Brasões coloniais: preservar
propaganda ou suprimir um testemunho histórico?
VANESSA RATO
07/09/2014 -
PÚBLICO
Sabemos olhar para um jardim como património? Conquistámos já distância
para lidar com o passado colonial português? Paisagistas, artistas e sociólogos
discutem a polémica em torno do anúncio de supressão dos brasões coloniais do
Jardim do Império, em Lisboa.
Em Portugal,
ainda não olhamos para a matéria mutável e perecível de um jardim ou de uma
paisagem da mesma forma que olhamos para a matéria semipermanente da pedra, do
ferro e do cimento. Apesar dos estudos, tratados, convenções e leis, no fundo
não reconhecemos aos jardins e paisagens o mesmo valor patrimonial que a um
monumento ou escultura.
“Em Portugal, a
paisagem é olhada de forma romântica, como um fundo que está lá atrás e não
como o espaço em que vivemos. Os jardins, em geral, são considerados espaços
expectantes e vazios, quando, na verdade, são densos de significado”, diz a
paisagista Aurora Carapinha.
Segundo os
especialistas na área, esta é a raiz do problema em torno da polémica intenção
de supressão dos brasões coloniais do Jardim da Praça do Império, na zona de
Belém, em Lisboa, confirmada há uma semana pelo vereador do Ambiente Urbano,
Espaços Verdes e Espaço Público, José Sá Fernandes.
Originalmente
talhados em flores e buxo, os oito brasões identificam simbolicamente as
antigas colónias portuguesas designadas pelo Estado Novo como “províncias
ultramarinas”. Fazem parte de uma sequência de 32 brasões que identificam ainda
as capitais dos distritos administrativos continentais e ordens como a de
Cristo e Avis.
Hoje, o conjunto
está em más condições de conservação, com o recorte e o cromatismo originais a
tornarem-se indistintos. Sá Fernandes propôs-se recuperar parte dos brasões –
todos menos os ligados ao passado colonial português. Fez saber considerá-los
“ultrapassados”, presenças que “não faz sentido manter”.
Em certos
sectores, o argumento poderá até ser aceite como válido. É aceite por
historiadores como Fernando Rosas, para quem “não faz nenhum sentido preservar
[os oito brasões coloniais], a não ser por propósitos ideológicos passadistas”.
No entanto, para paisagistas e outros agentes da Cultura, há outras dimensões a
ter em conta.
“Um jardim é
quase como uma língua”, contrapõe Aurora Carapinha. “O desenho daqueles [oito]
brasões não vale por si. São elementos de composição de um conjunto. Imagine
que tem um tapete persa ou de Arraiolos e não gosta de vermelho. Tira esses
pontos? E depois? O que acontece à composição de conjunto?”
Sobre um plano
inclinado, os 32 brasões compõem uma faixa ornamental semicontínua. Uma moldura
a enquadrar o plano rebaixado do qual se ergue a Fonte Monumental, que serve de
centro ao jardim com os seus cerca de três hectares e plano geral de um dos
pioneiros do modernismo nacional: Cottinelli Telmo, o arquitecto-chefe da
Exposição do Mundo Português, de 1940, comemorativa dos 800 anos da
Independência de Portugal e dos 300 da Restauração.
A intervenção
ornamental em mosaico-cultura não fazia parte do plano original. Foi
acrescentada apenas nos anos 1960. Mas teve um autor, guarda a memória de um
contexto histórico e perfila-se claramente como expressão plástica de um tempo
e da sua mundivisão. São motivos para a manutenção e não a supressão, defende
João Gomes da Silva, sublinhando que a natureza – perecível ou não – de uma
obra não pode servir de argumento para a relevância da mesma: “Plantas,
pavimentos, luzes de fontes – são partes de uma obra. Anular uma parte faz o
conjunto perder significado e sentido.”
Mais, diz este
especialista: “[O mosaico de brasões] corresponde a uma obra de época que
procura explicitar uma determinada ideologia, tem um sentido político evidente
e, por isso, permite-nos ler determinado período da história. São símbolos que
representam a unidade ideológica de Portugal como conjunto de espaços
continentais e ultramarinos. É o conjunto que afirma a ideia de Portugal como
foi visto pelo fascismo.”
O conjunto dos
brasões e da totalidade do Jardim do Império, mas não só: o complexo do jardim
em leitura conjunta com toda a sua envolvente.
