sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Nuno Godinho de Matos. "Em seis anos, entrei mudo e saía calado. Bem como todos os administradores"


O silêncio no BES

A entrevista que Godinho Matos dá ao i, que pode ler nas págs. 26–29, é um manual revelador sobre a forma como as coisas funcionavam no BES. “Don’t ask, don’t tell” é a descrição benevolente que podemos aplicar à atitude de Godinho Matos e dos restantes administradores não executivos. Ficavam calados ao mesmo tempo que recebiam 10 a 12 mil euros por ano e eram úteis a Ricardo Salgado noutras áreas. É impossível encontrar um melhor exemplo da rede de poder que Salgado construiu desde os anos 90 do século passado. E é mais uma prova de que o poder estava concentrado numa pessoa.


Nuno Godinho de Matos. "Em seis anos, entrei mudo e saía calado. Bem como todos os administradores"
Por Isabel Tavares
publicado em 5 Set 2014 in (jornal) i online

O advogado é PS e pró-Costa convicto, mas vota Cavaco e gostava de ver Marcelo Rebelode Sousa na Presidência
Nuno Godinho de Matos, até final do ano passado braço-direito de Daniel Proença de Carvalho, era até início de Agosto administrador não executivo do Banco Espírito Santo, para onde foi a convite de Ricardo Salgado, há seis anos. Hoje tem perto de 100 mil euros bloqueados no "banco mau" e já preparou as acções que darão entrada nos tribunais contra o Banco de Portugal e o Novo Banco.

É possível uma administração com 25 membros, entre executivos e não executivos, desconhecer o que se passa numa instituição como o BES?

É possível e é fácil de explicar. Os administradores executivos seguem a par e passo a vida do banco, embora seja normal um administrador do pelouro que determina a aplicação da lei e a sujeição à lei não saber o que se passa no pelouro da apreciação do risco. Conhecerão todos, no geral, as grandes questões dos diferentes pelouros, mas o responsável de cada área não sabe as decisões do outro sobre um assunto em concreto.

E os não executivos, como era o seu caso?

Os não executivos não têm nada a ver com a vida diária do banco. Vão às reuniões do conselho de administração quando são convocados, quatro ou cinco vezes por ano. O que conhecem da vida do banco é o que é reportado nessas reuniões pelos quadros superiores. E o reporte, nessas circunstâncias, é a referência dos grandes problemas, dos grandes números, das operações internacionais, se estão a dar lucro ou prejuízo. Agora, saber se o banco em Angola está a fazer crédito garantido ou não a favor do cliente x ou y, isso nunca chega a uma reunião do conselho de administração.

Os administradores fazem perguntas?

Em seis anos nunca abri a boca, entrava mudo e saía calado. Bem como todos os restantes administradores.

Quem é que falava?

O presidente do conselho de administração [Alberto Pinto], que abria os trabalhos de acordo com a ordem, sujeitava-os a deliberação, e os funcionários do banco que iam introduzir os temas. Nem sequer o dr. Ricardo Salgado [vice-presidente] falava nas reuniões do conselho de administração, que é diferente da comissão executiva. Não havia perguntas não porque não pudesse haver, mas porque jamais alguém as fez.

As reuniões são um mero pró-forma?

No fundo é um pró-forma, exactamente. É algo que tem de existir para ratificar as deliberações nas questões fundamentais tomadas pela comissão executiva.

Como chegou a administrador não executivo do BES?

Em 1995 participei num dos julgamentos mais engraçados da minha vida, o das facturas falsas da Engil. O advogado da Engil era o dr. Proença de Carvalho e eu trabalhava ao seu lado, por indicação sua, para dois administradores. Tal como o já falecido dr. Filinto Elísio, advogado do filho do engenheiro que era, ao tempo, dono maioritário da Engil. A dada altura, o dr. Filinto Elísio disse-me que no Banco Espírito Santo havia quem defendesse a vantagem de incluir no conselho de administração alguém ligado à resistência ao antigo regime, de esquerda, e que não fosse profissional da actividade política, se eu aceitava. Disse logo que me daria muito prazer, mas sabia tanto de bancos como de calceteiro, embora goste de calçadas.

Qual era a ligação do Filinto Elísio com o banco?

O dr. Filinto, que foi director de contencioso do então Banco da Agricultura, era amigo do dr. Ricardo Salgado, uma amizade que vinha de se terem conhecido no Brasil, na sequência das nacionalizações em Portugal e do que lhes sucedeu.

Encontrou-se com Ricardo Salgado?

