terça-feira, 16 de setembro de 2014

Algo está a mudar na justiça, por Luís Rosa.


Algo está a mudar na justiça
Por Luís Rosa
publicado em 17 Set 2014 in (jornal) i online
A condenação de Lurdes Rodrigues é mais um exemplo de como os tribunais olham para os poderosos de forma diferente

Um ex-autarca e ex-ministro a cumprir pena de prisão de um ano por fuga ao fisco, um ex-banqueiro condenado por manipulação de mercado, outro ex-banqueiro (e ex-ministro) condenado a pena de prisão efectiva por tráfico de influência e um terceiro homem da banca, ex-dono disto tudo, detido para ser constituído arguido por suspeitas de branqueamento de capitais. Tudo isto aconteceu em Portugal – e não na Suécia. Tudo isto aconteceu a Isaltino Morais, Jardim Gonçalves, Armando Vara e Ricardo Salgado – cidadãos que os portugueses comuns julgam poderosos e inatingíveis. E tudo isto revela que algo na justiça está a mudar.
A condenação de Maria de Lurdes Rodrigues a três anos e meio com pena suspensa pelo crime de prevaricação está dentro do mesmo padrão. Com uma nuance: mais importante que a pena suspensa a que foi condenada na 6.a Vara Criminal de Lisboa, foi a multa de 30 mil euros pelo prejuízo causado ao Estado – cujo pagamento ditará de facto a suspensão da pena. Essa pena acessória prova que a justiça quer dar maior relevo aos danos patrimoniais provocados por decisões dos titulares de cargos políticos. Este facto não é de somenos quando a crise económica que o país vive ininterruptamente há mais de 14 anos não se deve apenas ao esgotamento do modelo que promoveu o progresso económico, mas também a muitas decisões erradas, infundadas e reveladoras de má gestão que foram tomadas pela nossa classe política. Igualmente revelador desta nova fase é o facto de o último membro do governo condenado por prevaricação ter sido Costa Freire, secretário de Estado da Saúde do PSD nos anos 90 do século passado.
A mão mais pesada da Justiça tem assustado os advogados. Certamente os leitores terão ouvido ou lido declarações de vários criminalistas conhecidos sobre a desigualdade com que os políticos ou banqueiros entram numa sala de audiências. Não é intelectualmente honesto defender tal desigualdade ignorando o profundo desequilíbrio que ainda existe no acesso à justiça. Quem pode pagar a um bom advogado continua a ter uma justiça muito diferente daqueles que não têm poder financeiro. Basta ver a forma como Isaltino Morais conseguiu escapar à prisão durante dois anos através de recursos ou incidentes processuais, ou o simples facto de raramente os poderosos cumprirem pena de prisão efectiva (fazer da excepção de Isaltino a regra será a próxima fase) para percebemos melhor que ainda falta percorrer algum caminho porque tais hipóteses estão vedadas ao cidadão comum.

Este argumento de alegada desigualdade levanta, contudo, outra questão. Estarão os juízes mais duros com os rostos mais visíveis (políticos e banqueiros) das causas da política de austeridade seguida nos últimos anos? Provavelmente sim. Mas esse maior escrutínio é uma prova de justiça – e não de desigualdade. Os tribunais têm de estar sintonizados com a comunidade que os rodeia – e não totalmente desfasados da realidade. Os juízes, como os cidadãos, estão hoje mais sensibilizados para as consequências negativas dos decisores políticos e para os problemas do sistema financeiro. Isso é uma clara evolução do nosso escrutínio democrático e um sinal de esperança. Mas acima de tudo é um sinal de que o país está a avançar – e não a definhar.

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