Nos anos 1940, o
Jardim da Praça do Império veio inscrever-se na prevista zona nobre de Belém,
uma zona monumental entre dois símbolos maiores de afirmação da identidade
nacional: o Mosteiro dos Jerónimos, a norte, e o Padrão dos Descobrimentos, a
sul. Nas últimas décadas, o Centro Cultural de Belém, a ocidente, e o novo
Museu dos Coches, a oriente, vieram juntar-se a esse articulado.
“Tudo isto tem um
significado”, sublinha João Gomes da Silva, “podemos gostar ou não, mas tem um
significado.”
Entre outros
aspectos, o paisagista chama a atenção para o facto de a faixa ornamental em
mosaico-cultura se articular com as duas esferas armilares metálicas e o
pavimento trabalhado em torno do Padrão dos Descobrimentos, com uma
rosa-dos-ventos que, tal como os brasões, surgiu em 1960 para as comemorações
do quinto centenário henriquino.
É uma provocação:
“Também se demolia, então, o Padrão dos Descobrimentos. Toda a plataforma de
pedra faz uma representação do Mundo Português, que é a de um certo momento... Historicamente,
temos de pôr o Padrão dos Descobrimentos num mesmo plano que o conjunto dos
brasões.”
A própria Praça
do Império – como tantos outros pontos do país, entre cidades, vilas, bairros e
ruas – tem inscrita na sua toponímia a mundivisão do Estado Novo. “Era a visão
do regime e de uma determinada ordem política que durou décadas. Acabou.
Deveríamos ter distância para lidar com essa história. Não é uma questão de
adesão ideológica ou saudosismo”, conclui João Gomes da Silva.
Ministro do
Ultramar durante o Estado Novo, o jurista, estadista e sociólogo Adriano
Moreira é tão taxativo em relação à supressão dos brasões como em relação à
recente transformação em condomínio de luxo da antiga sede da PIDE/DGS na Rua
António Maria Cardoso, em pleno coração do Chiado: “A história dos países não
se recebe a benefício de inventário e, por isso, não se nega aquilo que faz
parte da nossa história. Eu não escolhi nascer em Portugal, não escolhi a
história anterior do meu país, mas não quero que a apaguem. Daqui a 50 anos
vamos apagar a placa com os nomes dos mortos da guerra do Ultramar? Não podemos
pensar numa coisa dessas...”
Na verdade, por
todo o mundo, em momentos de crise e profunda transformação sociopolítica,
símbolos do passado vão sendo apagados por sucessivos grupos sociais
dominantes. Ao longo de toda a história, símbolos impostos como positivos num
momento passaram, no seguinte, a ser lidos como sombras a rasurar. Por outro
lado, a história das cidades é também ela de constante mutação. E quase sempre
que se intervém anula-se – quer uma presença quer um vazio. O problema é
distinguir entre o que vale como inscrição e o que não vale, entre aquilo que
da história queremos manter ou descartar. Motivo pelo qual, em relação aos
brasões coloniais, se aponta a Sá Fernandes a ausência de um debate prévio, de
uma decisão informada e de um projecto culto e consistente – ao invés de uma
decisão “casuística”.
“O assunto dito
dos ‘brasões’ parece emergir como uma intervenção pontual e casuística à qual
se associa uma causa ideológica. No entanto, esta não será a estratégia
programática adequada a uma intervenção num jardim histórico sujeito aos
efeitos do tempo e do uso há mais de 70 anos”, diz Teresa Andresen, antiga
directora do Parque de Serralves. Apontando o caso do Jardim da Cordoaria, no
Porto, “apagado de forma quase irreversível, esta especialista diz que “seria
desejável discutir previamente a estratégia da Câmara Municipal de Lisboa para
a conservação e recuperação do seu património paisagístico e, em particular,
dos seus jardins históricos”: “Esta seria uma grande oportunidade para um
debate sério, relevante, abrangente e integrador das dimensões técnicas e
políticas que esta temática reclama.”
Aurora Carapinha
e João Gomes da Silva dizem o mesmo. Na verdade, vão mais longe, afirmando
poder até vir a concluir-se que os brasões não são para manter, mas defendendo
que essa decisão tem de advir de uma discussão, resultando de um conceito e
projecto mais vasto e completo de intervenção no jardim. “Estamos a falar de
uma escultura viva. É património vivo”, sublinha Aurora Carapinha.
