco de todos os regimes
11 Julho 2014 / OBSERVADOR
Novo livro descreve Ricardo Salgado como um homem de 'backstage'. "Saiu de cena quando, em finais de 2013, estava a ser atacado em várias frentes e tinha inúmeros fogos a que acudir".

Intitula-se “O Último Banqueiro – Ascensão e Queda de Ricardo Salgado”, é editado pela Lua de Papel e estará a partir de sábado, 12 de julho, nas livrarias. Escrito pelas jornalistas Maria João Babo e Maria João Gago, do Jornal de Negócios, o livro traça o percurso, o perfil e as relações com o poder de Ricardo Salgado, presidente executivo do Banco Espírito Santo (BES) desde 1991, que renunciou, recentemente, ao cargo, na sequência da crise que se abateu sobre o Grupo Espírito Santo.

Em pré-publicação, o Observador revela um dos capítulos do livro, “O banco de todos os regimes”. No texto, as autoras mostram como Ricardo Salgado se relacionou com os sucessivos governos e com os protagonistas da vida política portuguesa. Uma declaração do banqueiro é um dos elementos reveladores do pragmatismo que lhe serviu de orientação na gestão dos interesses do BES e do Grupo: “Estivemos na monarquia, na implantação da República, na ditadura, nas nacionalizações deixámos de estar porque tivemos de emigrar, quando voltámos com as privatizações continuámos a dialogar com todos os governos, seja de um partido ou de outro”.

“Vítor Gaspar entrou na reunião com a Associação Portuguesa de Bancos a pés juntos. “Se eu fizesse declarações sobre a dívida do BES tinha muito a dizer”, avisou, num tom claro, duro e incisivo, perante os 15 responsáveis convocados para o encontro no Ministério das Finanças.

Dias antes, a 3 de Junho de 2013, o presidente do BES tinha manifestado publicamente dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida soberana, que muito desagradaram ao ministro. “Será que a dívida portuguesa é sustentável e vamos poder viver sem uma reestruturação da dívida? Esta é a grande questão que vai ter que ser respondida”, deixou escapar Ricardo Salgado numa conferência em que participara no Porto.

Vítor Gaspar entendeu que não podia deixar passar em claro as declarações do banqueiro. Na primeira oportunidade pronunciou a ameaça que podia destruir o banco. O puxão de orelhas tinha ainda um subentendido: a fragilidade financeira do BES era muito mais complicada do que naquele momento se imaginava.

Os sete membros da direcção da Associação Portuguesa de Bancos e Álvaro Santos Pereira, ainda ministro da Economia, paralisaram perante o inédito da situação. Nunca um governante tinha censurado de forma tão implacável o decano dos banqueiros portugueses.

Ricardo Salgado não participava na reunião. Foi Amílcar Morais Pires, seu braço direito, o alvo da recriminação. Depois de um longo silêncio, o administrador financeiro apressou-se a garantir que o presidente do BES não tinha tido a intenção de passar uma imagem negativa da dívida nacional. As declarações de Salgado, alegou, tinham em vista apenas ajudar a baixar os juros.

Mas o mal já estava feito. E o desconforto que a situação provocou na cúpula do banco levou o próprio Ricardo Salgado a ligar mais tarde ao ministro desculpando-se e explicando não ter querido dizer o que disse.

Em Portugal, o regresso aos mercados era o tema quente do momento. No final de Maio, tinha sido entregue o Orçamento Rectificativo para responder à obrigação de repor os subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos ditada pelo Tribunal Constitucional. Enraizava-se a ideia de que o programa de ajustamento português precisaria de mais tempo, risco que o Executivo recusava.

Paulo Portas tinha assumido a tarefa de elaborar o guião da reforma do Estado. A crise na coligação agudizava-se. A 1 de Julho, Vítor Gaspar apresentava a definitiva demissão, depois das tentativas anteriores, queixando-se da falta de coesão no Governo.

