Ilustração publicada no “TIMES”
|
Ucrânia: viragem num conflito
fora de controlo
Que muda com os 300 mortos do avião da Malaysia Airlines? É a grande
incógnita
Análise Jorge
Almeida Fernandes / 20-7-2014 / PÚBLICO
A primeira
declaração de Putin foi ambígua: “O drama não teria acontecido se Kiev não
tivesse recomeçado a guerra no Leste da Ucrânia.” Ou seja, atribui a
responsabilidade política a Kiev mas deixa em aberto a possibilidade do míssil
ter sido lançado por separatistas prórussos.
É a primeira
questão — a do ponto de viragem — que aqui interessa. O conflito parece fora de
controlo. O Leste ucraniano está em guerra. Nas últimas semanas, os pró-russos
abateram aviões militares ucranianos e o Presidente Petro Porochenko decidiu
passar por cima das várias tréguas e forçar a reocupação das cidades do Leste
antes que os separatistas reforcem as suas posições.
Vai o desastre de
quinta-feira servir de sinal de alarme e levar a uma negociação “antes que seja
tarde de mais” ou, pelo contrário, vai desencadear uma escalada e uma crise
internacional? Disse Putin que a catástrofe mostra a urgência de uma “solução
política rápida”. O problema é que as soluções aceitáveis por Moscovo e Kiev (e
ocidentais) parecem incompatíveis e que até agora têm-se sucedido os erros de
cálculo — o mais perigoso factor da generalização de um conflito. Temos de
voltar atrás.
2.A crise actual
começou com um choque de interesses e vários erros de cálculo. Por iniciativa
da Polónia, a União Europeia apostou em criar uma Parceria Oriental englobando
seis países que outrora fizeram parte da URSS. Visava estabilizar económica e
politicamente a sua periferia oriental. Para Moscovo estava em jogo o seu
estatuto de grande potência e um projecto concorrente com o europeu: uma União
Euro-Asiática que solidificaria a sua hegemonia sobre o antigo território
soviético, que designa por “estrangeiro próximo”. Acontece que esse
“estrangeiro próximo” também é o da UE. O confronto tornou-se inevitável.
Hoje, a Parceria
Oriental está congelada e igualmente longínqua parece a União Euro-asiática,
que não tem sentido sem a Ucrânia. A UE subestimou os interesses e a reacção da
Rússia. A Rússia subestimou a Ucrânia.
A partir do
momento em que perdeu a influência em Kiev, Putin não desistiu e lançou uma
dupla resposta. Anexou a Crimeia, violando uma “linha vermelha” da ordem
europeia pós-Ialta — a proibição de mudar as fronteiras pela força. Depois,
subiu a parada na Ucrânia encorajando as zonas russófonas do Leste e do Sul a
lançarem movimentos de secessão. O objectivo não era “conquistar” mais
território ucraniano nem dividir o país: era impor uma federalização, ou melhor,
uma “balcanização” que tornaria impotente o poder central de Kiev. Como
consequência, consumou-se uma aliança de facto entre Kiev e o Ocidente.
3. O movimento
separatista começou por falhar. Não conseguiu uma mobilização de massas. A
maioria da população do Leste e do Sul quer manter relações estreitas com
Moscovo e é adversa a uma política ocidentalista em Kiev. Mas tem uma
identidade ucraniana e não aceita ser integrada na Rússia.
Os rebeldes
pró-russos são grupos armados que se apoderaram de várias cidades pela força,
graças ao apoio logístico e político da Rússia — e perante a impotência da
polícia e do exército ucranianos. Muitos são ex-militares russos. O seu
“ministro da defesa” é Igor Guirkin, “Strelkov”, antigo quadro do serviço de
informações militares russos (GRU). Têm armamento pesado, tanques e mísseis:
uns fornecidos “por russos”, outros capturados em arsenais ucranianos. Não têm
problemas de abastecimento: Moscovo não vigia a fronteira e tudo passa,
inclusive tanques.
Putin alcançou,
após a anexação da Crimeia, uma taxa de aprovação de 83%. Está refém da própria
“glória”. Para os “falcões” russos o fim da rebelião separatista na Ucrânia
seria “uma traição”. Nos últimos tempos, Putin distanciou-se dos seus rebeldes.
Mas nada fez para os obrigar a negociar. Eles são um instrumento da política de
desestabilização que Moscovo sempre usou para enfraquecer e domesticar Kiev.
Para
especialistas da Ucrânia, como a historiadora Angela Stent ou o analista Sam
Charap, as milícias pró-russas ameaçam “tornar-se incontroláveis”. São
directamente apoiadas pelos ultranacionalistas russos, como Maxim Kalachnikov
ou Alexandre Duguin, que fazem sérias advertências ao Kremlin.
Putin quer evitar
sanções “economicamente proibitivas”. Dizem os analistas que, até agora, a sua
opção era “ganhar tempo”, prosseguir o desgaste de Kiev até negociar com
Porochenko um modus vivendi que satisfaça os interesses básicos de Moscovo: a
garantia de não adesão à NATO e a federalização do país.
4. Que muda com
os 300 mortos do avião da Malaysia Airlines? Para lá do choque emocional os
mortos voltam a iluminar a guerra que se trava na Ucrânia. “Se houver provas
sólidas de que os rebeldes foram os autores e de que a arma veio da Rússia,
haverá uma fortíssima pressão sobre Putin para contribuir para uma
desescalada”, diz à Reuters a analista russa Maria Lipman. “Pode ser um ponto
crítico”, frisa Charap. “Pode forçar os russos a um recuo táctico. Não penso
que desistam, mas talvez controlem os seus loucos.”
Nada disto
assegura uma solução diplomática estável. Passa-se ao terreno da incógnita. Tudo
depende da leitura que Putin faça. Pode entender que, com as relações
russoamericanas no ponto mais baixo no pós-Guerra Fria, pouco tem a perder em
desafiar a pressão ocidental, continuando a apoiar os separatistas. Será mais
difícil a alguns países europeus resistir a sanções pesadas contra Moscovo. Mas
o Kremlin pode manter a sua aposta na divisão dos interesses nacionais na
Europa. A UE quer evitar a todo o custo um conflito geopolítico com a Rússia. De
resto, nem a Europa nem os EUA têm uma articulada “política russa”.
Repita-se: é uma
situação clássica em que a prudência pode levar a uma negociação e a um
compromisso entre dois projectos estratégicos opostos. Ou, inversamente, a um
cenário em que os erros de percepção dos vários actores poderão precipitar uma
crise internacional de grande dimensão.
Sem comentários:
Enviar um comentário