OPINIÃO
O bypass europeu: ainda a
Escócia, ainda a Europa
PAULO RANGEL
16/09/2014 - 03:54
O recrudescimento das aspirações independentistas só é possível porque a
União Europeia atingiu o grau de maturidade institucional e política que
atingiu.
1. Na semana
passada, evidenciou-se aqui como o discurso dos políticos ingleses estimulou,
de alguma maneira, por efeito de imitação – na teoria do federalismo,
falar-se-ia de isomorfismo (Lijphart) –, o despontar do sentimento e do
ressentimento independentista escocês. E deu-se até o exemplo paralelo do
estímulo à não solidariedade federal que o discurso dos políticos alemães, no
contexto da crise europeia, tem provocado no interior da Alemanha, acicatando
rivalidades e tensões entre os estados federados. De resto, o fenómeno das
regiões ricas do Norte que não querem pagar as contas das regiões pobres do Sul
está presente – verdadeiramente omnipresente – em toda esta discussão da
autodeterminação de “novos” povos europeus. A Flandres é bem mais rica do que a
Valónia, a Padânia cansou-se de sustentar o Mezzogiorno, o País Basco e a
Catalunha queixam-se amargamente da factura que lhes é imposta pelas zonas
pobres da Espanha. Curiosamente, só a Escócia – que também está a Norte – não é
mais rica do que o Sul. Mas esta conclusão pode ser precipitada, pois os velhos
Pictos fazem as contas ao petróleo do Mar do Norte que, se se convertesse numa
receita própria e exclusiva dos escoceses, logo os tornaria – arriscam eles –
numa espécie de segunda Noruega ou, ao menos, de segunda Dinamarca. Em menos
palavras: a retórica dominante da crise das dívidas soberanas, com o seu ajuste
de contas permanente, não ajudou a serenar a emergência destes sentimentos
autonomistas.
2. É óbvio,
todavia, que esta questão não é meramente económica – e esse é um dos erros dos
adeptos do “não”, que insistem numa mera contabilidade de “viver melhor, viver
pior”, desvalorizando a profunda carga espiritual e simbólica de uma escolha
deste tipo. E é igualmente óbvio que a questão não se pôs como um efeito
lateral ou colateral do uso ou do abuso de um certo tipo de discurso por banda
dos responsáveis políticos. Um movimento fundo e sério em direcção à
independência não pode nunca ser uma simples refracção da ambiguidade e do
oportunismo enviesado do discurso político. A questão é muito mais dura e muito
mais densa.
3. São muitos os
que – decerto em desespero argumentativo – para aí vaticinam a inviabilidade de
um Estado escocês ou de um Estado catalão. Mas a primeira pergunta a que terão
de responder é a de saber se acham que Malta, Chipre, Luxemburgo, Estónia,
Letónia ou Eslovénia são ou não Estados viáveis… Sim, porque um independentista
flamengo ou veneziano não vislumbra que secreta razão empresta viabilidade à
Estónia ou a Chipre e não a havia de conferir ao País Basco ou à Catalunha. E
há-de querer saber o que a Irlanda ou a Dinamarca têm que não tenha uma destas
regiões aspirantes a Estados. Eis os perigos que sempre traz uma argumentação
puramente economicista.
A querer levantar
objecções, talvez a questão deva ser reformulada e suscitada por um outro
ângulo. Reformulemos, pois. A Estónia ou a Eslovénia seriam viáveis como
Estados e enquanto Estados se não existisse a União Europeia? Não será o
“guarda-chuva” político e constitucional da UE o garante da viabilidade de uma
série de Estados – a bem dizer, de pequenos Estados? E não será um garante tão
intimamente ligado à sua viabilidade e à sua continuidade que, de algum modo,
altera a própria natureza estadual tal como ela era tradicionalmente concebida?