Ambos os
especialistas concordam que, formalmente, a faixa de brasões não é sequer uma
intervenção especialmente interessante. Diz Aurora Carapinha: “Em Portugal não
podíamos ter os jardins franceses ou ingleses. São franceses e ingleses. Os
nossos correspondem à forma como a cultura portuguesa entendeu as dinâmicas dos
sistemas naturais e à relação que enquanto comunidade estabelecemos com eles. Os
nossos jardins são sempre mais simples, menos plásticos, mais rudes e rugosos,
marcados pela beleza dos próprios sistemas.” Por isso mesmo, diz a paisagista,
“não há nada mais estranho aos jardins portugueses do que os brasões podados”,
como os que se viam e ainda vêem em cada capital de distrito, junto às câmaras
municipais. “Representam uma importação de modelo.” Mas, também por isso, “têm
e contam uma história”.
Os brasões
coloniais correspondem, diz a especialista, “a uma linguagem educativa e
celebratória”. Do ponto de vista
artístico serão pouco interessantes, mas do ponto de vista social e histórico,
carregam uma memória importante, conclui João Gomes da Silva.
“O grande drama é
que os gestos não são acompanhados de reflexões críticas”, diz também o artista
plástico Vasco Araújo, que tem dedicado grande parte da sua investigação e
prática artística às questões do colonialismo e pós-colonialismo. “Deixar de
ter, abolir, é um apagamento da história. Se desapareceu, porque desapareceu? Porque
é que 40 anos depois do 25 de Abril Portugal quer deixar de ter passado?”,
pergunta. “Podemos decidir que este discurso [materializado nos brasões] não
nos interessa. Nem sequer acho que este apagamento seja forçosamente mau, mas
tem de ser feito de forma crítica. As ervas estão a crescer? Não há dinheiro
para manter? Esse discurso é que não é válido.”
Estas declarações
foram feitas ao PÚBLICO nos últimos dias da semana. Entretanto, ontem, “no
seguimento da polémica” em torno da supressão dos brasões, a Lusa publicou uma
notícia em que se faz saber que, “até ao final do ano”, a Câmara Municipal de
Lisboa lançará um concurso de ideias para a renovação do Jardim do Império.
Nuno Domingos,
sociólogo, co-organizador de Cidade e Império. Dinâmicas Coloniais e
Reconfigurações Pós-Coloniais (Edições 70), concorda com a urgência do debate. “Os
símbolos históricos, numa sociedade viva, devem ser discutidos. O que é o
património? O que é a memória? [Em Portugal] somos de uma timidez incrível – só
agora começamos a levantar temas que outros países há muito tempo têm
resolvidos”, diz. Ressalva também, no entanto, considerar “assustadora” alguma
da defesa da manutenção dos brasões.
Em Belém, para
além de uma presença formal cuja apreciação estética é “legítima”, existe “um
espaço de propaganda anacrónica”, defende. Na sua opinião, seria necessário
criar na mesma zona uma camada de contra-narrativas, de leituras críticas que
ofereçam informação mais completa e complexa sobre as realidades e implicações
do passado expansionista e imperial português.
É esta a opinião,
também, da antropóloga Elsa Peralta. Para Cidade e Império..., que organizou
com Nuno Domingos, a investigadora fez um estudo alargado de toda a zona
ocidental lisboeta. Correspondendo a “uma visão construída ao longo do tempo e
conforme diferentes grupos sociais reclamaram espaço e voz”, toda a zona de
Belém é “um espaço muito complexo e que suscita um vasto conjunto de afectos
colectivos”, diz a antropóloga. É também “um espaço pouco profícuo do ponto de
vista da crítica pós-colonial em relação ao passado imperial português”,
defende.
Na opinião da
investigadora, em vez de um Museu dos Descobrimentos, seria importante ter,
antes, em Belém, um Museu da Escravatura. “Falta um espaço de
auto-reflexividade relativamente não só aos benefícios como também às
responsabilidades históricas que temos. Falta esse espaço em Belém,
eventualmente coexistindo com todos estes ornamentos que fazem parte da
história patrimonial. As sociedades evoluídas têm capacidade de fazer a sua
auto-análise. É o que reivindicaria para Belém.”
Sá Fernandes propõe concurso de
ideias para renovação do Jardim do Império
MARISA SOARES e
COM LUSA 06/09/2014 - 15:41
Proposta de concurso vem baralhar as contas para a reunião do executivo, na
quarta-feira, na qual se esperava um debate aceso entre Sá Fernandes e o
vereador do CDS, que defende a preservação dos brasões coloniais do jardim
O vereador da
Estrutura Verde na Câmara de Lisboa, José Sá Fernandes, vai apresentar
quarta-feira, na reunião do executivo, uma proposta que prevê o lançamento de
um concurso de ideias para a renovação do Jardim do Império, em Belém.
