terça-feira, 30 de setembro de 2014

Jogar golfe é um direito humano. Nas Amoreiras. Como até um clube de golfe que nunca abriu vai passar para o Orçamento do Estado.

"Clube de Golf das Amoreiras nunca chegou a abrir, mas vai ser um encargo no Orçamento do Estado. As regras da União Europeia impuseram-nos esta transparência e agora o INE vai poder olhar para as contas de todas estas entidades e fazer, no fim, as contas de somar que há muito deviam ser feitas. E o que é triste é que se hoje nos assustamos com a nova dimensão dos velhos défices, amanhã lá estaremos a ver se, no Clube de Golfe das Amoreiras, o tal onde nunca se deu uma tacada mas que certamente cumpre uma qualquer nobre função pública, quiçá social, porventura tão essencial como qualquer outro direito humano, não haverá ainda alguma mordomia disponível. Quem sabe…"
JMF in OBSERVADOR


CONTAS NACIONAIS
Jogar golfe é um direito humano. Nas Amoreiras
José Manuel Fernandes 
30/9/2014 / OBSERVADOR

Anos a fio ministros e autarcas andaram a esconder dívidas em centenas de entidades cujas contas não entravam nas do défice público. Já o sabíamos. Não sabíamos é que isso até incluía clubes de golfe.

Não há nada como fazer contas de somar. Ou, para ser mais exacto, juntar tudo e somar tudo, sem deixar nada de fora, sem truques, sem lixo escondido por baixo dos tapetes nem contas omitidas.

Sabíamos há muito que, anos a fio, os governos e os autarcas se tinham especializado em disfarçar as contas públicas: tudo o que pudessem tirar do perímetro da consolidação orçamental não contava para o défice e para a dívida, escapava ao cutelo de Bruxelas e iludia a crendice dos eleitores. Sabíamos também que um dia íamos ter de alterar critérios e tirar esses esqueletos dos armários. Nesse dia as contas públicas ficariam ainda mais feias. Foi isso que aconteceu agora. O que descobrimos é pior do que aquilo que imaginávamos.

Ver os défices do passado darem saltos de canguru era certo e sabido que ia acontecer. Mesmo assim não se imaginava que em 2010, o último ano do consulado Sócrates, o défice tivesse chegado aos 11,2%. Não há memória de tal desequilíbrio nas contas do Estado e só se estranha que ainda haja quem se orgulhe desse feito.

Mas a maior das surpresas não foi ver alguns destes saltos – foi ver o tipo de entidades que, a partir de agora, são consideradas “Entidades do Setor Institucional das Administrações Públicas”, isto é, as suas contas vão directamente ao nosso bolso, o de contribuintes, sem subterfúgios ou disfarces. A lista de todas essas entidades enche 94 páginas de um documento ontem disponibilizado pelo Instituto Nacional de Estatísticas, com 40 a 50 entidades por página. Está lá tudo, desde a Assembleia da República do Clube de Golfe das Amoreiras. Sim, aquele clube de golfe onde nunca se chegou a dar uma tacada. Sim, um clube que não está sozinho, pois tem a companhia do “Porto Santo Golf Resort”. E de muitas outras coisas bizarras, como marinas, aquários ou termas, teatros e fundações, para além, claro, de estádios do Mundial. A quantidade de coisas que o Estado acha que lhe compete fazer, e para fazer, ter, é infindável.

Depois da surpresa, a leitura atenta da lista permite-nos perceber o que entrou para ela este ano – 268 entidades – e o que fez saltar os números dos défices passados. Mais: permite perceber melhor porque é que em Portugal só muda o que permite que tudo fique na mesma.

Entre as entidades que entraram para o perímetro da consolidação orçamental as que pesam mais são a CP, com as suas dívidas gigantescas, a maior parte dos grandes hospitais, incluindo todos os IPO, e empresas públicas como a Parpública ou a Estamo. A forma como o Estado geria a relação com essas entidades simboliza bem o modo como sucessivos governos trataram de disfarçar o défice real das contas públicas. É certo que, no fim do dia, paga sempre o mesmo mexilhão, mas essas entidades, ao conseguirem endividar-se fora do perímetro das contas públicas, ajudavam a criar a ilusão de que as contas do Estado estavam controladas quando, afinal, estavam era maquilhadas.

