OPINIÃO
A sonsice de Pedro Passos Coelho
JOÃO MIGUEL
TAVARES 25/09/2014 - PÚBLICO
O chuto para a Procuradoria é apenas um expediente espertalhão com o
objectivo de adiar a admissão do óbvio: o primeiro-ministro fez asneira. E da
grossa.
Não há qualquer
vontade de apurar “a verdade” ou desejo de esclarecer a pátria no pedido do
primeiro-ministro para a Procuradoria-Geral da República investigar o caso
Tecnoforma. O Ministério Público tem mais que fazer e Passos Coelho sabe muito
bem o que fez. Pode ter sido há 15, 20 ou 30 anos: ninguém se esquece de um
ordenado que duplica o rendimento mensal. Simplesmente, Passos não quer, nem
pode, admiti-lo – para ser coerente com o moralismo que apregoa, teria de se
demitir no minuto seguinte. Donde, o chuto para a Procuradoria é apenas um
expediente espertalhão com o objectivo de adiar a admissão do óbvio: o
primeiro-ministro fez asneira. E da grossa.
Isto é
simultaneamente ridículo e sintomático. Ridículo, porque os valores que estão
em causa não justificariam a queda de um primeiro-ministro. Sintomático, porque
o problema da Tecnoforma está longe de ser o dinheiro que pagava a Passos
Coelho – a empresa é um retrato perfeito de como se desviam fundos europeus
para actividades que podem até nem ser ilegais, mas que são inconcebíveis e imorais.
Convém recordar aos mais esquecidos que a Tecnoforma era essa extraordinária
empresa, impulsionada pelo romântico par Passos-Miguel Relvas, que se propunha,
em troca de 1,2 milhões de euros, dar formação a 1063 pobres almas com um
objectivo que parece saído do argumento de uma série cómica britânica: ensinar
os mais de mil formandos a operar em nove aeródromos da Região Centro, dos
quais só três estavam activos e empregavam, no total, cerca de 10
trabalhadores.
Foi assim que,
durante anos e anos, foram estoiradas dezenas de milhões de euros de fundos
comunitários que deveriam contribuir para o desenvolvimento do país. E claro:
quem frequentava os corredores da Assembleia da República era um veículo
privilegiado para canalizar os fundos para terrenos favoráveis. O Manuel sabia
de um concurso para a formação de medidores de perímetros de beringelas e dizia
ao Joaquim; o Joaquim sabia de um concurso para a formação de analistas em
brilho de superfícies inox em restaurantes e dizia ao Asdrúbal; o Asdrúbal
sabia de um concurso para formar os formadores disto tudo e dizia ao Manuel. A
única variável neste processo era mesmo a dimensão da lata e a vocação dos
senhores deputados e secretários de Estado para gerir negócios. Havia alguns,
como Miguel Relvas, que tinham muita lata e muita vocação. Havia outros, como
Passos Coelho, que provavelmente seriam um pouco mais modestos – mas que, ainda
assim, aproveitavam uma migalha aqui e outra acolá, porque a vida é longa e o
ordenado de deputado curto.
Só que, ao contrário
de Relvas, que tem um sorriso do tamanho da sua lista telefónica e se assume
como “facilitador de negócios”, Pedro Passos Coelho sempre se apoiou numa
imagem de extrema modéstia e parcimónia. Ele é o homem de Massamá. Ele é o
homem que passa férias em Manta Rota. Ele é o homem que pôs os ministros a
viajar em turística. E esse homem, claro está, não pode conviver com uma
acusação de cinco mil euros a caírem-lhe no bolso todos os meses sem que ele se
recorde disso, ao mesmo tempo que invoca o estatuto de deputado em
exclusividade para sacar 60 mil euros de subsídio de reintegração. É possível
que Passos Coelho apenas tenha feito aquilo que todos fizeram durante os
festivos anos 90. Só que aquilo que ele fez em 1999 não é aceitável em 2014. E
ainda bem. A sonsice vai aguentá-lo – mas a sua reputação de governante
impoluto morreu.
Pedido de Passos à Procuradoria
esbarra no levantamento do sigilo bancário
PÚBLICO /
25-9-2014
O pedido do
primeiroministro à ProcuradoriaGeral da República para que se averigúe se houve
algum ilícito no recebimento de montantes não declarados e com origem na
Tecnoforma deverá esbarrar no sigilo bancário. Uma vez que os eventuais crimes
estarão prescritos — reportarão ao período entre 1997 e 1999 e o crime de
fraude fiscal prescreve após dez anos —, o Ministério Público (MP) não terá
legitimidade para fundamentar o pedido ao banco para que levante o segredo.
Seria uma forma de obter a informação capaz de desfazer a dúvida sobre se
Passos Coelho recebeu efectivamente algum vencimento pelo seu cargo de
presidente do Centro Português para a Cooperação ligado à Tecnoforma naqueles
anos.
Procuradores ouvidos
pelo PÚBLICO garantem mesmo que se o pedido for feito e os dados acedidos, o
magistrado que o subscrever poderá incorrer numa ilegalidade, porque está a
querer apurar um crime que já prescreveu e com isso a lesar direitos. Em último
caso, sublinham, poderá estar ele próprio a violar o segredo bancário.
Isto não
impossibilita que a questão seja averiguada pela PGR, apesar de alguns juristas
realçarem que não se pode investigar formalmente um crime que prescreveu. “É
ridículo abrir um inquérito que já se sabe que será de imediato arquivado”,
disse ao PÚBLICO o constitucionalista Manuel Costa Andrade.
Perante uma
denúncia, a Procuradoria-Geral da República pode abrir um inquérito para
verificar se o crime prescreveu efectivamente, arquivando-o de imediato. Esta
tem sido a prática dos magistrados, ao que o PÚBLICO apurou junto de fontes
judiciais.
Porém, neste caso
até há já um inquérito em curso, o relativo à Tecnoforma no Departamento
Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa. Foi para lá que a
procuradorageral da República, Joana Marques Vidal, remeteu, aliás, a denúncia
anónima que visa o primeiro-ministro Passos Coelho relativamente ao que recebeu
enquanto deputado e o que declarou.
O teor do pedido
de Passos Coelho para que o Ministério Público averigúe a sua situação ainda
não é conhecido, mas um procurador explicou ao PÚBLICO que as investigações não
servem para excluir as responsabilidades de ninguém. A situação deixa dúvidas e
merece as críticas e a oposição de alguns juristas.
“Um crime que
prescreveu não pode ser investigado. O Ministério Público investiga para que
haja acusação e punição. Isso é um acto nulo”, disse ao PÚBLICO o
ex-procuradorgeral distrital de Coimbra Braga Temido.
E, neste ponto,
todos estão de acordo, mesmo os procuradores que admitem a possibilidade de se
abrir um inquérito. “Esses actos são nulos”, dizem.
Mas se no âmbito
do inquérito que está a decorrer no DCIAP o Ministério Público tiver encontrado
informação que esclareça o pedido de Passos Coelho, pode, afinal, vir a prestar
informação pública, apesar do segredo de justiça do processo original.
Tal está previsto
na lei, a pedido do visado e em caso de interesse público, como aconteceu
recentemente quando a Procuradoria-Geral da República veio dizer que o exprimeiro-ministro
José Sócrates não é suspeito no âmbito do processo Monte Branco. Noutra coisa
concordam também os magistrados: Passos Coelho é o único com legitimidade para
pedir as suas próprias informações bancárias que esclareçam cabalmente a
suspeita.
Pedro Sales Dias
e Sofia Rodrigues
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