domingo, 21 de setembro de 2014

É possível ser escocês, britânico e europeu, por Teresa de Sousa.


É possível ser escocês, britânico e europeu
Felizmente, os escoceses votaram contra a independência. Não graças aos que governam hoje o Reino Unido
Teresa de Sousa / 21-9-2014 / PÚBLICO

Ninguém estava preparado, de Berlim a Atenas, de Washington a Nova Deli (o primeiro-ministro indiano achou a ideia péssima) para ver desaparecer a “Union Jack” da cena internacional. E não apenas por hábito. A bandeira britânica simbolizou muitas vezes o lado certo da História. Felizmente, os escoceses votaram contra a independência. Não graças aos tories que governam hoje o Reino Unido com a sua habitual tradição centralista (que vão ter de repensar), mas porque não viram uma contradição insuperável entre ser escocês e ser britânico. Amartya Sen, o grande economista de Cambridge, escreveu um livro magistral sobre a questão das identidades e as razões pelas quais elas continuam a gerar violência ( Identidade e Violência) em muitas partes do mundo. A tese central de Sen é simples: hoje, num mundo globalizado pela economia e pela comunicação, as pessoas têm de se habituar a viver com múltiplas identidades e a saber conciliá-las. Locais, nacionais, internacionais, religiosas. Um escocês pode manter a sua identidade nacional sem com isso ter de rejeitar a sua identidade britânica ou europeia. Quando escreveu o seu livro, a Europa debatia apaixonadamente o melhor modelo para integrar as suas minorias de uma forma pacífica e democrática. Os atentados de Londres (2005) cometidos por gente nada e criada no Reino Unido eram uma mensagem profundamente perturbadora. O multiculturalismo inglês foi posto em causa. O modelo oposto, a “integração republicana”, praticado na França também gerou polémica, quando os banlieues das grandes cidades se incendiaram (também em 2005) ou quando foi aprovada a lei que proibia os sinais religiosos (leia-se o lenço) nas escolas. O debate foi sobretudo em torno da imigração vinda de países islâmicos.
Hoje o debate regressa não apenas por causa dos novos jihadistas que partem da Europa para ir combater ao lado do Estado Islâmico, mas por razões bem mais próximas da nossa cultura europeia: as velhas nações estão de regresso, sem violência mas com força política, para
questionar os Estados a que pertencem e o funcionamento das democracias em que vivem. O normal seria que um habitante de Glasgow ou de Edimburgo se sentisse primeiro escocês, depois britânico e europeu, conseguindo viver com essa sobreposição de identidades que lhes dá, de resto, múltiplas vantagens. Hoje começa a não ser assim. Muitos escoceses pensaram que o seu petróleo lhes permitiria financiar um modelo social assente no Estado de bem-estar, que vêem ameaçado de cada vez que os conservadores entram em Downing Street. Vivem sob o fantasma de Thatcher. Acreditam nalgumas óbvias ilusões que o Partido Nacional da Escócia lhes prometeu, explorando a “febre” identitária que tem muito pouco de racional. É o risco dos referendos. Como escreveu Chris Patten, um velho conservador britânico, “os referendos são uma via lamentável para resolver as grandes questões políticas”. São, pelo contrário, a melhor arma de que dispõem os populistas e os demagogos. Deixam marcas. Patten sublinha uma delas: a tentação de olharem para os ingleses como o inimigo. “Os separatistas pediramlhes que escolhessem entre a sua identidade escocesa e a sua identidade britânica”, escreve Philip Stephens, colunista do Financial Times. “A maioria escolheu ficar com as duas.” São circunstâncias diferentes, mas também seria fantástico que os britânicos, quando confrontados com o referendo que Cameron lhes prometeu sobre a Europa, percebessem que não há incompatibilidade entre as duas identidades.