Sim. Fui jantar com ele no próprio banco e convidou-me na sequência desta conversa. Disse-lhe o que já tinha dito ao dr. Filinto Elísio, ao que ele teve a gentileza de dar as respostas que as pessoas educadas dão e dizer que não era assim.

Seis anos depois tem as suas contas no BES bloqueadas. Ricardo Salgado falou consigo?

Não. Também já não é administrador do BES e está confrontado com um conjunto de problemas bastante grave, tem muito com que se preocupar. Não creio que na inteligência dele possa haver espaço para manifestações de simples boa educação. Isso não é relevante.

Neste tempo, o Banco de Portugal comunicou-lhe o que quer que fosse?

O Banco de Portugal não me comunicou rigorosamente nada, estou até convencido de que nem sabe quem eu sou ou que existo. O que fez, e só vim a saber disso dias mais tarde, quando li o email que me foi endereçado a 4 ou 5 de Agosto, foi escrever uma carta ao presidente do conselho de administração na qual indicava que os nossos valores iriam ficar bloqueados e pedia que desse conhecimento aos restantes membros.

Para que serve, afinal, um administrador não executivo?

Os administradores não executivos são verdadeiros verbos de encher.

E os conselhos de administração alargados?

Também.

Como advogado, como administrador não executivo, como cidadão, como explica a existência de um conselho de administração, uma comissão executiva, auditores internos, auditores externos, Banco de Portugal, CMVM, um Conselho Nacional de Supervisão de Auditoria, uma Ordem de Revisores Oficiais de Contas, entre outros organismos de controlo e supervisão, se, na prática, há falhas tão flagrantes e não há responsáveis?

(Ri-se um bom minuto) A sua pergunta encerra mil e uma perguntas. Ainda sobre os não executivos e independentes - que eu entrei pela quota dos independentes: teoricamente, estes administradores foram concebidos para serem pessoas que, não dependendo de qualquer interesse do banco, por isso têm outras fontes de rendimento, têm uma capacidade de controlo diferente. Só que para ter capacidade de controlo, é necessário trabalhar no local. Se eu tiver um gabinete, os funcionários tiverem o dever de me reportar o que fazem, se eu tiver a faculdade de pedir esclarecimentos, inspeccionar e discutir o que está a ser feito, se for um fiscal, aí poderei aperceber-me de eventuais irregularidades. Se nada disto acontecer, e nada disto acontece, é óbvio que os administradores não executivos são um detalhe, um acessório na toalete de uma senhora.

Um acessório que custa quanto?

É barato. No caso do BES, que é o que conheço, recebiam a senha de presença, que dava, líquido, cerca de 2400 euros por reunião de conselho de administração, ou seja, entre 10 a 12 mil euros por ano. Os executivos é diferente mas, esses sim, estão dentro da vida inteira do banco.

Quanto aos auditores?

Com as auditoras, o problema é semelhante, por uma questão muito simples: se quiser ter consultoras financeiras a auditar os bancos, elas não podem ser pagas pelos bancos, o cliente tem de ser uma outra entidade, seja o cliente o Banco Espírito Santo, seja o Banco de Portugal ou outro qualquer. Porque, obviamente, vão fazer o que o cliente quer, é a ele que cobram os honorários, e nunca darão tiros no cliente sem primeiro os combinar com ele, porque dependem da facturação que lhe emitem e que querem que ele pague.

É preciso mudar o modelo?

Com esta vinculação económica e subsistente, o que tenho de fazer é o seguinte: os bancos todos contribuem com uma verba para um qualquer fundo que é criado - que não tem de ter 30 funcionários, basta ter dois -, e esse fundo contrata e remunera as auditoras. Tem de ser uma entidade totalmente independente.

Não pode ser o Banco de Portugal?

O próprio Banco de Portugal tem dependências. Se as auditoras forem pagas pelo Banco de Portugal, o que se passa é que vão fazer o que o Banco de Portugal quer e pôr nas suas mãos um instrumento que lhe permite dizer, liquidem as contas de A, favoreçam as contas de B. Dir-me-á que o Banco de Portugal não está interessado em fazer isso. Não está até ao momento em que passa a estar.

A supervisão falhou?

