terça-feira, 9 de setembro de 2014

Londres em choque com a perspectiva cada vez mais real de perder a Escócia



Londres em choque com a perspectiva cada vez mais real de perder a Escócia
ANA FONSECA PEREIRA 08/09/2014 - PÚBLICO
Mercados financeiros reagiram com pânico a sondagem que admite vitória do "sim" à independência. Partidos britânicos aceleram plano para reforçar poderes de Edimburgo.

Os sinais acumularam-se nas últimas semanas, mas a sondagem publicada pelo jornal Sunday Times deixou Londres em estado de choque. “Dez dias para salvar a União”, resumiu o The Telegraph, numa altura em que os três principais partidos britânicos procuravam entender-se sobre o que oferecer para que os escoceses recusem a independência e o mundo da finança reagia em pânico a um cenário que se torna mais plausível a cada dia que passa.

Em público, os rostos mantêm-se tensos, as palavras contidas. “Não há mudanças de planos. O Governo está inteiramente concentrado em provar os argumentos para mantermos o Reino Unido intacto”, reagiu um porta-voz do primeiro-ministro britânico, David Cameron, insistindo que não está a ser preparado um plano de contingência para o caso de o “sim” à independência vencer o referendo de dia 18.

Longe dos microfones, admite-se que há um antes e um depois da sondagem do YouGov, a primeira a admitir a vitória dos independentistas, mesmo que a vantagem do “sim” (51% para 49%) esteja dentro da margem de erro, e que uma outra divulgada no mesmo dia tenha mantido o “não” com ligeira vantagem. “Estou nervoso, mais do que em pânico. E penso que falo por toda a gente”, disse ao jornal Guardian um membro do Governo envolvido na campanha.

O primeiro a reconhecê-lo foi George Osborne, ministro das Finanças e “número” dois do Governo, que ainda no domingo foi à BBC prometer que, até ao final da semana, conservadores, trabalhistas e liberais-democratas – partidos unidos na defesa do “não” – vão entender-se sobre um plano para dar “mais poderes” ao Parlamento de Edimburgo. O primeiro-ministro escocês, Alex Salmond, tinha a resposta pronta: “Eu não tinha dúvidas que eles iriam arranjar alguma coisa depois de a tentativa para assustar os escoceses ter falhado. O próximo passo é tentar subornar-nos”.

A sensação de que o pânico e a confusão se instalaram em Londres cresceu quando o líder da campanha pelo "não", Alistair Darling, explicou que o que será anunciado é o calendário para o reforço da autonomia escocesa, uma vez que as propostas (nem sempre coincidentes) dos três partidos para a transferência de poderes já são conhecidas.

Gordon Brown, ex-primeiro-ministro trabalhista e peso-pesado da política escocesa, foi chamado a liderar esta última ofensiva para convencer os eleitores de que votar contra a independência não é optar por manter tudo como está. Nesta segunda-feira, assegurou que, logo no dia seguinte a uma vitória do “não”, será posto em marcha o plano para dar a Edimburgo mais poderes sobre a política fiscal e de apoios sociais, mas não é claro se a proposta tem o aval de todos os partidos. 

O Labour sabe que sem os deputados que elege na Escócia terá grande dificuldade em regressar ao poder, mas vê-se na incómoda posição de estar na campanha ao lado dos conservadores, repudiados pelos escoceses desde Margaret Thatcher. Cameron jogou a sua sobrevivência quando aceitou a organização do referendo, mas tem as mãos atadas porque as suas políticas de austeridade são o principal combustível para a campanha dos independentistas – o argumento de que só a independência salvará o serviço nacional de saúde foi o que mais alimentou a subida do “sim” nas últimas semanas, por muito que Westminster insista que Edimburgo tem total poder de decisão sobre a forma como ele é gerido.

Riscos de uma cisão

Com o “impensável” transformado em “provável”, a City entrou em pânico. A libra perdeu 1,3% do seu valor face ao dólar, para o mínimo dos últimos dez meses, e só as cinco empresas cotadas na bolsa londrina com maior peso na economia escocesa perderam durante a manhã o equivalente a 3700 milhões de euros.

