OPINIÃO
Os mercados não jogam golfe
JOÃO MIGUEL
TAVARES 24/07/2014 – PÚBLICO
Há uma (nova)
cadeira que se parte, e não é só Salgado que cai no chão.
No último sábado,
Pedro Santos Guerreiro escreveu no Expresso um longo e excelente texto sobre a
queda de Ricardo Salgado e dos Espírito Santo, que vai muito além do simples
apontar do dedo ao desvario e à soberba do banqueiro.
O que Santos
Guerreiro ali faz, num texto sintomaticamente intitulado “O fim de um regime”,
é uma leitura abrangente do desmoronar da cultura da cunha, dos limites do
amiguismo e dos problemas inultrapassáveis do capitalismo de compadrio.
Eis uma óptima
oportunidade para enfiar Lampedusa no saco, até porque já não se aguenta mais a
enésima citação do Leopardo: desta vez não vai bastar que algo mude para que
tudo fique na mesma. Com a queda dos Espírito Santo, carregar na maquilhagem
não chega para resolver os problemas. A nossa cultura económica vai ter de
mudar à força: ainda que o sistema adorasse fingir-se de morto, há uma longa
fila de credores a bater à porta do caixão. Os péssimos, terríveis, horríveis e
cruéis mercados só querem o nosso dinheiro, não é? É, sim senhor. Mas eles têm
uma enorme vantagem: não jogam golfe com Ricardo Salgado.
Eu sei que a
narrativa dominante atribui aos mercados o papel de monstros insensíveis, mas
deixem-me citar o texto de Pedro Santos Guerreiro: “O credor estrangeiro – às
vezes chamam-lhe ‘mercados’ – torna-se accionista à força e vira investidor. É
a força mais poderosa que se abateu sobre a economia portuguesa. É ele que
escolhe gestão profissional em vez de familiar, e que prefere sempre fluxos de
caixa a qualquer outro tipo de retorno, que pode sempre pressionar o pagamento
de dividendos em vez de reinvestimento.” Isto é uma revolução na economia
nacional, e uma revolução patrocinada pelos malvados “mercados” – o monstro só
vê dinheiro, sim, mas antes só ver dinheiro do que só ver compadres.
Claro que um
movimento destes implica a menorização dos grupos empresariais portugueses e a
implosão dos famosos “centros de decisão nacional” – mas não se pode dizer que,
após 40 anos de “decisão nacional”, tenhamos tido um desempenho brilhante na
construção desses centros. Durante décadas, não premiámos devidamente o mérito,
não fomos competitivos, não arrumámos a casa. Agora vêm outros arrumá-la por
nós. O Governo ainda teve alguma força para resistir à troika: o chavão “ir
além da troika” nunca passou disso mesmo – um chavão –, e boa parte das
reformas nunca saiu do papel. Mas a economia privada não tem a mesma força para
resistir à avalanche da dívida. As caixas de robalo acabaram.
Enfim, dizer que
se acabaram as caixas de robalos é, porventura, demasiado optimista. Claro que
os robalos, os robalinhos e os robalões continuam por aí. Mas a sua vida está
mais difícil. É a parte boa da crise e dos cruéis mercados: torna-se mais
complicado conceder crédito em função dos olhos de quem o pede, torna-se mais
árduo fazer negócios de favor, torna-se demasiado caro patrocinar a
incompetência. Não se trata de fazer aqui a apologia de uma qualquer destruição
criadora, até porque a falta de dinheiro vai arrastar para o fundo negócios que
mereciam uma oportunidade. Trata-se apenas de constatar que durante 40 anos a
esquerda protegeu o Estado gargantuesco que patrocinava os negócios privados, e
a direita protegeu os negócios privados que eram patrocinados pelo Estado
gargantuesco. Vindo de lados aparentemente opostos, sempre se sentaram à mesma
mesa. Agora há uma (nova) cadeira que se parte, e não é só Salgado que cai no
chão. É o país inteiro. Com estrondo.
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