Tal como na Catalunha, este regresso às identidades nacionais, mesmo que alimentado por alguns mitos e alguns ressentimentos justificáveis, assenta sobretudo num indisfarçável egoísmo nacional. Os catalães, que são ricos, não querem financiar as regiões mais pobres de Espanha através de um modelo redistributivo. O mesmo fenómeno se observa na Itália do Norte, muito rica, mas sem disposição de financiar o Mezzogiorno. Angela Merkel até pode passar por generosa quando lá vai financiando os países da periferia europeia com maiores dificuldades. Fálo, é verdade, em nome de um interesse próprio da Alemanha, mas que a maioria dos alemães não quer pagar.
A Europa sofre do choque da globalização que a Guerra Fria permitiu e que o Ocidente incentivou (e bem), mas que alterou radicalmente os termos de troca internacionais. As potências emergentes desafiam hoje as economias ocidentais. A riqueza está a passar do Atlântico para o Pacífico. As democracias europeias não têm conseguido dar resposta a este desafio, deixando que se cavem níveis de desigualdade para os quais não estão preparadas. A Europa, que chegou a ser vista como a protecção contra a globalização, surge hoje aos olhos de muitos europeus não como a solução mas como o problema, criando divisões e ressentimentos que levarão tempo a sarar. Ora, nem a União Europeia nem os seus governos e as suas instituições têm contribuído para responder a esta inquietação, por muito que falem dela. E há, infelizmente, sinais de que as coisas não vão necessariamente melhorar.
Durante dois anos (2010-2012) a crise europeia praticamente sequestrou as reuniões semestrais do G20. Sendo a maior economia do mundo, os riscos de uma eventual desagregação do euro eram enormes. Graças a Mario Draghi a iminência do descalabro foi afastada. A Europa começou a respirar um pouco mais à-vontade. Hoje, começamos a perceber que pode ter sido sol de pouca dura.
Na reunião dos ministros das Finanças do G20 que está a decorrer na Austrália, a Europa volta a ser o problema. A estagnação económica europeia ameaça o crescimento mundial. Janet Yellen, a presidente da FED, deu o alarme: “A conjuntura europeia faz parte dos riscos que pesam sobre a economia mundial.” Mais uma vez, ninguém consegue perceber porque é que a maior economia (23,4 por cento do PIB mundial, ligeiramente acima dos EUA) se deixa arrastar para esta situação. Mário Drahgi, mais uma vez,
apresentou um conjunto de medidas não convencionais para estimular a economia, que se aproximam cada vez mais do quantitative easing a que recorreram no início da crise os outros bancos centrais. Berlim torce o nariz.
Até porque, na Alemanha está a crescer o descontentamento com a chanceler, criticada por não ter imposto a sua marca na nova Comissão (talvez porque não precise, poderíamos acrescentar) e que se deixa ultrapassar pelo BCE (que a própria Alemanha exigiu que fosse tão independente como o Bundesbank). A opinião pública alemã não conseguiu engolir a escolha de Pierre Moscovici para a pasta da Comissão que controla as regras do euro, insistindo em que a França é o problema e não pode ser a solução. As coisas em Paris também podiam correr melhor. O programa de Manuel Valls inclui as reformas que é preciso fazer. O primeiro-ministro ganhou uma moção de confiança no Parlamento, embora com três dezenas de socialistas a votarem contra, tirando-lhe a maioria absoluta. O seu problema maior é a debilidade do Presidente. O adiamento do compromisso dos 3% do défice para 2017 não ajuda à sua credibilidade e aumenta a desconfiança de Berlim.

Tudo misturado, regressa o sentimento de que a crise não está vencida. Regressa o “tempo das dúvidas e dos equívocos” na relação franco-alemã, escreve o correspondente do Monde em Berlim, Frédréric Lemaitre. São dois universos cada vez mais distantes e a distância inclui o SPD. Como se evita uma estagnação à japonesa numa Europa que não tem nem a uniformidade nem os valores sociais do Japão é uma questão fundamental. É sempre possível que tudo ainda corra mal. E, nesse caso, o cenário seria muito pior do que o destino da Escócia e do Reino Unido.

Sem comentários: