Escutas a Vara e Sócrates
destruídas com x-acto, tesoura e trituradora
Decisão do Supremo Tribunal de Justiça cumprida cinco anos depois.
Advogados dos arguidos no caso consideram que a destruição não foi legítima e
vão usar essa tese que poderá anular o julgamento
Pedro Sales Dias
/ 9-9-2014 / PÚBLICO
As gravações de
conversas telefónicas e mensagens de telemóvel entre o ex-primeiro-ministro,
José Sócrates, e Armando Vara, interceptadas no âmbito do processo Face Oculta,
foram destruídas ontem no Tribunal de Aveiro.
A destruição
começou pelas 14h, depois do almoço, no gabinete de Raul Cordeiro, o
juiz-presidente do colectivo que sexta-feira condenou os 36 arguidos no caso. O
magistrado recorreu a um “x-acto, a uma tesoura e a uma máquina trituradora”,
explicou ao PÚBLICO o juiz presidente da Comarca de Aveiro, Paulo Brandão.
A eliminação das
gravações demorou, porém, mais do que se esperava e só acabou pelas 18h20. De
acordo com Paulo Brandão, os ficheiros das intercepções a eliminar estavam
gravados em suportes onde estavam também incluídas escutas a outros arguidos
que era necessário seleccionar e guardar.
As cinco
conversas e 26 mensagens estavam gravadas em quatro DVD e quatro CD. Haviam
sido guardados até ontem no cofre do Tribunal de Aveiro. Foram as únicas gravações
que tinham escapado a uma ordem de destruição e continuavam a existir apesar de
formalmente não poderem ser usadas.
Em 2010, o então
presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Noronha Nascimento, ordenou
que fossem eliminadas considerando que o seu conteúdo era pessoal e em nada
importava ao processo nem indiciava qualquer crime. Igual posição teve o então
procurador-geral da República Pinto Monteiro.
A destruição das
últimas escutas em que surge Sócrates não acaba, porém, com a polémica e poderá
ditar a anulação do julgamento. Será com este argumento que alguns advogados no
processo Face Oculta irão invocar nulidades nos recursos para o Tribunal da
Relação do Porto.
Noronha
Nascimento, apesar de ser à altura o mais alto magistrado judicial, agiu como
juiz de instrução. O Código de Processo Penal exige que as escutas a um
primeiro-ministro sejam autorizadas pelo STJ. Porém, o alvo era Vara e não
Sócrates. Os investigadores não podiam ter pedido autorização para escutar um
interveniente que não sabiam que iria surgir nas conversas.
Para Ricardo Sá
Fernandes, advogado de Paulo Penedos condenado a quatro anos de prisão por
tráfico de influências, as escutas eliminadas seriam importantes para a defesa
“e todo o processo está inquinado” com a sua destruição.
“O erro é
irreparável. Noronha Nascimento tomou uma decisão num processo que não lhe
estava confiado e eliminou provas. Não tinha legitimidade. Se há prova assente
em escutas então todas as escutas devem estar no processo”, diz Sá Fernandes. Para
o advogado, o julgamento “pode ser anulado” e repetido sem o recurso a
quaisquer escutas como meio de prova. O que fragilizaria um processo em que as
escutas são a prova mais sólida.
O advogado de
Armando Vara, condenado a cinco anos de prisão efectiva por tráfico de
influência, concorda. “Do ponto de vista técnico é claro que pode anular todo o
julgamento”, disse Tiago Rodrigues Bastos. A questão marcou grande parte da
leitura do acórdão. Raul Cordeiro recusou o pedido para não destruir as
escutas, recordando os limites do Estado de Direito na recolha de provas.
O juiz disse
mesmo que Vara poderia lembrar-se do que conversou e ter chamado Sócrates a
depor não sendo necessárias as escutas. Disse também então o magistrado que o
tribunal e todas as partes teriam de agir como se as escutas não existissem.
Contudo, os
juízes ouviram as escutas. “O tribunal colectivo procedeu à sua audição” e as
intercepções “nada têm a ver com a matéria dos autos, sendo absolutamente
estranhas ao objecto do processo”, referem no acórdão. Situação que está a
provocar polémica entre os advogados e será também usada nos recursos.
Os causídicos
colocam também em causa a própria ordem de Raul Cordeiro. Foi executada três
dias depois de ter sido ordenada num acórdão que só transita em julgado 30 dias
depois de ser proferido. Em teoria, alguns advogados consideram que a decisão
pode ser alvo de recurso, uma vez que está incluída no acórdão. Mas na prática,
mesmo que algum tribunal superior lhes venha a dar razão, a ordem é
irreversível. As escutas já não existem.
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