No documento
assinado por Sá Fernandes, ao qual a agência Lusa teve acesso, lê-se que a
proposta visa o lançamento “até ao final do ano de um concurso de ideias para a
renovação deste espaço verde”, assim como a constituição de um “júri composto
por personalidades de elevado reconhecimento e representativo de diferentes
sensibilidades da sociedade portuguesa”, externo à câmara.
A proposta surge
no seguimento da polémica criada em volta da recuperação do jardim da Praça do
Império, instalado há 75 anos em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, agregando
várias composições florais, como brasões dos distritos portugueses, a cruz de
Cristo, o escudo português e canteiros com símbolos das ex-colónias.
Há cerca de duas
semanas, Sá Fernandes admitiu, em comunicado e através do seu assessor de
imprensa, que não tenciona recuperar o desenho original dos oito brasões das
antigas colónias portuguesas, que, afirma, “há muito não existem, nem sequer
como arranjos florais no local”. Já os restantes 24 – das cidades de Portugal
Continental, da Cruz de Cristo e da Cruz de Avis – seriam recuperados. Segundo
o vereador, “há cerca de 20 anos que estes elementos não eram intervencionados”
e para manter cada um deles, afirmou, são necessários 24 mil euros por ano.
O vereador do
CDS-P na autarquia, João Gonçalves Pereira, iria contestar o projecto de Sá
Fernandes na reunião desta quarta-feira, contrapondo-lhe uma proposta que
defende a “recuperação e preservação da totalidade dos brasões”. “Esta
heráldica histórica ajardinada tem de ser entendida como um activo turístico de
grande importância no contexto em que se insere”, refere a proposta centrista,
numa alusão ao facto de o jardim se encontrar na zona de protecção do Mosteiro
dos Jerónimos, inscrito na lista de Património Mundial da UNESCO.
A ideia inicial
do vereador da Estrutura Verde apanhou todos de surpresa, incluindo o
presidente da câmara, António Costa, e mereceu críticas não apenas do CDS, mas
também do PSD e da CDU, que consideram estar em causa uma questão
“economicista”.
"Não é a
dimensão histórica que tem de ser discutida neste momento, mas sim o facto de a
câmara de Lisboa não ter pessoal para fazer a manutenção do jardim", diz
Carlos Moura, da CDU. Segundo este vereador, a autarquia tem "praticamente
duas dezenas de jardineiros" para tratar de todos os espaços verdes que
ficaram sob a sua alçada, além dos que contrata em regime de outsourcing.
"É manifestamente insuficiente", afirma, defendendo também a
reactivação da escola municipal de jardineiros.
Por sua vez, o
presidente da concelhia do PSD, Mauro Xavier, disse que o partido estaria
disponível para suportar o encargo com a contratação de uma empresa privada
para tratar do Jardim do Império, cuja manutenção insuficiente é visível não só
nos brasões, mas também noutras áreas do jardim.
Uma discussão que
prometia aquecer a reunião agendada para quarta-feira, mas que fica agora
condicionada pela anunciada intenção de Sá Fernandes de lançar um concurso de
ideias.
Segundo a Lusa,
Sá Fernandes escreve ainda na sua proposta que a Câmara pretende “proceder à
renovação do jardim da Praça do Império, fazendo deste processo um marco do
ciclo histórico que se estende da conquista de Ceuta à descolonização, cujas
comemorações terão lugar em 2015” .
E a autarquia,
diz ainda o vereador, quer também “assegurar que a renovação paisagística deste
espaço constituirá uma oportunidade de valorização e projecção da identidade
nacional e do papel de Portugal no mundo, evocando a epopeia dos Descobrimentos
e a primeira globalização económica e cultural que proporcionou; a história
partilhada com povos, lugares e países de todo o mundo; o legado histórico,
científico, cultural e linguístico do português no mundo; e os valores da
liberdade, do humanismo e cosmopolitismo que marcam o Portugal democrático e
contemporâneo que nos orgulhamos de ser”.
A intenção do
município é “mandatar a Direção Municipal de Ambiente Urbano e a Direção
Municipal de Cultura para, em articulação com a Direção-Geral do Património
Cultural [DGPC], proceder à execução dos termos de referência do referido
concurso”.
Seja qual for o
desenlace deste debate, qualquer alteração significativa ao jardim tem de ser
aprovada pela Direcção-Geral do Património Cultural, cujo parecer é vinculativo.
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