Londres em choque com a
perspectiva cada vez mais real de perder a Escócia
ANA FONSECA
PEREIRA 08/09/2014 - PÚBLICO
Mercados financeiros reagiram com pânico a sondagem que admite vitória do
"sim" à independência. Partidos britânicos aceleram plano para
reforçar poderes de Edimburgo.
Os sinais
acumularam-se nas últimas semanas, mas a sondagem publicada pelo jornal Sunday
Times deixou Londres em estado de choque. “Dez dias para salvar a União”,
resumiu o The Telegraph, numa altura em que os três principais partidos
britânicos procuravam entender-se sobre o que oferecer para que os escoceses
recusem a independência e o mundo da finança reagia em pânico a um cenário que
se torna mais plausível a cada dia que passa.
Em público, os
rostos mantêm-se tensos, as palavras contidas. “Não há mudanças de planos. O
Governo está inteiramente concentrado em provar os argumentos para mantermos o
Reino Unido intacto”, reagiu um porta-voz do primeiro-ministro britânico, David
Cameron, insistindo que não está a ser preparado um plano de contingência para
o caso de o “sim” à independência vencer o referendo de dia 18.
Longe dos
microfones, admite-se que há um antes e um depois da sondagem do YouGov, a
primeira a admitir a vitória dos independentistas, mesmo que a vantagem do
“sim” (51% para 49%) esteja dentro da margem de erro, e que uma outra divulgada
no mesmo dia tenha mantido o “não” com ligeira vantagem. “Estou nervoso, mais
do que em pânico. E penso que falo por toda a gente”, disse ao jornal Guardian
um membro do Governo envolvido na campanha.
O primeiro a
reconhecê-lo foi George Osborne, ministro das Finanças e “número” dois do
Governo, que ainda no domingo foi à BBC prometer que, até ao final da semana,
conservadores, trabalhistas e liberais-democratas – partidos unidos na defesa
do “não” – vão entender-se sobre um plano para dar “mais poderes” ao Parlamento
de Edimburgo. O primeiro-ministro escocês, Alex Salmond, tinha a resposta
pronta: “Eu não tinha dúvidas que eles iriam arranjar alguma coisa depois de a tentativa
para assustar os escoceses ter falhado. O próximo passo é tentar subornar-nos”.
A sensação de que
o pânico e a confusão se instalaram em Londres cresceu quando o líder da
campanha pelo "não", Alistair Darling, explicou que o que será
anunciado é o calendário para o reforço da autonomia escocesa, uma vez que as
propostas (nem sempre coincidentes) dos três partidos para a transferência de
poderes já são conhecidas.
Gordon Brown,
ex-primeiro-ministro trabalhista e peso-pesado da política escocesa, foi
chamado a liderar esta última ofensiva para convencer os eleitores de que votar
contra a independência não é optar por manter tudo como está. Nesta
segunda-feira, assegurou que, logo no dia seguinte a uma vitória do “não”, será
posto em marcha o plano para dar a Edimburgo mais poderes sobre a política
fiscal e de apoios sociais, mas não é claro se a proposta tem o aval de todos
os partidos.
O Labour sabe que
sem os deputados que elege na Escócia terá grande dificuldade em regressar ao
poder, mas vê-se na incómoda posição de estar na campanha ao lado dos
conservadores, repudiados pelos escoceses desde Margaret Thatcher. Cameron
jogou a sua sobrevivência quando aceitou a organização do referendo, mas tem as
mãos atadas porque as suas políticas de austeridade são o principal combustível
para a campanha dos independentistas – o argumento de que só a independência
salvará o serviço nacional de saúde foi o que mais alimentou a subida do “sim”
nas últimas semanas, por muito que Westminster insista que Edimburgo tem total
poder de decisão sobre a forma como ele é gerido.