O episódio com Ricardo Salgado foi, para alguns dos que testemunharam o puxão de orelhas de Vítor Gaspar ao banqueiro, das melhores intervenções do ministro.

A relação da banca com o Governo estava, ao fim de tantos anos, diferente. O pedido de ajuda de Portugal e a chegada da troika distanciara banqueiros e governantes. Enfrentar os interesses instalados era a marca do discurso do novo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho.

"Como nenhum outro banqueiro, a sua influência junto dos diferentes governos foi sempre forte. Nunca se inibiu de comentar as grandes decisões políticas. Mais para as elogiar, do que criticar ou condenar. Habituou-se a ser ouvido."

“O BES é um banco de todos os regimes. É assim há mais de 100 anos”. É esta a resposta que o mais antigo banqueiro português costuma dar sempre que é confrontado com a acusação de que o BES é o banco do regime.

“O BES tem de dialogar com todos os governos e todos os regimes. Estivemos na monarquia, na implantação da República, na ditadura, nas nacionalizações deixámos de estar porque tivemos de emigrar, quando voltámos com as privatizações continuámos a dialogar com todos os governos, seja de um partido ou de outro”, dizia numa entrevista à RTP em finais de 2010. Nessa altura, eram frequentes as declarações públicas de Ricardo Salgado apoiando José Sócrates e as suas políticas.

Como nenhum outro banqueiro, a sua influência junto dos diferentes governos foi sempre forte. Salgado destacou-se sempre dos seus pares pelo poder da perenidade. Permaneceu em funções durante mais de duas décadas. Como líder do BES, nunca se inibiu de comentar as grandes decisões políticas. Mais para as elogiar, do que criticar ou condenar. Habituou-se a ser ouvido. Fosse pelo tempo no cargo, fosse pelos contactos e conhecimentos privilegiados que por várias vezes se mostraram úteis aos executivos. Sempre disse que as suas relações com os políticos eram “de respeito mútuo”. Apenas essas. E que tinha amigos “em todos os partidos”.

Mas por alguma razão o banqueiro foi o único com quem José Sócrates quis falar quando, em 2011, resistia ainda a pedir ajuda externa. Uma inevitabilidade que Teixeira dos Santos tinha compreendido quando ouviu Salgado dizer “estamos numa situação limite”.

A chegada da troika em 2011 viria, porém, a mudar a relação da banca com o Governo. O memorando de entendimento assinado com o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu foi a base do programa de Pedro Passos Coelho. E o primeiro-ministro estava decidido, desde a sua chegada a São Bento, a ir mais longe do que mandavam os credores internacionais.

Os independentes que escolheu para as Finanças e para a Economia, pastas com que a banca mais se relaciona, aproveitaram para mostrar o seu distanciamento. Sem ligações partidárias nem pretensões com o poder económico, Vítor Gaspar e Álvaro Santos Pereira fizeram questão de separar as águas.

A crise tinha agrilhoado as instituições financeiras portuguesas, que viam o seu poder abalado. O corte dos ratings, a sua exposição à dívida pública e ao sector empresarial do Estado, as pressões para que o seu reforço de solidez fosse feito com dinheiro público tinham fragilizado os bancos. A capacidade de se assumirem como parceiros que sempre foram dos governos, aliança benéfica para ambas as partes, estava diminuída.

"O primeiro confronto com o grupo Espírito Santo não se fez esperar. A 30 de Agosto de 2011 (...) o Governo contratou por ajuste directo a Caixa Banco de Investimento e a boutique financeira Perella Weinberg para assessorar as privatizações do sector energético. A escolha indignou o BES Investimento, habituado a partilhar estas operações com o banco do Estado."

Pedro Passos Coelho chegou a São Bento no Verão de 2011 para cumprir o desejo da troika de desalojar interesses instalados. A banca era um dos sectores alvo dessa hostilidade política.

