OPINIÃO
O Arrogante, o Despeitado e o
estado da nação
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 13/09/2014 - 03:01
O melhor do debate foi o que é normalmente vilipendiado como “luta de
galos”.
No meio da
pasmaceira nacional, os debates associados com as eleições no PS para
“candidato a Primeiro-ministro” suscitam um natural interesse e têm sido
tratados com atenção, originando boas audiências. O próprio facto de as
televisões generalistas terem colocado esses debates em sinal aberto e não no
cabo, uma situação a que hoje só praticamente o futebol tem direito, revela a
percepção desse interesse. Infelizmente, os debates, não tendo sido nulos, e
valendo cada um cem transmissões parlamentares, revelam a enorme fragilidade da
nossa política “estabelecida”, quer na sua vertente político-partidária, quer
mediática, que é quase o mesmo.
Acresce que o que
podia potenciar o interesse dos debates é travado por uma mistura da hegemonia
do pensamento único do poder, que os jornalistas exprimem melhor de que
ninguém, como pelos insuportáveis rodriguinhos dos costumes políticos
oficiosos, que valorizam a empáfia e pompa do estado, como atestado de
governabilidade. O conselho aos políticos para assumirem “pose de estado” ou
para “fazerem de mortos” é a melhor garantia de que o seu discurso fica preso
no enorme conservadorismo dos nossos costumes políticos, herdado do ódio á
política e à diferença, de quarenta anos de censura e salazarismo.
O que melhor
corre neste tipo de debates confrontacionais é a revelação da personalidade, um
elemento fundamental da escolha política em democracia. É para isso que estes
debates com a colocação de adversários frente a frente numa arena, com base num
“estado de guerra” anterior, são propícios e naturalmente populares. Cultura e
sabedoria, nervos, conhecimentos de experiência e de vida, modo de ser e de
reagir sob pressão, empatia com o país e os portugueses, gostos e desgostos,
ódios e amores, e tudo aquilo que, mesmo não se querendo, revela a voz e o
gesto, com a ajuda da crueldade das câmaras. É também nestes debates que menos
conta o artificialismo dos “conselhos” de agências de comunicação e consultores
que tentam padronizar os candidatos a posturas estandardizadas de
comportamento. Depois admiram-se que Marinho Pinto tenha votos.
O melhor do
debate foi isso mesmo, o que é normalmente vilipendiado como “luta de galos”,
como ataques pessoais mesquinhos, como “ausência de ideias” (uma das mais
hipócritas acusações dos jornalistas que se pelam pelo incidental e que não têm
paciência para analisar um papel de cinco páginas). E o melhor do debate,
enquanto debate revelador, beneficiou Seguro, em detrimento de Costa. Costa
“perdeu” os debates não pelos seus defeitos, mas porque os defeitos de Seguro
são mais poderosos do que as virtuais qualidades de Costa, num debate deste
tipo.
Fazendo de conta
que há aqui cartas de um Tarot muito especial, Costa chegou como o Arrogante,
portador de uma auto-suficiência completa, convencido, messiânico, o vencedor à
partida, o que é sempre mau em termos de expectativas. Eu sei que Costa não é o
Arrogante, mas essa era a imagem que lhe era atribuída, mas que ele nunca podia
exercer. Porém, podia ter colocado Seguro na ordem com mais vigor, que era a
única resposta que podia impedir Seguro de “ganhar” o debate. Mas Costa deve
ter sido aconselhado a “não responder” e isso nesta arena é levar os murros
todos.
Por seu lado,
Seguro aparece como o underdog, a vítima de uma traição fraternal, o
trabalhador incansável dos últimos três anos, que “aguentou” o PS quando
“ninguém queria”, a esforçada formiga que percorreu o pais de lés a lés,
enquanto Costa estava à janela da Câmara de Lisboa. Seguro revela a postura do
Despeitado, raivoso, ressentido, fervendo de sentimento de injustiça. A força
de Seguro vem do despeito, e o despeito é uma poderosa força social, muito
maior do que o reconhecimento passivo das virtudes de Costa. O despeito é
empático, comunica, e Costa só podia combatê-lo se denunciasse, preto no
branco, a mediocridade de Seguro e a sua total impreparação para exercer o
poder. E, mesmo assim, não era certo que tivesse sucesso, porque o grau de
exigência para cargos públicos é já tão baixo, tendo em conta os que lá estão,
que é possível imaginar Seguro Primeiro-ministro.