Riscos de uma cisão
Com o
“impensável” transformado em “provável”, a City entrou em pânico. A libra
perdeu 1,3% do seu valor face ao dólar, para o mínimo dos últimos dez meses, e
só as cinco empresas cotadas na bolsa londrina com maior peso na economia
escocesa perderam durante a manhã o equivalente a 3700 milhões de euros.
Perdas que são só
uma amostra do que tanto Londres como Edimburgo arriscam neste referendo. O
prémio Nobel da Economia, Paul Krugman, deu novas munições à campanha do “não”,
num artigo para o New York Times em que defendeu que os eleitores deviam “ter
muito medo” de votar a favor da independência e manter a libra, como defende
Salmond. “A combinação de independência política e uma moeda partilhada é a
receita para o desastre”, diz o economista, apontando o exemplo da crise do
euro.
Mas a sondagem do
YouGov mostra que os eleitores estão mais sensíveis do que nunca aos argumentos
económicos do "sim" - 51% do inquiridos acreditam que Londres faz
bluff quando diz que não partilhará a libra com os escoceses e são já 40% os
concordam que uma Escócia independentes será mais próspera.
A campanha pelo
“sim” tem evitado o triunfalismo – “não estamos a dar nada por garantido”,
disse a vice-primeira-ministra escocesa, Nicola Sturgeon – e o “não” acredita
que muitos eleitores recuarão face à
possibilidade real de uma cisão com Londres. Certo é que, como escreveu o
editorialista Martin Kettle no Guardian, “nada mais interessa agora na política
britânica” e os próximos dez dias “podem abalar o Estado britânico e o seu povo
até às suas fundações”.
O ricochete inglês (da Europa
para a Escócia)
Paulo Rangel /
9-9-2014 / PÚBLICO
De há muito que,
nestas linhas, se fala da questão escocesa e do referendo que entretanto terá
lugar. E obviamente, qualquer que seja o resultado, das suas repercussões sobre
a questão catalã, basca, flamenga e do Norte de Itália. E bem assim das
inúmeras dificuldades que uma eventual acessão da Escócia à independência trará
à União Europeia. De tudo isso se tem aqui falado, sempre na pressuposição de
que, ao invés do que muitos julgam ou julgavam, uma vitória do “sim” é
plausível. E sendo plausível, cabe à União e aos seus Estados-membros ter
preparada uma reacção e uma doutrina. Cabe, aliás, em especial ao Estado
português, que pode ser directamente afectado por mudanças ou convulsões na
geopolítica peninsular, ter uma estratégia séria sobre os vários cenários
possíveis e a respectiva evolução. A verdade é que, seja por cá, seja lá fora,
pouco atenção se tem dado ao assunto.
O caso mudou de
figura no fim-desemana que passou, porque apareceram sondagens que dão uma
vitória ao “sim” à independência ou que, pelo menos, apertaram, e muito, a
anterior diferença entre o “não” e o “sim”. Devo dizer que, embora nunca tenha
afastado e não afaste um prognóstico de vencimento do “sim”, estimo que o “não”
acabará por ganhar. Um pouco como aconteceu no último referendo sobre a
independência do Quebeque, o fôlego final do “sim” pode provocar um toque a
rebate dos adeptos no “não” e desembocar numa vitória pouco folgada do “não”. Trata-se,
como é óbvio, de uma simples intuição.
Interessa-me, no
entanto e de sobremaneira, esta agitação dos partidários do “não” que, de
repente, entraram em pânico e tomaram consciência de que a possibilidade de
secessão era uma realidade e não uma simples quimera. A comoção gerada pelas
sondagens foi tal que o ministro das Finanças de Cameron veio prometer uma
ampla devolução de poderes em matéria fiscal e orçamental no caso do “não”
ganhar”. E de um modo oficioso, rompendo a tradicional discrição e comedimento
— de resto, impostos pela Constituição —, a própria casa real britânica deixou
passar para os jornais um grande incómodo e desconforto com uma eventual
vitória do “sim”.