Onde há um falhanço total é por parte do Banco de Portugal, por parte da CMVM e por parte das empresas de auditoria, que nunca se aperceberam do que quer que fosse. E nem o argumento de que foi na segunda quinzena de Julho que se constituiu a dívida de 1500 milhões de euros, que é real, cola, porque existe tudo o que está para trás. Com uma dívida de 3600 milhões, o banco arreia e não pode continuar a navegar, e com 2100 milhões, podia? Mas o BCE reclamou imediatamente o pagamento dos 10 mil milhões de euros, um valor que não pode passar despercebido a uma mosca, quanto mais a um técnico, quanto mais a um governador de um banco central. Este argumento, que começou a ser utilizado, é um argumento que mata a administração do BES, mas mata a administração do BdP, mata a CMVM, mata os auditores, que não podiam ignorar a possibilidade dessa exigência. A responsabilidade é, primariamente, das pessoas que tomaram as decisões no interior da administração e que levaram a esta situação - porque haverá administradores executivos que não tinham conhecimento delas. Depois, dos órgãos de supervisão. O BdP sai muito mal de tudo isto.

Situações destas deviam levar a demissões?

Esta experiência deve determinar uma profunda remodelação da legislação reguladora e dos mecanismos de controlo das instituições de crédito, passando a ser ilustrada pela ideia de que onde está dinheiro existe o perigo de ele ser dissipado, e nunca pela ideia de que são todos pessoas sérias.

A legislação já prevê isso, incluindo a avaliação constante da idoneidade e da competência de quem está à frente dos bancos. É a legislação que está mal ou quem a aplica?

Tenho de confessar que nunca estudei a lei suficientemente. Na minha ignorância confessada, atrevo-me a responder que são as duas coisas. Se me perguntasse há quatro meses se eu tinha a mínima dúvida sobre a fiabilidade do BES, eu dir--lhe-ia que não e punha as mãos no fogo pelos administradores. Era a minha convicção profunda, arreigada e tranquila. Mas aconteceram coisas que me deixaram, que me deixam perplexo.

Mas também é verdade que não é supervisor...

Também é verdade. O supervisor tem serviços para investigar, tem outros meios, outra informação. De outra forma não precisamos deles para coisa nenhuma, são inúteis e estão a mais.

Sobre as decisões do Banco de Portugal, da cisão à escolha do que fica de um lado e de outro, quem perde o quê... foi possível. É legal?

Está na lei. Resta saber é se esse direito é constitucional.

Na sua opinião é?

Na minha opinião não é constitucional. O Banco de Portugal não é Deus Nosso Senhor para decidir quem vai para o inferno e quem vai para o céu. E com os poderes que tem e que exerceu assumiu uma posição que só os tribunais podem assumir. Mas o erro está na lei. O legislador que a concebeu é que errou profundamente ao colocar nas mãos do governador do BdP poderes tipicamente jurisdicionais que jamais, jamais, jamais podem estar num órgão da administração.

E agora?

Agora são um facto, foram postos em prática, temos de esperar que os tribunais os anulem. O que vai ser muito difícil. Porque o mesmo legislador que deu estes poderes ao Banco de Portugal teve o cuidado de dizer que para discutir as decisões do BdP, obrigatoriamente, é preciso ir para os tribunais administrativos. E os tribunais administrativos são uma entidade que funciona mal, é demoradíssima, tudo o que lá cai apodrece antes de ser resolvido. E ainda por cima é uma jurisdição que tem como que um cordão umbilical que a liga à administração e, portanto, tem muita dificuldade em decidir contra a administração. Com muita probabilidade, o juiz do processo faz a maior ginástica intelectual possível para matar o processo por razões formais.



Se quiser contestar uma decisão do Novo Banco ou do BES, pode recorrer aos tribunais comuns...

Sim, mas no caso concreto, se contestar apenas as decisões do Novo Banco ou do BES, fico a nadar na areia, não chego à água, porque as decisões foram todas tomadas por ordem das deliberações do BdP.

Qual é, para si, o maior imbróglio?

As principais vítimas ainda deverão ser as pessoas que foram ao último aumento de capital, porque compraram papel que hoje não vale nada, nem para embrulho. Depois também foram completamente defraudados os depositantes nas diferentes instituições ligadas ao BES no estrangeiro. E esses têm vários problemas: só encontram nas suas contas papel comercial de sociedades ligadas ao grupo que hoje não valem nada e ainda por cima estão numa jurisdição que nem sequer é portuguesa [Suíça e Luxemburgo]. Têm de arranjar advogados no estrangeiro, colocar acções no estrangeiro, com tudo o que isso significa de encargos.

Disse que o governador do BdP decidiu quem ia para o inferno e para o céu. Foi direitinho para o inferno.