O primeiro confronto com o grupo Espírito Santo não se fez esperar. A 30 de Agosto de 2011, menos de dois meses depois de tomar posse, o Governo contratou por ajuste directo a Caixa Banco de Investimento e a boutique financeira Perella Weinberg para assessorar as privatizações do sector energético. O Estado estava de saída da EDP, da REN e da Galp. A escolha indignou o BES Investimento, habituado a partilhar estas operações com o banco do Estado. Afinal, estavam em causa comissões de cerca de 15 milhões de euros.

José Maria Ricciardi não demorou a telefonar ao primeiro-ministro e ao ministro dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, para transmitir o seu desagrado. A escolha da Perella tinha sido feita sem concurso público e sem consulta aos bancos pré-qualificados. E interrompia uma prática de adjudicação a bancos portugueses, reclamava o presidente do banco de investimento do BES.

“Transmiti a vários membros do Governo a minha discordância pelo facto de o Estado ter contratado a firma norte-americana Perella por ajuste directo, quando se exigia, na observância do rigor e da ética, que se elegessem as assessorias financeiras através de concurso público”, confirmou Ricciardi, em Outubro de 2012. O comunicado surgia na sequência das notícias que davam conta de que tinha sido escutado a falar com o primeiro-ministro no âmbito das investigações ao caso de fraude fiscal Monte Branco.

O banqueiro recusava as pressões de que era acusado. “Não traduz ilicitude, irregularidade ou sequer censura que se questione eventualmente um membro do Governo sobre se há intenção de ceder a pressões políticas promovidas pelas lideranças europeias”, defendia-se.

A revelação dos telefonemas entre o banqueiro e o primeiro-ministro obrigou Passos Coelho a reagir. “Tenho todo o prazer e até gosto que essas escutas sejam publicamente reveladas. Estou muito consciente das minhas conversas privadas ou telefónicas e não tenho nenhum receio de que alguma coisa que tenha dito venha ao conhecimento público”. Para o líder do Governo o episódio era mais uma prova do seu empenho na guerra aos velhos poderes.

“Valeu a pena protestar”, criticou Fernando Ulrich ainda nesse Outubro de 2012. "Quem contestou teve logo outro ajuste directo a seguir", denunciou o líder do BPI, apontando o dedo ao BES sem o nomear."

“Valeu a pena protestar”, criticou Fernando Ulrich ainda nesse Outubro de 2012. “Quem contestou teve logo outro ajuste directo a seguir”, denunciou o líder do BPI, apontando o dedo ao BES sem o nomear. O banqueiro não deixou passar em claro que o segundo contrato como assessor do Estado para as privatizações, desta vez da TAP e da ANA, tinha sido entregue “a quem protestou” contra a anterior escolha da Perella Weinberg.

Apesar de não ter sido contratado pelo Estado na privatização da EDP, o BESI acabou por participar na operação, como assessor financeiro da China Three Gorges, a empresa que saiu vencedora. E além da assessoria ao Estado nas privatizações da TAP e da ANA, o banco conseguiu ainda ficar responsável pelo dossier de transferência dos fundos de pensões da banca para a Segurança Social, no final de 2011.

Tal como havia elogiado José Sócrates antes, Ricardo Salgado lisonjeava agora Passos Coelho. “O Governo está a actuar de forma excelente e tem a confiança da maioria dos portugueses e a minha também”, manifestava em Agosto de 2011, dois meses depois das eleições que deram a vitória ao PSD.

O banqueiro considerava ainda “extraordinária” a forma como o Executivo liderado por Passos Coelho estava a encarar o compromisso assumido com a troika e a cumprir os objectivos traçados como contrapartida do empréstimo de 78 mil milhões de euros a Portugal.