Veja-se o caso da Estamo. Essa empresa comprava ao Estado edifícios ocupados por serviços públicos. Quando o fazia, a “venda” funcionava como receita e abatia às contas do défice, apesar de só se ter trocado o dinheiro de bolso. Para realizar essas compras, a Estamo ia ao mercado bancário endividar-se, mas isso não era problema porque a sua dívida não contava para a dívida pública. Depois, para fingir que era uma empresa a sério, passava a cobrar renda aos serviços públicos que, mesmo tendo vendido os imóveis em que estavam instalados, por lá continuavam. Essas rendas passavam a ser um custo que, esse sim, pesaria no défice dos anos seguintes.

Como foram quase três centenas as entidades que agora, por imposição das novas regras europeias, tiveram de ser integradas no perímetro das administrações públicas, basta-nos multiplicar por 300 esquemas deste género, mesmo que em dimensão menor, para termos uma ideia de como se alimentou, da administração central à administração local, uma fatal ilusão sobre a saúde das contas do Estado.

Estes mecanismos não permitiam poupar dinheiro ou dívida, quanto muito atiravam para o futuro contas que deviam ser pagas hoje. Nenhum contribuinte se escaparia a pagar a factura quando ela aparecesse. O que estes mecanismos permitiam era gastar mais fingindo que se estava a gastar menos. Com eles era possível – como agora se vê com mais clareza ao conhecermos o valor das contas corrigidas dos défices de 2010 a 2013 – iludir as regras impostas pela moeda única. Com elas, no fundo, era possível manter o Estado a viver acima das suas possibilidades, uma expressão que irrita muita gente mas que este exemplo ilustra de forma especialmente eloquente.

Tão impressionante como passar os olhos pela infindável lista de entidades, é interiorizar que tudo aquilo que ali está tem responsáveis, tem administradores, tem secretariados, tem viaturas e quase sempre tem motoristas. Olha-se para ali e percebe-se a dimensão do país dos boys: até uma gráfica a CP tinha, e até essa gráfica tinha gestores de nomeação política.

É por isso que digo que Portugal não muda. E que ninguém reforma o Estado a sério e a doer. Ou que então só o “reformam” quando do exercício resulta um número não muito diferente de entidades com lugares para preencher.

As regras da União Europeia impuseram-nos esta transparência e agora o INE vai poder olhar para as contas de todas estas entidades e fazer, no fim, as contas de somar que há muito deviam ser feitas. E o que é triste é que se hoje nos assustamos com a nova dimensão dos velhos défices, amanhã lá estaremos a ver se, no Clube de Golfe das Amoreiras, o tal onde nunca se deu uma tacada mas que certamente cumpre uma qualquer nobre função pública, quiçá social, porventura tão essencial como qualquer outro direito humano, não haverá ainda alguma mordomia disponível. Quem sabe…

FINANÇAS PÚBLICAS
Como até um clube de golfe que nunca abriu vai passar para o Orçamento do Estado
NUNO MARTINS / OBSERVADOR

Novas regras ditam o regresso ao Orçamento de 268 entidades, incluindo o clube de golfe das Amoreiras, em Lisboa. O impacto na dívida pública chega aos 5,6 mil milhões de euros.
Sabe o que têm em comum uma empresa de Explosivos da Trafaria, o Estádio Municipal de Aveiro, a Comboios de Portugal e o Clube de Golfe das Amoreiras (aquele que nunca chegou a abrir)? A partir de hoje entram no Orçamento do Estado juntamente com mais 264 empresas. O resultado, para já, é um aumento de 5,6 mil milhões de euros na dívida pública.

Durante muitos anos, muitas foram as empresas que foram saindo das contas do Orçamento do Estado. A alteração de modelos de negócio, a alteração das regras pelas entidades estatísticas, a vontade dos Governos de melhorar as contas já negativas do défice orçamental no final de cada ano, foi de tudo um pouco o que levou estas empresas à margem dos orçamentos, onde muitas continuam.

No entanto, os responsáveis decidiram mudar a forma como se contabiliza o Produto Interno Bruto (PIB) e com essa mudança vieram também mudanças nas regras para contabilizar o défice orçamental e a dívida pública, que deram mais poder ao INE para decidir que empresas e entidades devem estar dentro do orçamento.

Os défices de 2010, 2011 e 2012 foram revistos e o de 2013 só não muda devido a uma ajudinha com o aumento do PIB.

O resultado foi conhecido hoje, apesar de algumas decisões ainda estarem por tomar, e o impacto não é pequeno. O Banco de Portugal, que é a entidade estatística responsável pelo cálculo da dívida pública, diz que em 2013 a dívida pública aumenta 5,6 mil milhões de euros só devido às alterações.