Fui. Mas o responsável por essa decisão nem sequer é o governador do BdP. A tal lei que está carregada de disposições inconstitucionais diz que os administradores do banco nunca podem ir para o banco de transição. A perversidade da situação é que, tendo eu obrigatoriamente de ficar no velho BES, e tendo o BdP tido a iniciativa de ir ao banco histórico tirar de lá tudo o que era bom e deixar o que é dívida, o meu capital desapareceu.

Que dinheiro tinha no BES?

Tinha cerca de 16 mil euros à ordem e perto de 80 mil euros a prazo. Desses, 58 mil resultam da venda de uma casa que foi dos meus pais e que eu e o meu irmão vendemos no ano passado. O restante é poupança.

O que vai fazer?

Escrevi uma carta ao conselho de administração do BdP e outra ao presidente do Novo Banco explicitando a origem do dinheiro que se encontrava depositado no BES e solicitando que me seja devolvido. As primeiras cartas escrevi-as a 14 de Agosto, não recebi qualquer resposta. Hoje vou enviar novas cartas, embora esteja convencido de que não irei ter resposta alguma, nem sequer uma manifestação de boa educação, e estou preparado para distribuir nos tribunais uma acção para discutir a causa.

Ricardo Salgado é culpado?

De quê?

De ter deixado chegar ou de ter conduzido o BES à situação a que chegou.

Tenho de dizer que não sei, porque não conheço os factos. A minha opinião é esta: o que motiva pessoas como o dr. Ricardo Salgado não é o dinheiro. Aquilo que motiva um homem com o percurso de vida do dr. Ricardo Salgado é o poder. Que, no presente caso, era o poder social e o financeiro. Para se manter no topo tinha de manter a correlação de forças, o que em termos de dinheiro significa manter-se maioritário enquanto accionista da família. O capital social do BES era de mais de 5,6 mil milhões de euros e a família, com os franceses, tinha 25% deste montante - e ele uma parte significativa em termos individuais. Foi-se endividando e chegou a um momento que não aguentou. As motivações dele não são mesquinhas nem egoístas, são de preservação do poder.

Isso não é mesquinho nem egoísta?

Não. Não vejo em que é que seja diferente das motivações do Presidente da República ou de dois homens por quem eu tenho imensa admiração, que toda a vida foram motivados pelo poder e desprezavam o dinheiro, Jaime Gama e José Medeiros Ferreira.

Um banco gere dinheiro de muita gente, particulares, empresas que, por sua vez, têm outras pessoas a seu cargo. Não é diferente?

Pois, percebo isso.

Houve vários administradores suspensos. Recentemente, dois deles passaram a prestar serviços ao Novo Banco. Uma arbitrariedade?

Um deles era o administrador do risco e o outro da auditoria, o dr. Joaquim Goes e o dr. António Souto. O dr. Rui Silveira demitiu-se imediatamente quando foi suspenso pelo BdP. Ponho as mãos no fogo por qualquer dos três - pelo dr. Silveira, que conheço há muito tempo, até ponho a cabeça na guilhotina. Foi um tiro muito mal dado pelo BdP, que os crucificou como principais responsáveis de alguma coisa que não é verdade. Admito que isto seja uma tentativa de apagar essa decisão e, por outro lado, baseia-se na sua competência e no conhecimento que têm da gestão concreta do banco, de que os novos administradores não sabem nada.

Essa ajuda podia ser pedida sem direito a remuneração?

Sim, mas pedir ajuda a alguém sem pagar é capaz de ser um hábito esclavagista.

Que informações lhe dão no banco?

O que tenho ouvido dizer é que há pessoas, sobretudo ligadas à família Espírito Santo, que estão a ter problemas económicos graves. Porque as pessoas têm tendência a colocar o grosso das suas poupanças onde são conhecidas e mais bem tratadas, e isso revela-se um grande erro em atmosfera de crise. Eu não devia ter nada no BES, devia ter aquela conta para receber as senhas de presença, ponto.

A sua gravata cor-de-rosa é pró-Costa ou pró-Seguro?

É pró-Costa.

Porquê?

Porque reconheço nele um conjunto de qualidades que me fazem pensar que estará à altura daquilo que se exige a um primeiro-ministro: é inteligente, lúcido, conhece a realidade nacional, é trabalhador, não foge às dificuldades e é um homem que, tendo habilidade para fazer política, não troca os princípios essenciais pela manobra, é animado pelo desejo de transformar para melhor.

Como vê a polémica em torno das primárias e do pagamento de quotas a militantes-fantasma?

Acho uma vergonha. Mas para todos nós, não é para o contendor A ou para o contendor B. Eventualmente, algum deles pode estar ligado ao problema e, se estiver, é quanto basta para não ter dignidade para ser sequer militante do Partido Socialista. Uma pessoa que utiliza estes estratagemas, pagar as quotas de mortos e de emigrante há 14 anos, deve ser expulsa.