Mas as circunstâncias não permitiam fazer apenas elogios. Com os ratings na categoria de “lixo”, o reforço das exigências do Banco de Portugal para os rácios de solidez da banca e a necessidade de desalavancagem, era a vez das instituições financeiras colocarem pressão sobre o Estado. Os bancos, nomeadamente o BES e o BCP, tinham dado o máximo apoio na compra de dívida soberana assim como no financiamento às empresas públicas, e agora estavam a sofrer as consequências.

No total, a exposição da banca ao Estado estava estimada em 50 mil milhões de euros. Ricardo Salgado avisava: o BES poderia “aumentar o crédito à economia se o Estado e diversas entidades públicas pagassem as dívidas”.

O financiamento às empresas era a preocupação central do então ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira. Em 2011 e no início de 2012, a necessidade de desalavancagem da banca reduziu o crédito em quase 20 mil milhões de euros. As PME estavam a ser sacrificadas.

"Também com Álvaro Santos Pereira, a reindustrialização, o financiamento da economia ou a criação do banco de fomento foram temas de discussão com os banqueiros. O BES, historicamente ligado às empresas, avisava que não podia fazer mais."

Como noutros momentos, com outros governos, os bancos tinham sido chamados para apoiar políticas de investimento público ou de desenvolvimento tecnológico, assessorar o Estado ou financiá-lo. Também com Álvaro Santos Pereira, a reindustrialização, o financiamento da economia ou a criação do banco de fomento foram temas de discussão com os banqueiros. O BES, historicamente ligado às empresas, avisava que não podia fazer mais.

Para Ricardo Salgado a prioridade era então passar a crise sem necessidade de recorrer ao apoio do Estado – a linha de 12 mil milhões de euros negociada com a troika para a banca a que BCP, BPI e Banif tiveram de acorrer.

“Na nossa casa costumamos dizer que o interesse primeiro é o do país, o segundo é o da instituição e só em terceiro lugar é que aparecem os accionistas”. O lema de família, evocado por Ricardo Salgado em diversas situações, tem mais de 100 anos.

Historicamente o BES teve sempre uma relação de parceria com os governos e com as empresas. Com a particularidade de não fazer banca só no sentido estrito, mas também para ganhar influência no mercado social, institucional, financeiro e político.

A sua colaboração com o poder em exercício chegou a ser mais activa do que a da Caixa Geral de Depósitos. Era frequente o BES antecipar-se ao próprio banco público na aprovação de financiamentos ao sector empresarial do Estado mesmo quando, no auge da crise, esse apoio lhe era solicitado.

Assim aconteceu quando Vítor Gaspar pediu à banca nacional que substituísse os bancos estrangeiros no financiamento às empresas públicas. O acordo assinado com a troika tinha revelado um buraco de 20 mil milhões de euros de dívidas do sector empresarial que era necessário renovar. Com a banca internacional de partida de um país resgatado, foram os grandes bancos que socorreram o Estado. O BES tomava mais uma vez a dianteira, sendo dos primeiros a oferecer-se para assumir a sua quota nesses empréstimos.



“O BES posiciona-se sempre como um banco privado mas que não deixa de ser um instrumento de apoio ao desenvolvimento da economia”, define um banqueiro concorrente de Salgado.

O voluntarismo do BES faz-se notar mesmo perante dificuldades de outros bancos, se essa for a preocupação do Governo. Foi a única instituição que em 2012 se disponibilizou a apoiar o processo de recapitalização do Banif. Já antes, em Maio de 2009, apesar de assumir não ter nenhum interesse em ajudar a recuperar o Banco Privado Português, o banqueiro admitia “estudar” essa opção “se o Estado o solicitar”.

Há quase 150 anos, como diz Ricardo Salgado, que o BES se relaciona com todos os regimes. Mas com nenhum outro primeiro-ministro teve o presidente do banco uma relação tão próxima como com José Sócrates. Próxima por acreditar nas ideias do ex-primeiro-ministro para Portugal. E por respeitar aqueles que têm coragem.

