Armando Vara e a sua circunstância
JOÃO MIGUEL
TAVARES 09/09/2014 - 02:58
Vara merece a nossa vénia: não há melhor descrição para o que lhe aconteceu.
Não consta que
Armando Vara tenha tido oportunidade de estudar Filosofia em Paris, mas os bons
exemplos que temos ao nosso lado são sempre inspiradores.
E por isso, na
sexta-feira, à saída do tribunal onde foi condenado a cinco anos de prisão
efectiva pelos juízes do processo Face Oculta, Vara citou com admirável
acuidade o filósofo espanhol Ortega y Gasset. Após se ter confessado em
“choque”, comentou desta forma a sua pesada sentença: “Acho que tem muito a ver
com a minha circunstância.”
Bravo. Embora
afectado pelo choque, Armando Vara teve ainda assim a perspicácia de se afirmar
como um perspectivista e um leitor atento de Ortega y Gasset e da sua primeira
obra, Meditaciones del Quijote. Foi aí que o espanhol cunhou aquela que se tornou
uma das suas frases mais conhecidas: “Eu sou eu e a minha circunstância e se
não a salvo a ela não me salvo eu.” De facto, se a percepção das coisas e o que
delas penso está dependente do lugar em que me encontro e de uma perspectiva
que é sempre alterável, então, mesmo que eu continue a ser eu, as modificações
da minha circunstância podem afectar profundamente a minha vida. É uma pena
este homem perder tanto tempo com robalos – poucas vezes encontrei tamanha
sapiência, lucidez e intuição filosófica na boca de um condenado.
Vara merece a
nossa vénia: não há melhor descrição para o que lhe aconteceu. Repare-se que
Armando Vara nunca deixou de ser Armando Vara nem de se comportar como Armando
Vara, mesmo quando já não precisava de ser Armando Vara. Embora ganhasse muitos
milhares, continuava a facilitar negócios por poucas dezenas. Porquê? Porque
era essa a sua natureza. Foi o que fez durante toda a vida. E durante muito
tempo a sua circunstância estimulou-o a isso, num longo processo de
enriquecimento do eu. Só que um dia, para sua surpresa, as regras mudaram. O
ambiente transformou-se. As circunstâncias alteraram-se antes do eu se pôr a
salvo. E Vara apanhou cinco anos de cadeia.
A maior
dificuldade filosófica com que ele agora se debate é como trabalhar os
ensinamentos de Nietzsche e Ortega y Gasset deixando Sócrates de fora. Não me
refiro ao grego, claro, mas ao português, que no seu espaço na RTP fez questão
de deixar “uma palavra pública de amizade” ao “engenheiro José Penedos e ao
doutor Armando Vara”, que estão “a viver um momento muito difícil”, esperando
“naturalmente” que os recursos “possam provar a sua inocência”, da qual ele
está certo porque conhece “ambos”. Comovente. Sócrates, não há dúvida, também
continua a ser Sócrates, e por isso o padrão mantém-se: ser solidário e piedoso
com os amigos que vão caindo em desgraça (já acontecera com Ricardo Salgado),
ao mesmo tempo que garante nada ter a ver com os casos em questão.
E não tem, de
facto: as famosas escutas que foram mandadas destruir pelos saudosos Pinto
Monteiro e Noronha Nascimento não visavam qualquer conversa sobre robalos e
sucata. Visavam apenas um alegado atentado contra o Estado de direito e uma
tentativa de controlo da comunicação social. Coisa pouca. E o problema é este:
sendo Vara e Sócrates quem são e tendo eles um percurso comum de décadas, tanto
nos negócios como na política, é muito difícil acreditar que a intimidade das
suas circunstâncias seja apenas circunstancial. Espero que José Sócrates tenha
estudado suficiente Ortega y Gasset em França. Na minha perspectiva, os
“pistoleiros do costume” são cada vez mais e as circunstâncias ajudam-no cada
vez menos.
Sem comentários:
Enviar um comentário