António Lamas no CCB é o
princípio de um novo pólo de museus de Belém
Nomeação prevê adaptação do eixo Ajuda-Belém ao modelo Parques de Sintra,
reunindo vários equipamentos sob uma única administração. O CCB já perdeu a sua
autonomia financeira
Vanessa Rato /
18-9-2014 / PÚBLICO
A hipótese foi
levantada há já três anos — poderá concretizar-se agora: com a nomeação de
António Lamas para a presidência do Centro Cultural de Belém (CCB), o Governo
avançará para um projecto mais vasto de adaptação do eixo Ajuda-Belém ao modelo
de sociedade da Parques de Sintra-Monte da Lua.
Equipamentos como
CCB, Jerónimos, Museu da Marinha e Museu dos Coches poderão em breve ficar
reunidos sob a tutela de um único conselho de administração, para cuja
presidência já foi convidado também Lamas, presidente do Instituto Português do
Património Cultural em 1987, quando lançou o concurso para a construção do CCB.
Nas Grandes
Opções do Plano para 2015, divulgadas segunda-feira, lê-se: “Considera-se
fundamental valorizar a Rede Portuguesa de Museus [...]. Como iniciativas
futuras neste âmbito, releva a conclusão do processo de instalação do Museu dos
Coches nas novas instalações, reforçando a capacidade de atracção de públicos
para a Zona Monumental de Belém, bem como a promoção de uma gestão mais
integrada dos equipamentos da Praça do Império.”
Até à hora de
fecho desta edição, Lamas, professor catedrático do Instituto Superior Técnico
e presidente da Parques de Sintra desde 2005, manteve- se incontactável. Em
Outubro do ano passado, porém, assinou no PÚBLICO um artigo de opinião em que
fazia a defesa do modelo.
“Desde que fui
responsável por promover, no fim dos anos 1980, o Plano de Salvaguarda da Zona
Ajuda-Belém, o CCB e o projecto de requalificação da envolvente do Palácio da
Ajuda, que penso que as unidades que constituem o património de Belém [...]
beneficiariam de uma gestão conjunta”, escreve.
Lamas enumera
todas as âncoras culturais da zona: CCB, Jerónimos e os museus da Marinha,
Coches, Presidência, Berardo, de Arqueologia, Etnologia e Arte Popular, mas
também a Torre de Belém, o Palácio da Ajuda e o Padrão dos Descobrimentos, os
jardins Tropical e Botânico, o Planetário e até a EDP.
“Hoje, face às
limitações financeiras de todas essas instituições, não se justifica que
possuam serviços separados de limpeza, pessoal, segurança, manutenção e gestão
de projectos e obras; que não partilhem um sistema de bilhética; que não
coordenem a divulgação de cada unidade e do conjunto, evitando concorrerem
entre si pela atracção de públicos e organizarem eventos muitas vezes
sobrepostos; que não partilhem competências, experiência e recursos humanos, em
particular técnicos; que não desenvolvam projectos de interesse comum; que não
potenciem o peso da sua articulação junto de entidades financiadoras; e que se
queixem todas da falta de meios e que os grandes investimentos que a zona
necessita aguardem, sem esperança, melhores dias.”
Lamas acrescenta
ser “fundamental” o envolvimento da Câmara Municipal de Lisboa na gestão deste
conjunto e do “complexo território” em que se insere, nomeadamente no que toca
a acessos, trânsito, estacionamento e intervenções privadas em espaço público.
À semelhança de
Sintra, o eixo Ajuda-Belém “suporta uma rentável ‘zona económica de
influência’”, diz ainda Lamas, apontando negócios da envolvente que vão da
restauração e comércio à hotelaria. Sublinha que estes agentes “exercem
actividades totalmente dependentes da qualidade do ‘cenário’ patrimonial” em
que se inscrevem, mas “ainda não participam na sua valorização nem sequer
promoção”.
Um “ciclo
virtuoso”
Uma década e meia
volvida sobre a criação da Monte da Lua, de capitais exclusivamente públicos,
Lamas explica que “a empresa depende somente das receitas provenientes dos
visitantes, que são maioritariamente estrangeiros, não recebendo verbas do
Orçamento de Estado”. “A sua sustentabilidade depende” de um “ciclo virtuoso da
correcta gestão do património”, diz: “A sua recuperação qualificada permite
atrair mais visitantes, gerar mais receitas e promover mais intervenções
valorizadoras.”