Apoiou publicamente a política de fomento de grandes obras públicas, como a construção do novo aeroporto de Lisboa e da ligação de comboio de alta velocidade até Espanha. Aplaudiu, enquanto maior accionista da Portugal Telecom, os projectos do Governo para o País dar o salto tecnológico. Defendeu, enquanto pôde, o PEC IV, o plano de austeridade que mereceu o chumbo do PSD e que acabou por levar à demissão de Sócrates e ao pedido de ajuda à troika.

Salgado raras vezes se manifestou publicamente contra decisões de José Sócrates. A venda da participação da Portugal Telecom na operadora brasileira Vivo à Telefónica foi das poucas situações em que o desacordo foi visível.

"Quando, a 30 de Junho de 2010, o Governo vetou em assembleia geral a venda da participada da PT, com a justificação do 'interesse nacional', o banqueiro era dos poucos que sabia que José Sócrates iria usar a 'golden share'."

Quando, a 30 de Junho de 2010, o Governo vetou em assembleia geral a venda da participada da PT, com a justificação do “interesse nacional”, o banqueiro era dos poucos que sabia que José Sócrates iria usar a “golden share”, as 500 acções que davam ao Estado poderes especiais. Defensor do negócio, Salgado votou a favor da venda, desafiando publicamente o Executivo. O líder do BES remeteu para o primeiro-ministro a responsabilidade de encontrar uma solução para o processo cujo desfecho antevia “complicado”.

No entanto, menos de um mês depois, a 28 de Julho, na sequência das negociações da equipa de Henrique Granadeiro com a Telefónica, a venda da Vivo era aprovada por mais 350 milhões de euros. Ficava ainda assegurada a permanência da PT no Brasil, com uma posição na operadora Oi. Depois das críticas públicas, Salgado acabou por agradecer a intervenção de Sócrates, que elevou o valor do negócio a 7,5 mil milhões de euros.

O BANCO QUE NUNCA DEIXA CAIR OS SEUS

Não há Governo em Portugal que não tenha tido na sua estrutura algum quadro do BES. Mas o mesmo acontece com os restantes bancos. Entre o Executivo e o BCP já circularam mais responsáveis do que entre São Bento e qualquer outro grupo.

Manuel Pinho, administrador do BES que assumiu a pasta da Economia do Governo de José Sócrates, foi das transferências mais criticadas de sempre na praça pública. Até esse momento, não era comum um membro da administração de um grande banco passar directamente para o Executivo.

Quando recebeu o convite para ser porta-voz para os assuntos económicos do então candidato José Sócrates, ainda Santana Lopes era o líder do Governo. Não se perspectivavam sequer eleições.

O economista visitava um museu em Nova Iorque quando recebeu o telefonema. Fazia 50 anos e tinha já declinado um convite anterior, de Eduardo Ferro Rodrigues, para participar em debates organizados pelo PS sobre economia.

Consciente do que a assunção do cargo de porta-voz de Sócrates implicava, ligou de imediato a Ricardo Salgado. O banqueiro mostrou-se contrário às pretensões do seu administrador. “Não nos queremos meter em política, nem pense!”, comunicou-lhe. Mas Pinho entendia que a decisão era sua e enfrentou o chefe de há uma década. Cerca de uma hora depois, o banqueiro ligou-lhe de volta: “Estive a pensar melhor. Faça lá isso. Mas tente não dar muito nas vistas. E não me embarace”, avisou-o.

Nas eleições antecipadas marcadas por Jorge Sampaio, Manuel Pinho aceitou ser candidato a deputado por Aveiro e, com a vitória de Sócrates, subiu a ministro da Economia. Meses antes, era já óbvio para Ricardo Salgado que o economista iria assumir a pasta após a vitória nas legislativas.

Pinho, no BES desde 1994, pediu a demissão do banco. Salgado entendeu que era a atitude correcta. Mas garantiu-lhe que quando quisesse voltar as portas estariam abertas. Foi o que aconteceu meses depois da sua saída abrupta do Governo, em Julho de 2007. O economista regressou ao grupo para um lugar simbólico na administração do BES África.