António Costa pode saber ou estar ligado a isso?

Se tem alguma coisa a ver com isso, é gravíssimo e não voto nele. Lembro-me de criticar o comportamento das mesas eleitorais no anterior regime, nas eleições- -fantoche, nas quais só podiam votar os chefes de família. Votavam os vivos, os mortos e tudo o mais. Isto chamava-se chapelada. E fazer isso ou pagar as quotas de pessoas que eu sei que não vêm votar é rigorosamente a mesma coisa.

Este tipo de práticas pouco transparentes vão até ao financiamento dos partidos?

No meu tempo, o financiamento dos partidos era feito por industriais que faziam transferências bancárias ou era entregue em malas que eram dadas ao tesoureiro do partido, que depositava e geria. Eu próprio trouxe uma vez uma mala do Luxemburgo. Na altura, importar dinheiro era legal, exportar é que não. Foi-me dada pelo secretariado do grupo socialista do Parlamento Europeu, onde estagiei três meses. Numa das deslocações a Lisboa, salvo erro no Natal, o secretário-geral adjunto, que era um italiano, e o secretário-geral, que era um alemão, chamaram-me e disseram: toma esta pasta. Tem dinheiro, é para levares para o partido. Trouxe, cheguei, entreguei ao dr. Mário Soares. Pronto.

O que é que o PS pode fazer de diferente do actual governo?

Qualquer deles vai fazer a mesma política, não vai fazer melhor. Porque não vai ter capacidade de escolha. Quem manda no governo e vai continuar a mandar é uma comissão de credores, porque vamos continuar a ter problemas de liquidez e de solvência. Para os resolvermos, precisávamos de ter como primeiro-ministro o antigo ministro das Finanças [Vítor Gaspar] ou a actual ministra das Finanças, e precisávamos de aguentar um período de cinco ou seis anos com a política deles para voltar a criar poupança e capitalização, para o país voltar a ser autónomo. Como ninguém vai fazer isso, já se diz é que temos de gastar, que a austeridade falhou, vamos investir. Mas a crédito. E, a crédito, vai acontecer ao país o que aconteceu ao BES: cresce a dívida e volta tudo ao mesmo.

Vamos deitar todo o esforço a perder, a partir do próximo ano?

Portugal deixou de ter as contas públicas equilibradas a partir de Marcelo Caetano. Salazar e Marcelo Caetano tinham toda uma carga de defeitos políticos à cabeça, acima de tudo serem ditadores, mas sentido da responsabilidade pública tinham. E o que se passa é que, desde os anos 80, temos tido uma governação de irresponsáveis que gastam mais do que têm, generalizada loucamente a partir de 2000. Honra seja ao actual primeiro-ministro, que disse alto e pára o baile, isto não pode continuar assim. A partir de 2015 vamos voltar ao ciclo do gasta que é para a campanha eleitoral e o sacrifício que temos estado a viver vai ser todo desfeito e perdido.

Com tantos elogios ao PSD, vota mesmo PS?

Ah! Uma coisa é o sentido da responsabilidade, e é por ele que faço o elogio às pessoas, não ao partido. Mas sou de alma e coração do Partido Socialista. Houve quatro homens que me influenciaram na vida: o meu pai, o professor de Literatura dos 6.º e 7.º anos, Salgado Zenha e Mário Soares. Irei morrer no Partido Socialista, faça o PS as asneiras que fizer, está na minha matriz. Mas não perdoo a irresponsabilidade, sou contra a bandalheira.

Vota em quem para Presidente?

Voto em Cavaco Silva. Não voto na facilidade.

Porque acha que Cavaco Silva é tão difícil, tão criticado?

Por uma questão social: não pertence ao eixo Lisboa-Cascais. É um homem da pequena burguesia urbana, típico pequeno-burguês urbano, que pela sua qualidade intelectual, pela sua formação académica e pela sua seriedade chegou a Presidente da República. Cavaco Silva não foi eleito pelo bloco social do PSD, foi eleito por muitos cidadãos que ora votam PS, ora votam PSD. O bloco social que constitui o núcleo duro sociológico do PSD detesta Cavaco Silva e, por isso, os meios de comunicação social também não gostam dele. É muito maltratado por uma questão social: porque é piroso, para usar um termo que diz tudo.

Quem é que gostava de ver como próximo Presidente da República?


O prof. Marcelo Rebelo de Sousa.

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