Integrado num
projecto destas características, o CCB afastar-se-á da sua matriz. A 30 de
Setembro de 1999, quando transformou a Fundação das Descobertas em Fundação
Centro Cultural de Belém, o XIII Governo Constitucional, de António Guterres,
publicou em Diário da República não só os novos estatutos do CCB, mas também
uma explicação dos motivos por detrás da alteração: “Apesar de o CCB gerar
receitas próprias que cobrem cerca de metade das suas despesas, o projecto
cultural que desenvolve, de manifesto interesse público, não é viável sem um
comprometimento regular e efectivo do Estado.”
Segundo esse
documento, o modelo previsto pelo anterior Governo para a Fundação das
Descobertas, fundado na aliança entre Estado e empresas — “que teriam uma
participação muito significativa quer no financiamento das actividades do CCB,
quer na sua gestão” —, rapidamente “demonstrou estar assente numa ficção”: “O
CCB dispõe de um património que lhe permite gerar receitas muito
significativas, mas para a prossecução do interesse público cultural que lhe
está confiado carece de um apoio sustentado do Estado, que, pelo seu lado, deve
dispor de meios de intervenção na gestão do centro.”
Ao longo de 15
anos, e até 1 de Setembro último, o CCB regeu-se pelos estatutos de 1999. No
princípio do mês, porém, perdeu a autonomia financeira de que usufruía desde a
criação da Fundação das Descobertas, em 1991. Segundo apurado pelo PÚBLICO,
apesar de continuar temporariamente a reger-se pelos estatutos de fundação, a 1
de Setembro o CCB foi reclassificado pelo Instituto Nacional de Estatística
(INE), tendo passado para o perímetro da Administração Pública.
Em termos de
orçamento e contabilidade, passará a funcionar da mesma forma que organismos
como o Teatro Nacional de São Carlos ou a Cinemateca Portuguesa, que há um ano
ameaçou fechar portas por falta de verbas operacionais.
“Significa que
podemos perder alguma agilidade de gestão”, confirmou ao PÚBLICO o vogal do
conselho de administração Miguel Leal Coelho, que, desde a morte de Vasco Graça
Moura, em Abril, vinha assegurando interinamente a presidência do CCB.
Equiparado à
função pública, o CCB terá de ver superiormente autorizadas todas as suas
despesas. E não poderá exercer as actividades empresariais através das quais
gera grande parte das suas receitas. É o caso do aluguer e concessão de espaços
como o das suas lojas e salas. É também o caso da construção do hotel que
comporia o módulo em falta no edifício de Belém, projecto anunciado pelo então
presidente António Mega Ferreira e que terá arrancado durante a administração
de Graça Moura, seu sucessor.
Estão em Belém
É em Belém, que
com a Ajuda poderá vir a formar um eixo de gestão comum dos equipamentos
culturais nesta zona de Lisboa, que estão as mais visitadas instituições sob a
alçada da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC). O Mosteiro dos
Jerónimos, que recebeu 722.758 pessoas em 2013, é o monumento mais visitado do
país. Em segundo lugar aparece a Torre de Belém, com mais de 537.855
visitantes.
Se falarmos
apenas de museus, é também em Belém que está o blockbuster: o Museu dos Coches
conseguiu, em 2013, 189.015 visitas. Fora da gestão da DGPC, o Museu Colecção
Berardo, com casa no edifício do CCB, teve no ano passado 562.614 visitantes.
O Palácio Nacional
da Ajuda, que poderá integrar o novo pólo concebido pelo Governo, é o primeiro
da lista dos palácios mais populares, com mais de 253 mil visitas — muito
graças à exposição de Joana Vasconcelos, que atraiu 235 mil pessoas.
Foi há três anos,
com a passagem da gestão para a Parques de Sintra-Monte da Lua, que a DGPC
perdeu o seu palácio com mais entradas: o Palácio Nacional de Sintra tinha, em
2011, 373 mil visitantes. Perdeu também o Palácio Nacional de Queluz, com 152
mil entradas, em 2011. Estes dois espaços culturais significaram em 2013 um
crescimento de 27,3% de visitantes para os valores totais da Monte da Lua. Em 2006, a direcção do
Património já tinha perdido o Palácio da Pena, que sozinho fizera nesse ano 382
mil visitantes.