E interessa-me de
sobremaneira a reacção dos partidários do “não”, porque grande parte deles
andou, anos a fio, e anda — agora mais do que nunca — a investir na ideia de
que o Reino Unido devia deixar de fazer parte da União Europeia ou devia, no mínimo,
exigir uma amplíssima devolução de poderes de Bruxelas para Londres.
Concentremo-nos
então no que interessa. Aquilo que muitos políticos britânicos parecem não ter
percebido, ao longo destas décadas, é que os argumentos que usam para atacar a União
Europeia podem ser usados, com maioria de razão, para atacar o Reino Unido. Se
o Reino Unido acha que Bruxelas — que tem uma ínfima parte do poder e do
orçamento (em percentagem do PIB) de qualquer Estado — é centralista, o que
achará a Escócia de Londres e de Westminster? Ou haverá alguém que alvitre que
o Estado britânico é menos centralizado, menos centralista e menos consumidor
de recursos do que são as instituições europeias no seu conjunto? Os habitantes
de Glasgow ou de Edimburgo podem decerto queixar-se tanto ou mais de Downing
Street ou de Westminster do que os cidadãos de Londres ou de Liverpool se
queixam do Berlaymont ou da Praça Luxemburgo.
Em poucas
palavras, nestes dias amargos e de grande incerteza, os políticos do
“establishment”
britânico estão a provar do seu próprio veneno. É bem caso para se dizer que o
feitiço se virou contra o feiticeiro. Na velha Albion, o poder mediático e o
poder político tanto usaram e abusaram de argumentos populistas e fáceis que
agora correm o risco iminente de serem vítimas deles. Aquilo que muitos
responsáveis britânicos esqueceram — tal é o grau de centralismo que cultivaram
— é que o Reino Unido também era uma União. E esqueceram que o uso de
argumentos fáceis e redutores tem a configuração ambígua das facas de dois
gumes, que cortam para fora, mas também cortam para dentro.
Na querela
escocesa, Cameron e o Partido Conservador, mas seguramente uma parte importante
do establishment britânico (aí incluído o mediático), são vítimas da sua
própria retórica. Não se cura, aliás, de caso único, este do efeito de
ricochete ou
da arte de
boomerang do discurso europeu de líderes políticos nacionais. Também os
sequazes mais fundamentalistas de Angela Merkel, na Alemanha, começaram já a
sofrer refracções do seu discurso populista acerca da Europa. Quando muitos
políticos alemães deixam, de um modo demagógico e simplista, passar a ideia de
que a Alemanha não pode nem deve a pagar dívidas alheias, olvidam a dinâmica
interna da federação germânica. E hoje, é já comum ouvir gente — e gente com
responsabilidade — dizer que os Estados federados do Sul da Alemanha (a Baviera
e o Baden-Würtenberg), por sinal os mais ricos, não estão dispostos a continuar
a sustentar a dívida e até a falência de alguns dos Estados federados do Norte
ou do Leste. A prazo, um certo discurso europeu na Alemanha pode insuflar
tensões internas e forçar algum rearranjo orçamental da Federação. Há políticos
que parecem olvidar que, quando falam na frente europeia, também são escutados
pelo seu eleitorado nacional — eleitorado que não é uniforme nem constitui uma
amálgama e, por vezes, até integra comunidades com identidade e autonomia.
Mas afinal qual é
o espanto? Para argumento fácil, retalie-se com “fácil e meio”. Se alguém
defende vigorosamente, por horror ao centralismo e à ineficiência, que o Reino
Unido deve sair da União Europeia, porque é que não há-de admitirse que, por
igual horror ao centralismo e por amor ao dinheiro do petróleo, a Escócia
abandone o Reino Unido e volte ao trilho histórico da independência? Se alguém
julga estar submetido ao centralismo de Londres, porque razão há-de ter medo do
centralismo de Bruxelas (que é bem menor, está menos enraizado e afinal fica
mais longe)?
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