Perdas que são só uma amostra do que tanto Londres como Edimburgo arriscam neste referendo. O prémio Nobel da Economia, Paul Krugman, deu novas munições à campanha do “não”, num artigo para o New York Times em que defendeu que os eleitores deviam “ter muito medo” de votar a favor da independência e manter a libra, como defende Salmond. “A combinação de independência política e uma moeda partilhada é a receita para o desastre”, diz o economista, apontando o exemplo da crise do euro.

Mas a sondagem do YouGov mostra que os eleitores estão mais sensíveis do que nunca aos argumentos económicos do "sim" - 51% do inquiridos acreditam que Londres faz bluff quando diz que não partilhará a libra com os escoceses e são já 40% os concordam que uma Escócia independentes será mais próspera.


A campanha pelo “sim” tem evitado o triunfalismo – “não estamos a dar nada por garantido”, disse a vice-primeira-ministra escocesa, Nicola Sturgeon – e o “não” acredita que muitos eleitores recuarão face  à possibilidade real de uma cisão com Londres. Certo é que, como escreveu o editorialista Martin Kettle no Guardian, “nada mais interessa agora na política britânica” e os próximos dez dias “podem abalar o Estado britânico e o seu povo até às suas fundações”.


( ...) "Em poucas palavras, nestes dias amargos e de grande incerteza, os políticos do
“establishment” britânico estão a provar do seu próprio veneno. É bem caso para se dizer que o feitiço se virou contra o feiticeiro. Na velha Albion, o poder mediático e o poder político tanto usaram e abusaram de argumentos populistas e fáceis que agora correm o risco iminente de serem vítimas deles. Aquilo que muitos responsáveis britânicos esqueceram — tal é o grau de centralismo que cultivaram — é que o Reino Unido também era uma União. E esqueceram que o uso de argumentos fáceis e redutores tem a configuração ambígua das facas de dois gumes, que cortam para fora, mas também cortam para dentro."
Paulo Rangel 