Depois, Seguro
manipula a carta social dos de “baixo” contra os de “cima”. Os que nascem no
Portugal desprezado da província, que têm que “subir na vida” com todas as
dificuldades e sem as benesses de terem nascido na classe social certa, na
família certa, com os conhecimentos e o “meio” predestinado para o exercício do
poder. Ele usa o preconceito anti-intelectual, a província contra Lisboa, os
que são limpos de compromissos porque nunca foram recebidos à mesa dos
poderosos das finanças e da economia, os que frequentam naturalmente os salões
do poder. Este jogo de insinuações é também poderoso, dentro do PS, porque os
partidos políticos do poder ainda são uma das vias para a promoção social de
personagens como Seguro e há no PS e no PSD milhares de Seguros cuja
oportunidade de “subir na vida” passa pelos aparelhos partidários, e no país,
onde há mil e uma razões na família, no emprego, no café, na escola, para
muitos sentirem-se desprezados e injustiçados. Por tudo isto, no confronto
entre o Arrogante (que não o é) e o Despeitado (que o é à saciedade), ganha
sempre o último.
Depois caiu em
cima dos dois, a plenitude do discurso do poder, trazido pelos media, quer na
moderação, quer no debate opinativo a posteriori. É o que faz o poder que é
apresentado como modelo à oposição. Você não existe politicamente se não nos
disser como é que resolve a dívida e défice, e se não o disser ou não tem ideias
ou é um irresponsável. Diga lá como faria? O que faria sobre o quê? Sobre o
défice a dívida. Mas eu não quero começar por aí. Não pode.
Esta questão é
sempre apresentada aos opositores do governo, e nunca é suscitada aos apoiantes
do governo, que, pelos resultados, também não mostraram capacidade de resolver
nem o défice nem a dívida. Basta já esta diferença, para se perceber porque é
que esta formulação vem do lado do poder. O poder pode ser perguntado pelos
detalhes irritantes, mas não pelas políticas nem pelas prioridades, que são
aceites como “inevitáveis”.
A força deste
discurso não depende apenas do governo e dos seus amigos. Ele tornou-se mais do
que um discurso partidário, mais do que um discurso governamental, quando
passou a ser repetido acriticamente pelos media, pelos jornalistas nos
comentários, nas perguntas, na agenda dos debates, como se fosse um facto, uma
realidade e não uma construção política e ideológica. Foi nessa altura que se
tornou um discurso do poder.
Os problemas de
Portugal são sempre identificados nos termos deste discurso do poder, numa
lista de prioridades e numa grelha de análise que transporta a sua maneira de
ver o mundo, a sua política e a sua ideologia. Foi o que caiu em cima, e ainda
vai cair mais sobre quem queira mudar, mais sobre quem queira mudar do que quem
queira continuar tudo na mesma, apenas com diferenças de grau. E aí o ónus era
mais para Costa do que para Seguro. E Costa esboçou romper, mas não fez.
Este discurso do
poder é castrante para toda a actividade política. António Costa é propenso a
tentar ver as coisas de forma diferente (e quem discute com ele todas as
semanas sabe que é assim), e a sair desta prisão analítica. Costa esboçou a
diferença quando tentou recolocar a ordem dos problemas no discurso (o
crescimento é mais importante do que o défice e a dívida, até para controlar o
défice e pagar a dívida), mas que face à enorme pressão do discurso do poder
tem evitado falar com clareza sobre coisas como o Tratado Orçamental.
Subjuga-se assim ao discurso do poder que considera que em Portugal não se pode
ser Primeiro-ministro pondo em causa sem ambiguidades a bondade do Tratado
Orçamental, para a Europa, para Portugal (ainda mais) e para o socialismo e a
social-democracia (aí em absoluto). Aí está algo em que Costa poderia ser
claro.
Assim perde dos
dois lados, face a um Seguro, que de facto interiorizou o discurso
governamental, de que diverge pelo grau, e perde no país que só se mobiliza
pela clareza e pela diferença. Se Costa não perder o medo da sombra do
conservadorismo reinante, que encontra expressão na devastação ideológica dos
partidos socialistas e social-democratas em Portugal e na Europa, pode chegar a
Primeiro-ministro, mas nunca terá uma maioria absoluta.
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