Os défices de 2010, 2011 e 2012 foram revistos e o de 2013 só não muda devido a uma ajudinha com o aumento do PIB (também na sequência destas mudanças). Para este ano, as entidades estatísticas só farão as contas já em 2015, mas as próprias previsões do Governo foram revistas: o défice deve ser maior que o esperado em pelo menos 0,8% do PIB e a dívida pública 1% do PIB, comparando com a primeira notificação deste ano enviada a Bruxelas ao abrigo do Procedimento dos Défices Excessivos.

Nem todas as empresas ou entidades que passarão para o orçamento terão um impacto negativo nas contas, assim como uma parte dos prejuízos das entidades em anos passados já estava no défice, como é o caso dos hospitais EPE, chamados hospitais empresa, que agravavam o défice sempre que o Estado tinha de aumentar o seu capital, por exemplo.

Outras alterações até dão uma ajuda ao défice, como é o caso dos fundos de pensões privados que foram transferidos para a Segurança Social.

Outras alterações até dão uma ajuda ao défice, como é o caso dos fundos de pensões privados que foram transferidos para a Segurança Social, caso recente da transferência parcial de 15 fundos de pensões de vários bancos para a Segurança Social para ajudar a baixar o défice de 2011 e cumprir a meta acordada com a troika.

A receita que era transferida para cobrir o pagamento das pensões que estavam nesse fundo no momento da transferência já não poderá ser abatida ao défice, mas também deixam de contar todos os anos as centenas de milhões que o Estado tem pagar de pensões a esses beneficiários.

Normalmente, eram os maus resultados de uma entidade ao fim de alguns anos que levavam o INE, ou o Eurostat, a obrigar a sua inclusão no perímetro orçamental, mais de acordo com critérios quantitativos que determinavam se o negócio da empresa ainda era de natureza mercantil. As regras mudaram também aqui.

Das 268 empresas reclassificadas, 117 foram reclassificadas precisamente porque não cumprem a meta dos 50%.

O INE passa a ter maior poder de análise qualitativa aos institutos de estatística nessa determinação, e não apenas uma fórmula contabilística que determinava se a atividade da empresa era ou não mercantil. Isso deu o poder ao INE para integrar nas contas a holding que gere as participações do Estado, a Parpública, já que esta atua como agente das Administrações Públicas para fins de políticas públicas. As subsidiárias da Parpública já tiveram de ser sujeitas a uma análise caso a caso.

Mas a própria dimensão quantitativa da análise da classificação das entidades teve alterações. Agora, para o cálculo do chamado rácio de mercantilidade, o rácio dos 50% (empresas têm de ter vendas equivalentes a pelo menos 50% dos custos de produção) é incluído no denominador para além dos custos de produção, também os encargos com o pagamento de juros. Só esta alteração levou à reclassificação de uma das mais pesadas empresas para as contas públicas desta leva: a CP.

Ainda assim, no final foram mais as razões quantitativas que levaram mais entidades de volta para o orçamento. Das 268 empresas reclassificadas, 117 foram reclassificadas precisamente porque não cumprem a meta dos 50%, outras 92 entidades passaram devido aos novos poderes de análise qualitativa do INE (entre estes critérios estão que procura total ou quase total seja assegurada pelo Estado), 38 são instituições sem fins lucrativos controladas pelo Estado, 13 são holdings sem trabalhadores ou com poucos trabalhadores e que não as gerem, e as restantes oito são reguladores, que não do setor financeiro ou dos mercados.

Entre as entidades que passarão para o orçamento estão, por exemplo, a AICEP – Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, E.P.E., a Caixa Seguros e a Caixa Gestão de Ativos, Hospitais EPE e o Clube de Golfe das Amoreiras.

Entre as entidades que passarão para o orçamento estão, por exemplo, a AICEP – Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, E.P.E., a Caixa Seguros e a Caixa Gestão de Ativos, Hospitais EPE, o Clube de Golfe das Amoreiras, uma sociedade imobiliária dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, a Extra – Explosivos da Trafaria, a Estamo (empresa do Estado usada pelos Governos para meter dinheiro no orçamento do Estado vendendo edifícios do próprio Estado, aos quais arrendaria mais tarde), empresas de transporte como a TAP, a CP e a Metro do Mondego.


A estas junta-se ainda uma lista considerável de fundações, o Parque do Foz Côa, um clube de andebol, um clube de basquete e um resort de Golf da Região Autónoma da Madeira, o Teatro Aveirense ou a empresa municipal que gere os bairros municipais em Lisboa, a Gebalis.

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