No ano passado, o
total de visitantes do Monte da Lua foi de 1,7 milhões entradas, um número que
é ultrapassado pela soma de visitantes do Mosteiro dos Jerónimos, Torre de
Belém e Museu Colecção Berardo — mais de 1,8 milhões de entradas.
Catarina Moura
Belém não é Sintra mas Lamas pode
ser a pessoa indicada
Se é para se criar um novo pólo Belém-Ajuda, então António Lamas será a
pessoa certa para ficar no seu comando.
Cláudia Carvalho
/ 18-9-2014 / PÚBLICO
Embora não seja
ainda conhecido o plano de Lamas, Isabel Cordeiro, até ao início do ano
directora-geral do Património Cultural, acredita que com a sua escolha para
presidente do CCB se cria uma “oportunidade para se repensar os modelos de
gestão dos museus e monumentos e mais ainda da área monumental de Belém-Ajuda”.
“É importante criar sinergias e criar uma relação entre os museus e monumentos
que estão na Praça do Império, e do próprio CCB, com os museus e palácios que
se encontram na parte superior do pólo monumental”, diz Cordeiro, lembrando, no
entanto, que há questões que têm de ser acauteladas, “relativamente aos
princípios de subsidiariedade de uns monumentos em relação aos outros”.
“Acho que há
oportunidades mas claro que há muita reflexão para se fazer em torno desse
assunto porque é uma matéria complexa”, continua Cordeiro. “António Lamas será
de certeza a pessoa certa para pensar nisso. É uma pessoa que tem reflectido
sobre isso e tem uma obra feita”, referindo-se ao trabalho de Lamas na direcção
da Parques de SintraMonte da Lua, com quem chegou a trabalhar.
No entanto, Luís
Raposo, o arqueólogo que já foi director do Museu Nacional de Arqueologia,
situado nos Jerónimos, lembra que a situação de Sintra não é comparável com a
de Belém. “Nenhuma das unidades que Lamas geriu em Sintra tem esta dimensão.
Não têm, apesar de tudo, a centralidade em termos de memória nacional que têm
estes museus.” Raposo diz ainda que há aspectos em Sintra que é preciso rever.
“A experiência de Sintra é muito boa do ponto de vista da qualificação do
património, do restauro, da conservação, mas tem problemas graves”,
exemplificando com os preços praticados, “especialmente no Palácio da Pena”,
cuja entrada custa 14 euros.
Luís Raposo já no
ano passado enquanto presidente do ICOM Portugal tinha alertado, num artigo
publicado no PÚBLICO, em reacção ao artigo de António Lamas, para “os perigos”
que a mudança em Belém pode acarretar. Agora explica: “Eu estou de acordo que
deve haver uma gestão integrada, acho que é vantajoso e acho até escandaloso
que ainda não exista mas é preciso ter cuidado para não haver uma
descaracterização da personalidade própria de cada unidade.” Admite que António
Lamas “com o conhecimento profundo que tem desta matéria encontre a via
equilibrada e adequada para conjugar a gestão integrada com a autonomia de
projectos”, diz o arqueólogo, para quem é importante que todos os museus e
monumentos da zona integrem este novo pólo. “Se for só o que é da Secretaria de
Estado da Cultura, então o projecto fica coxo”, afirma.
Isto porque,
explica, é importante que se pense numa gestão integrada não só ao nível da
bilhética, como da circulação de equipamentos, pessoas, e ainda da programação.
“Pode ser uma forma de aumentar, por exemplo, o número de visitantes ao Museu
Nacional de Etnologia”, que em 2013 teve 12.051 visitantes.
Raposo lembra
ainda que em Belém estão “algumas máquinas de fazer dinheiro” como o Mosteiro
dos Jerónimos e a Torre de Belém e, uma vez adoptado o modelo da Parques de
Sintra, “as receitas geradas passam a ser todas postas ao serviço desses
monumentos”. “Isso vai beneficiar muitíssimo esses monumentos dessa zona e é
muito bom. Só que a preço de quê? Do colapso de uma política nacional justa de
reinvestimento noutras zonas do país, onde os museus e os monumentos são
altamente deficitários”, explica, temendo que os apoios do Estado se reduzam
ainda mais.
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