“'Dos talvez dez ministros das Finanças que o País teve [desde as privatizações], cinco entraram ou saíram de outros bancos em Portugal e nenhum para o BES', lembrava Ricardo Salgado numa entrevista ao Diário de Notícias, em Abril de 2010."

Como funciona numa perspectiva de longo prazo, o banco é conhecido por tratar bem os seus quadros antes, durante e depois de saírem da instituição. Uma ligação umbilical que fomenta a perpetuação do poder.

O BES ganhou a imagem de nunca deixar cair ninguém. Por essa razão, muitos dos que saem, mais cedo ou mais tarde voltam à instituição. Em cada Governo em Portugal esteve um quadro do BES. Em regra, em pastas ligadas às Finanças, Economia ou Obras Públicas, quando este era um sector relevante. O banco sempre contestou essa apreciação.

“Dos talvez dez ministros das Finanças que o País teve [desde as privatizações], cinco entraram ou saíram de outros bancos em Portugal e nenhum para o BES”, lembrava Ricardo Salgado numa entrevista ao Diário de Notícias, em Abril de 2010. O banqueiro admitia, ainda assim, que “Durão Barroso foi conselheiro do BES e Manuel Pinho foi de facto do grupo”.

Mas muitos outros foram os nomes de ministros e secretários de Estado que passaram pelo banco. António Mexia, administrador do BESI entre 1990 e 1998, foi ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações do Governo de Santana Lopes. Do mesmo elenco fez também parte Manuel Lencastre. O antigo secretário de Estado do Desenvolvimento Económico integrava o comité de investimento do BES Capital de Risco em 2009.

Ainda antes, com Durão Barroso, também ele ex-consultor do banco e ministro de Cavaco Silva, foi Miguel Frasquilho, director na Espírito Santo Research, que assumiu o lugar de secretário de Estado do Tesouro e Finanças. Uma escolha que nunca agradou à então ministra Manuela Ferreira Leite, sendo públicos os seus desentendimentos.

Do Governo de Passos Coelho fez parte Ana Rita Barosa, administradora de várias empresas do grupo de Ricardo Salgado. A gestora assumiu a Secretaria de Estado da Administração Local em Janeiro de 2013, mas ficou menos de três meses no cargo. Voltou ao BES.

Numa outra remodelação, Pedro Gonçalves, também com uma carreira no Banco Espírito Santo, onde desempenhou vários cargos de direcção, entrou para o Executivo PSD/CDS-PP como secretário de Estado da Inovação, Investimento e Competitividade.

"A família cultiva o poder instalado em cada momento. Foi assim com Salazar, Sócrates ou Passos Coelho, como com todos os outros Executivos."

Os exemplos recuam até aos anos 1980, quando o BES ainda se chamava BESCL e estava nas mãos do Estado. Pelo Governo e pelo banco passaram nomes como José Silveira Godinho, Alexandre Vaz Pinto, Ernâni Lopes, Proença de Carvalho, João Lopes Raimundo, Miguel Horta e Costa, Francisco Murteira Nabo, Mário Martins Adegas ou Rui Machete.

Em 2014, foi a vez de Jaime Gama, ex-presidente da Assembleia da República, assumir funções como presidente não executivo do BES Açores.

A família cultiva o poder instalado em cada momento. Foi assim com Salazar, Sócrates ou Passos Coelho, como com todos os outros Executivos.

Mas é por Mário Soares que Ricardo Salgado tem uma consideração especial. É ao antigo Presidente da República que os Espírito Santo devem a recuperação do banco no início dos anos 1990. Sem a sua intervenção junto de François Mitterrand, a parceria com o Crédit Agricole nunca teria ido tão longe e o grupo não teria sido reconstruído.

