OPINIÃO
A novíssima Democracia
DANIEL ADRIÃO 21/07/2014
- PÚBLICO
A utopia da
democracia directa está mais perto do que nunca de se tornar realidade.
O Parlamento
britânico, pela mão do Presidente da Casa dos Comuns, John Bercow, criou
recentemente uma comissão para estudar as oportunidades que as tecnologias
digitais podem aportar ao funcionamento do sistema democrático no Reino Unido.
A iniciativa
Speaker Comission for Digital Democracy visa recolher contributos da sociedade
civil com o objectivo de promover um maior escrutínio por parte dos cidadãos ao
trabalho desenvolvido pelo Governo e pelo Parlamento, bem como facilitar o
diálogo entre os próprios cidadãos e encorajá-los a participar mais activamente
no processo democrático. A comissão elaborará um relatório que será entregue
aos deputados em Janeiro de 2015 e cujas conclusões serão objecto de um debate
parlamentar.
Como curiosidade,
refira-se que faz parte desta comissão em representação da sociedade civil uma
investigadora portuguesa: Cristina Leston-Bandeira, professora da Universidade
de Hull (Inglaterra), especializada em “novas democracias” e autora do livro
Parliaments and Citizens (London, Routledge, 2013).
Um dos aspectos
inovadores desta iniciativa é que as contribuições podem chegar à comissão em
diversos formatos digitais como e-mails, sms, videos, blogue posts e de canais
digitais, como o Facebook, o Twiter, o Linkedin e o Youtube, ou ainda, através
de um web fórum criado especificamente para o efeito.
O propósito é
claro: tirar partido das ferramentas digitais, hoje usadas pelo comum dos
cidadãos, para, de forma simples e direta, fazer chegar a voz das ruas aos
decisores políticos.
A iniciativa de
John Bercow tem o mérito de colocar na agenda política um tema queestá longe de
constituir uma prioridade para a generalidade dos políticos. Na verdade, poucos
ainda se deram conta das consequências para o actual sistema de representação
das transformações relacionais e monitorais que estão a ocorrer na conexão dos
cidadãos com o espaço público em geral e com o espaço mediático em particular.
Nos últimos anos
temos vindo a testemunhar o desmantelamento do sistema produtivo de informação
broadcast e dos media monolíticos, assentes em representações simplistas e
estereotipadas da realidade, que já não expressam a complexidade e a velocidade
do mundo globalizado e que são incapazes de originar o confronto de ideias
necessário para gerar a construção duma vontade comum, a partir dos interesses
individuais.
Enquanto isso,
assistimos à eclosão de uma nova força, construída a partir da Internet,
assente em formas de produção informativa individual, que se expande com
recurso a ferramentas digitais e a plataformas em rede, multiplicando-se de
forma viral, invadindo o espaço público e provocando uma disrupção na relação
dos cidadãos com o establishment político e mediático.
Em Portugal, a
recente crise despoletada no interior do Partido Socialista é, nesta
perspectiva, um reflexo destas mudanças que estão a reconfigurar o espaço
público.
António José
Seguro ao ver desafiada a sua liderança, tanto pela oposição interna, reunida
em torno de António Costa, como pela opinião pública e publicada (fortemente
amplificada pelas redes sociais), viu-se forçado a desencadear um novo processo
de legitimação política, propondo a alteração das regras e o alargamento da
base de participação a um universo exterior ao partido, que por via das dinâmicas
geradas no espaço público já se havia transformado de facto no verdadeiro
epicentro do debate político em torno do futuro do PS.
A proposta de
Seguro, ditada fundamentalmente por razões de ordem táctica, acabou por ter o
apoio de Costa, que já havia defendido a abertura do PS aos simpatizantes no
passado, e constitui uma opção estratégica que vem mudar radicalmente o modelo
de governação do PS.
Ao promover
eleições “primárias” para a escolha do candidato a primeiro-ministro, abertas
aos simpatizantes, o PS rompe com a tradição partidocrática vigente em Portugal
desde a monarquia constitucuional e cria um precedente histórico num domínio
até aqui considerado como uma “reserva de soberania” dos membros dos partidos e
dos seus órgaos de representação.
Nesse sentido, as
“primárias” inauguram um novo “contrato político” entre o PS e os cidadãos,
dando início a um processo irreversível de transferência de poder das
estruturas do partido para a sociedade civil. O que na prática se traduz no
princípio do fim do modelo de “partido de militantes” tal como se conhece hoje
e a transição para o modelo de “partido de eleitores”, através da
deslocalização do centro de decisão de um núcleo restrito e circunscrito de
membros do partido para a massa eleitoral que constitui a sua base social de
apoio.
De ora em diante,
os cidadãos terão a legítima expectativa de que as decisões do PS reflictam as
dialéticas que se expressam no espaço público, onde o peso crescente da
Internet, das redes sociais e dos novos media, dá aos cidadãos a oportunidade
de se transformarem em agentes pró-activos do processo político.
A utopia da
democracia directa, onde eleitos e eleitores, governo e governados, estão em
permanente contacto e estabelecem um diálogo directo, através de canais de comunicação
velozes, ubíquos e sem mediação, está mais perto do que nunca de se tornar
realidade.
Finalmente,
podemos estar a assistir ao despertar de uma novíssima Democracia, capaz de
estabelecer um novo contrato de confiança entre os cidadãos e a política.
Especialista em Comunicação
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