4. O ponto que se
quer aqui marcar talvez pareça surpreendente vindo de um europeísta. Mas nem
por isso deve ser iludido. Em certa medida, o recrudescimento das aspirações
independentistas só é possível porque a União Europeia atingiu o grau de
maturidade institucional e política que atingiu. Num mundo globalizado, a ideia
de um Estado flamengo ou escocês pareceria uma miragem, se eles não tivessem um
quadro constitucional de integração numa entidade com outra dimensão, peso e
desenvoltura. O que sucede é que, a partir do momento em que eles podem
integrar-se na UE, deixam de precisar do Estado de suporte em que estavam
inseridos. Na verdade, essas comunidades políticas de baixa densidade –
chamemos-lhe assim à falta de uma qualquer nomenclatura – não compreendem
porque hão-de coexistir dois níveis político-constitucionais acima delas. Se
têm Bruxelas, não carecem de Londres. Se dispõem de Bruxelas não necessitam de
Madrid. A subsistência de uma entidade constitucional não estadual num patamar
acima dos Estados passa a permitir uma ligação imediata e directa entre o nível
mais baixo e o nível mais alto, sem ter de passar pelo grau do Estado-nação
(ou, mais exactamente, Estado vestefaliano).
Nada que nos deva
espantar. Com efeito, a UE, desde sempre, foi uma aliada financeira e
administrativa, mas também política, das regiões. É bem conhecida a velha
divisa “Europa das regiões”. Esta aliança táctica entre a Europa e as regiões
tinha naturalmente um desígnio comum: retirar poder e poderes ao Estado-nação
(ao Estado central e centralizado). Tratava-se de um movimento simétrico, mas
convergente no esvaziamento dos poderes do Estado enquanto centro político: as
regiões tiravam por dentro, a Europa retirava por fora. E quanto menos poder
tivesse dentro, mais fácil era puxá-lo para fora; e quanto menos poder tivesse
fora, mais simples era subtraí-lo para dentro.
5. Tudo isto
serve para compreender que as tensões centrífugas a favor das regiões não andam
desligadas das tensões centrípetas a crédito de Bruxelas. Os eurocépticos
pensarão que, dados os riscos e ameaças destes movimentos secessionistas, este
é mais um motivo para esconjurar a União e a sua lógica. Mas o que está em
causa é talvez mais fundo e mais denso: é a própria natureza da forma política
Estado que está em manifesta transformação. É, aliás, isso que favorece o
regresso à Europa destas comunidades políticas menores, criando um tecido de
grandezas assimétricas e de equilíbrios típicos de um caleidoscópio. À boa maneira heraclitiana, a constituição está em devir.
Se a Escócia disser adeus, será
para sempre, avisou Cameron
Primeiro-ministro britânico discursou em Aberdeen, na sua última acção de
campanha pelo “não” no referendo que poderá desfazer o Reino Unido, levando à
saída de uma das quatro nações que o compõem
Clara Barata /
16-9-2014 / PÚBLICO
“Um voto no ‘não’ pode significar uma mudança mais
rápida, mais justa, mais segura e melhor”, prometeu David Cameron
Um adeus é para
sempre. Se os escoceses derem a vitória ao “sim” no referendo sobre a
independência de quinta-feira, o resultado será irreversível. “Não há como
voltar atrás. Não há uma segunda volta. Se a Escócia votar ‘sim’, o Reino Unido
vai partir-se e vamos separar-nos para sempre”, disse David Cameron em
Aberdeen, a terceira maior cidade da Escócia, um pólo universitário e também da
exploração petrolífera.
Foi uma última
tentativa do primeiro-ministro britânico de tentar ganhar pontos para o “não”,
quando as sondagens mostram os dois lados virtualmente empatados, com as
diferenças dentro das margens de erro dos estudos de opinião. Salientou os
“valores britânicos, a justiça, a equidade e a liberdade”, partilhados pelas
quatro nações que constituem o Reino Unido (Inglaterra, Escócia, Irlanda do
Norte e País de Gales), e esforçou-se para sublinhar os “factos”, os aspectos
negativos de uma Escócia independente.