O ricochete inglês (da Europa para a Escócia)
Paulo Rangel / 9-9-2014 / PÚBLICO

De há muito que, nestas linhas, se fala da questão escocesa e do referendo que entretanto terá lugar. E obviamente, qualquer que seja o resultado, das suas repercussões sobre a questão catalã, basca, flamenga e do Norte de Itália. E bem assim das inúmeras dificuldades que uma eventual acessão da Escócia à independência trará à União Europeia. De tudo isso se tem aqui falado, sempre na pressuposição de que, ao invés do que muitos julgam ou julgavam, uma vitória do “sim” é plausível. E sendo plausível, cabe à União e aos seus Estados-membros ter preparada uma reacção e uma doutrina. Cabe, aliás, em especial ao Estado português, que pode ser directamente afectado por mudanças ou convulsões na geopolítica peninsular, ter uma estratégia séria sobre os vários cenários possíveis e a respectiva evolução. A verdade é que, seja por cá, seja lá fora, pouco atenção se tem dado ao assunto.
O caso mudou de figura no fim-desemana que passou, porque apareceram sondagens que dão uma vitória ao “sim” à independência ou que, pelo menos, apertaram, e muito, a anterior diferença entre o “não” e o “sim”. Devo dizer que, embora nunca tenha afastado e não afaste um prognóstico de vencimento do “sim”, estimo que o “não” acabará por ganhar. Um pouco como aconteceu no último referendo sobre a independência do Quebeque, o fôlego final do “sim” pode provocar um toque a rebate dos adeptos no “não” e desembocar numa vitória pouco folgada do “não”. Trata-se, como é óbvio, de uma simples intuição.
Interessa-me, no entanto e de sobremaneira, esta agitação dos partidários do “não” que, de repente, entraram em pânico e tomaram consciência de que a possibilidade de secessão era uma realidade e não uma simples quimera. A comoção gerada pelas sondagens foi tal que o ministro das Finanças de Cameron veio prometer uma ampla devolução de poderes em matéria fiscal e orçamental no caso do “não” ganhar”. E de um modo oficioso, rompendo a tradicional discrição e comedimento — de resto, impostos pela Constituição —, a própria casa real britânica deixou passar para os jornais um grande incómodo e desconforto com uma eventual vitória do “sim”.
E interessa-me de sobremaneira a reacção dos partidários do “não”, porque grande parte deles andou, anos a fio, e anda — agora mais do que nunca — a investir na ideia de que o Reino Unido devia deixar de fazer parte da União Europeia ou devia, no mínimo, exigir uma amplíssima devolução de poderes de Bruxelas para Londres.
Concentremo-nos então no que interessa. Aquilo que muitos políticos britânicos parecem não ter percebido, ao longo destas décadas, é que os argumentos que usam para atacar a União Europeia podem ser usados, com maioria de razão, para atacar o Reino Unido. Se o Reino Unido acha que Bruxelas — que tem uma ínfima parte do poder e do orçamento (em percentagem do PIB) de qualquer Estado — é centralista, o que achará a Escócia de Londres e de Westminster? Ou haverá alguém que alvitre que o Estado britânico é menos centralizado, menos centralista e menos consumidor de recursos do que são as instituições europeias no seu conjunto? Os habitantes de Glasgow ou de Edimburgo podem decerto queixar-se tanto ou mais de Downing Street ou de Westminster do que os cidadãos de Londres ou de Liverpool se queixam do Berlaymont ou da Praça Luxemburgo.
Em poucas palavras, nestes dias amargos e de grande incerteza, os políticos do
“establishment” britânico estão a provar do seu próprio veneno. É bem caso para se dizer que o feitiço se virou contra o feiticeiro. Na velha Albion, o poder mediático e o poder político tanto usaram e abusaram de argumentos populistas e fáceis que agora correm o risco iminente de serem vítimas deles. Aquilo que muitos responsáveis britânicos esqueceram — tal é o grau de centralismo que cultivaram — é que o Reino Unido também era uma União. E esqueceram que o uso de argumentos fáceis e redutores tem a configuração ambígua das facas de dois gumes, que cortam para fora, mas também cortam para dentro.
Na querela escocesa, Cameron e o Partido Conservador, mas seguramente uma parte importante do establishment britânico (aí incluído o mediático), são vítimas da sua própria retórica. Não se cura, aliás, de caso único, este do efeito de ricochete ou
da arte de boomerang do discurso europeu de líderes políticos nacionais. Também os sequazes mais fundamentalistas de Angela Merkel, na Alemanha, começaram já a sofrer refracções do seu discurso populista acerca da Europa. Quando muitos políticos alemães deixam, de um modo demagógico e simplista, passar a ideia de que a Alemanha não pode nem deve a pagar dívidas alheias, olvidam a dinâmica interna da federação germânica. E hoje, é já comum ouvir gente — e gente com responsabilidade — dizer que os Estados federados do Sul da Alemanha (a Baviera e o Baden-Würtenberg), por sinal os mais ricos, não estão dispostos a continuar a sustentar a dívida e até a falência de alguns dos Estados federados do Norte ou do Leste. A prazo, um certo discurso europeu na Alemanha pode insuflar tensões internas e forçar algum rearranjo orçamental da Federação. Há políticos que parecem olvidar que, quando falam na frente europeia, também são escutados pelo seu eleitorado nacional — eleitorado que não é uniforme nem constitui uma amálgama e, por vezes, até integra comunidades com identidade e autonomia.

Mas afinal qual é o espanto? Para argumento fácil, retalie-se com “fácil e meio”. Se alguém defende vigorosamente, por horror ao centralismo e à ineficiência, que o Reino Unido deve sair da União Europeia, porque é que não há-de admitirse que, por igual horror ao centralismo e por amor ao dinheiro do petróleo, a Escócia abandone o Reino Unido e volte ao trilho histórico da independência? Se alguém julga estar submetido ao centralismo de Londres, porque razão há-de ter medo do centralismo de Bruxelas (que é bem menor, está menos enraizado e afinal fica mais longe)?

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