Quando em 2005 Mário Soares se adivinhava de novo candidato à Presidência da República, o banqueiro participou num almoço em casa de Ilídio Pinho, em Vale de Cambra, que acabou por se transformar numa iniciativa de apoio ao antigo Chefe de Estado. O empresário tem por hábito promover estes encontros com personalidades de áreas que vão da política à banca, passando pelos negócios.

No evento do início desse Verão de 2005, Salgado, o primo José Maria Ricciardi e as mulheres de ambos chegaram juntos. O banqueiro, com uma agenda permanentemente ocupada, fez questão de estar no almoço informal. Presentes estavam algumas dezenas de amigos de Ilídio Pinho, entre os quais muitos simpatizantes de Mário Soares, de diferentes áreas políticas.

O antigo Presidente da República não estava presente, mas a sua mulher, Maria Barroso, serviu de mensageira do recado que Ilídio Pinho fez questão de transmitir a Soares. No final do almoço, o anfitrião dirigiu-se à antiga primeira-dama e disse: “Espero que o dr. Mário Soares avance para nova candidatura”.

Para os presentes, ficou claro que o almoço em Vale de Cambra acabou por funcionar como o empurrão que faltava para o histórico do PS entrar na corrida a Belém. Ainda que alguns dos convidados de Ilídio Pinho tenham sido surpreendidos pelo desfecho do encontro.

A 31 de Agosto de 2005, Mário Soares havia de anunciar oficialmente a sua terceira candidatura à Presidência da República contra Cavaco Silva.

"As ideias de Sócrates assentaram como uma luva no conceito que o banqueiro sempre teve para o País. O salto tecnológico e as grandes obras públicas eram música para os ouvidos de Salgado, que sempre se opôs a um 'Portugal dos pequeninos'."

A José Sócrates, Ricardo Salgado nunca deu o seu apoio político explícito. Mas nunca teve tanta sintonia com outro dirigente como com o antigo primeiro-ministro.

As ideias de Sócrates assentaram como uma luva no conceito que o banqueiro sempre teve para o País. O salto tecnológico e as grandes obras públicas eram música para os ouvidos de Salgado, que sempre se opôs a um “Portugal dos pequeninos”.

A evolução nas telecomunicações, que o primeiro-ministro ambicionava, exigia o apoio do maior accionista da Portugal Telecom. O aumento do número de computadores nas escolas, o desenvolvimento da banda larga e da fibra óptica em todo o País implicava que a operadora apoiasse e contribuísse para o programa. Era matéria da administração da PT, mas o Executivo queria o apoio dos seus maiores accionistas.

Por isso, o ministro Mário Lino chamou o líder do BES, accionista estratégico da PT. Como tinha explicado às várias operadoras o que o projecto envolvia, o governante quis dar nota pessoal a Salgado dos objectivos que perseguia.

"Também os grandes projectos de infra-estruturas foram tema de reuniões. Salgado compreendeu o objectivo do Governo. Era pelo desenvolvimento do País e contra os que defendiam que se devia apanhar o TGV em Badajoz."

Também os grandes projectos de infra-estruturas foram tema de reuniões. Salgado compreendeu o objectivo do Governo. Era pelo desenvolvimento do País e contra os que defendiam que se devia apanhar o TGV em Badajoz. O banqueiro manifestou-se publicamente a favor do novo aeroporto e da alta velocidade, mais do que qualquer responsável de outro banco.

Em Janeiro de 2012, Salgado defendia publicamente a modernização dos portos, a melhoria das redes de caminho-de-ferro e aeroportos com capacidade para receber aviões Airbus 380. “Estamos no centro da globalização”, frisava.

Com Sócrates terá debatido o projecto de compra da TVI por parte da Ongoing, que acabou chumbado pela Autoridade da Concorrência.

Foi também no mandato do último primeiro-ministro socialista, em Novembro de 2006, que a Espírito Santo International, holding de controlo do grupo, vendeu a companhia aérea Portugália à TAP, por 140 milhões de euros.