“Deixaremos de
ter a mesma moeda; os fundos de pensões vão ser repartidos; passaremos a ter
fronteiras internacionais, que não serão tão fáceis de cruzar; acabará o apoio
que têm nas embaixadas britânicas quando estão no estrangeiro; mais de metade
dos empréstimos para a compra de casa passarão, automaticamente, a estar em
bancos estrangeiros; as taxas de juro deixarão de ser reguladas pelo Banco de Inglaterra
— com a estabilidade e segurança que isso garante; se ficarem bancos na
Escócia, e se tiverem problemas, terão de ser os contribuintes escoceses a
pagar os custos sozinhos”, enumerou Cameron.
“Não estou a
meter medo, é meu dever garantir que não é vendido aos escoceses um sonho que
logo desaparecerá”, defendeu-se David Cameron, reconhecendo a acusação, feita
pelos partidários do “sim”, de que os políticos britânicos e as grandes
empresas que ameaçam retirar a sua sede da Escócia se o “sim” ganhar têm usado
“a intimidação, o medo e ameaças” como armas na campanha eleitoral, nas
palavras de um comentário do jornalista escocês Kevin McKenna no The Guardian.
Mas não é claro
qual o efeito que terão estes apelos desesperados de Cameron. O seu Partido Conservador
obtém a maioria do apoio em Inglaterra — e Alex Salmond, o primeiro-ministro e
líder independentista escocês, gosta de dizer que “há mais pandas gigantes no
zoo de Edimburgo do que deputados tories no parlamento regional da Escócia”. Os
tories elegeram apenas um deputado para o parlamento de Edimburgo.
O motivo deste
desamor pelos conservadores remonta à passagem de Margaret Thatcher pelo
Governo de Londres (1979-1990), aos anos de crise da década de 1980 e à
reconversão da economia britânica imposta pela primeira-ministra conservadora,
que “criaram uma agenda política a norte da fronteira em nítido contraste com o
Sul, em Inglaterra”, escreveu no fim-de-semana que passou no The Guardian o
respeitado historiador escocês Tom Devine, que declarou o seu apoio ao “sim” à
independência. A Escócia tornou-se uma zona livre de tories, em termos
eleitorais. Foi outro bastião da união que passou à história”, escreveu Devine.
Cameron só nos
últimos tempos participou na campanha, quando o “sim” disparou nas sondagens. Em
desespero, o Governo conservador ofereceu a garantia de mais poderes
autonómicos, ao nível da cobrança de impostos, orçamento e segurança social — e
rapidamente, em troca de a Escócia continuar no Reino Unido. “Em Novembro
teremos um Livro Branco, que será legislação em Janeiro – a tempo do
aniversário de um dos heróis da Escócia, o poeta Robert Burns, que se celebra a
25 de Janeiro. Este calendário já foi aceite pelos principais partidos e estou
preparado para trabalhar nele em 2015” ,
garantiu Cameron.
“Portanto, um
voto no ‘não’ significa, na verdade, uma mudança mais rápida, mais justa, mais
segura e melhor”, afirmou Cameron — que copiou quase palavra a palavra o slogan
lançado na sexta-feira pelo ex-primeiro-ministro trabalhista Gordon Brown (mais
rápido, mais seguro, melhor), salienta o The Guardian.
Brown foi
considerado o primeiroministro menos popular do Reino Unido em 2010, ao
conduzir o seu partido para uma devastadora derrota eleitoral, que levou
Cameron ao poder. Mas foi ele que deu novo fôlego à campanha pelo Vamos
Continuar Juntos, já em Setembro, considerando que o tom demasiado negativo
estava a alienar os eleitores. Na verdade, foi ele que anunciou o projecto
legislativo para novos poderes autonómicos – Cameron apenas foi atrás.
Numa série de
discursos fervorosos, Brown fez renascer a campanha do “sim”. “Podem-se perder
países por um erro. Não deixem que isto se transforme em políticos britânicos
contra a Escócia”, afirmou.
Cameron segue a
música imposta por Brown: “Se não gostam de mim, não vou cá ficar para
sempre!...”, afirmou, com um riso nervoso. “Para conseguir um futuro melhor não
é preciso destruir o nosso país.”
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