Em nenhum momento, público ou privado, o banqueiro contestou uma decisão de um Governo sem manifestar ao mesmo tempo compreensão. E nas conversas que ao longo dos anos foi tendo com os diversos ministros, sempre fez uma análise da correlação de forças entre os interesses do BES e do Estado.

"[Ricardo Salgado] nunca se bate pela sua posição, não entra em desacordo explícito, não se impõe nem faz pressão. Dá apenas a sua opinião quando lha pedem."

“Ricardo Salgado procura sempre uma solução que salvaguarde os interesses que ele considera que tem a defender, mas que, ao mesmo tempo, vá ao encontro dos interesses dos outros”, retratam ex-governantes. A sua sensibilidade política é reconhecida por vários antigos ministros.

O banqueiro mostra a sua influência porque conhece bem os assuntos. Informa-se sobre os seus interlocutores. Pensa em soluções que sejam do interesse de todos. Promove um equilíbrio que se ajuste aos diferentes pontos de vista. Não quer perder. Por isso, não vai perder.

Nunca se bate pela sua posição, não entra em desacordo explícito, não se impõe nem faz pressão. Dá apenas a sua opinião quando lha pedem e faz questão, mesmo que esteja em desacordo, de mostrar que entende as posições da outra parte. É a arte do banqueiro a lidar com os governos.

As reuniões de Ricardo Salgado com os ministros são rápidas, práticas, sem confrontações nem rodeios. O banqueiro nunca se perde com pormenores, vai directo aos assuntos e é bom ouvinte. Não empata. Se um assunto está tratado, não espera mais conversa. Marca as reuniões que lhe são pedidas com a maior brevidade possível e é sempre pontual.

Também para os outros banqueiros, o BES é proactivo e voluntarioso. Salgado é a imagem da discrição, da sobriedade e parco em palavras. Pronuncia apenas as suficientes para transmitir a ideia de confiança e de liderança.

Como instituição muito próxima do regime, colaborador do sistema político e económico, o grupo assumiu poder ao longo dos anos na sociedade portuguesa. Num país pequeno, onde são muitas vezes visíveis as fragilidades das instituições, onde o BES entra é para ter poder. E o seu foi o único que perdurou.

Ricardo Salgado só funciona no backstage. Saiu de cena quando, em finais de 2013, estava a ser atacado em várias frentes e tinha inúmeros fogos a que acudir. Com a guerra aberta por Pedro Queiroz Pereira pelo controlo da Semapa, os problemas em Angola deixados pela gestão de Álvaro Sobrinho e as dificuldades financeiras detectadas no grupo, Salgado protegeu-se.

"O grupo ficou frágil por força da sua política. A crise acentuou os resultados da sua estratégia de parceria, pelas maiores exigências de capital e pelo maior escrutínio das autoridades ao sistema financeiro."

A sua frequente ausência passou a ser notada nas reuniões no Banco de Portugal, no Ministério das Finanças e na Associação Portuguesa de Bancos. O seu braço direito Amílcar Morais Pires e António Souto, também administrador do BES, passaram a representá-lo nestes encontros.

Para alguns, o grupo ficou frágil por força da sua política. A crise acentuou os resultados da sua estratégia de parceria, pelas maiores exigências de capital e pelo maior escrutínio das autoridades ao sistema financeiro. As fragilidades tornaram-se visíveis.


Desde que assumiu a liderança do banco, no início dos anos 1990, Ricardo Salgado nunca se inibiu de comentar publicamente as grandes decisões do Governo ou as políticas seguidas no País. De orçamentos de Estado a elencos governativos, de aumentos de impostos a grandes investimentos públicos. E nunca levou um puxão de orelhas como o que Vítor Gaspar lhe deu quando o banqueiro levantou dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida pública.”

Sem comentários: