quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Centenas de mortos em novo "massacre de inocentes" nas águas de Lampedusa


Centenas de mortos em novo "massacre de inocentes" nas águas de Lampedusa


Líderes mundiais pedem medidas urgentes para combater contrabando marítimo de imigrantes clandestinos. Na pequena ilha, o desespero: "Já não precisamos mais de ambulâncias, só de caixões"
"É uma tragédia imensa, um horror sem fim", lamentou ontem a responsável do município de Lampedusa, Giusi Nicolini, após mais um naufrágio de uma embarcação carregada com imigrantes africanos, ao largo da pequena ilha quase no limite das águas italianas. O fenómeno tornou-se frequente, mas o desastre de ontem deixou a autarca sem fala: assoberbada com o movimento incessante das operações de resgate, e as lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto, só conseguiu descrever o óbvio. "O mar está cheio de corpos, parece um cemitério."
Um incêndio a bordo terá sido a causa imediata do afundamento do navio, com 20 metros de comprimento, e que zarpara dois dias antes do porto de Misrata, na Líbia, com cerca de 500 pessoas a bordo. Entre os 130 mortos recolhidos ontem estão duas mulheres grávidas e várias crianças. Por encontrar estavam ainda 250 desaparecidos - quase todos de origem eritreia e somali, tal como os 159 indivíduos resgatados das águas, em choque, desidratados e exibindo sintomas de hipotermia mas sem correr risco de vida.
Foi imediatamente aberto um inquérito e um indivíduo de nacionalidade tunisina, que era um dos membros da tripulação, foi detido.
Aparentemente, o fogo foi ateado a bordo depois de uma avaria que parou o motor, para chamar a atenção da frota de pesca ou da marinha mercante que navega pelas mesmas águas do mar Mediterrâneo. Sem telemóveis ou ligações de rádio ou satélite, terá sido decidido incendiar um lençol como sinal de alarme. Do que foi possível apurar, a partir dos depoimentos dos sobreviventes, a multidão a bordo assustou-se com as chamas e concentrou-se num dos lados do barco, que virou.
Os gritos dos náufragos chegaram aos ouvidos de marinheiros de barcos de recreio, que deram o alerta de acidente para terra (por volta das 7h20, hora local), e se dirigiram para o lugar do naufrágio. A missão de salvamento foi uma verdadeira corrida contra o tempo. "Centenas de pessoas esperaram durante horas na água para serem salvas. A maior parte não sabia nadar. Só os mais fortes sobreviveram", relatava a correspondente da Al-Jazira.
Segundo a porta-voz da Guarda Costeira, Floriana Segreto, a operação envolveu dois helicópteros e quatro navios da marinha e da polícia. Entrevistado horas depois do início da missão, o chefe dos serviços de saúde pública de Lampedusa, Pietro Bartolo, deixava no ar uma nota sombria e resignada: "Acho que já não precisamos mais de ambulâncias, só de caixões", disse à Radio 24. "Em muitos anos de trabalho aqui, nunca vi nada igual: esta é uma tragédia sem precedentes", lamentou.
O naufrágio aconteceu a menos de uma milha da costa. Na véspera, 13 homens morreram afogados na tentativa de chegar a terra. O corredor marítimo entre a Tunísia e o porto de Lampedusa é um dos mais utilizados pelas rotas do contrabando de trabalhadores clandestinos que operam no Mediterrâneo - horas antes do naufrágio, tinham atracado dois barcos na ilha, "descarregando" mais de mil imigrantes (da Síria e da Eritreia) no centro de recepção de imigrantes, com capacidade máxima para 250 pessoas.
As autoridades italianas e europeias, as Nações Unidas e várias organizações internacionais de defesa dos direitos humanos denunciaram ontem o "drama político e humanitário" que consiste no contrabando de imigrantes e exigiram medidas urgentes para pôr fim "a esta sucessão de massacres de inocentes", nas palavras do Presidente de Itália, Giorgio Napolitano.
No Vaticano, o Papa Francisco, que foi a Lampedusa na sua primeira deslocação enquanto Pontífice, manifestou tristeza e choque com a notícia. "É uma vergonha, essa é a única palavra que me vem à cabeça", confessou. "Ao falar da crise, desta desumana crise económica mundial, que é um sintoma da grande falta de respeito pelo homem, não posso deixar de recordar com grande dor as numerosas vítimas do enésimo trágico naufrágio ao largo de Lampedusa", declarou Francisco, numa mensagem de condolências.
Nos primeiros seis meses deste ano, os portos de Itália e Malta receberam 8400 imigrantes clandestinos, o dobro daqueles que buscaram o território europeu no período homólogo de 2012, disse ontem a Agência das Nações Unidas para os Refugiados. Tal como aconteceu em 2011, quando se assistiu a um êxodo motivado pelas convulsões das Primaveras Árabes, a maior parte dos clandestinos que arriscam a viagem fazem-no por motivos políticos (para escapar ao serviço militar obrigatório, por exemplo). A maior parte dos passageiros são da zona do corno de África e da Síria.
As redes que se encarregam deste tráfico cobram milhares de euros por passageiro: as pessoas são transportadas em balsas, traineiras e outras embarcações que muitas vezes não cumprem os requisitos mínimos de navegabilidade, sem coletes salva-vidas e sem espaço para se mexerem.
O alto-comissário da ONU para os refugiados, o português António Guterres, reconheceu ontem o esforço das autoridades costeiras italianas e maltesas, que têm contribuído para uma diminuição do número de vítimas das redes de tráfico de ilegais. Ainda assim, este ano já foram registadas 40 mortes nas travessias; para Guterres, "é desanimador assistir ao aumento do fenómeno global de imigrantes ou indivíduos que fogem da perseguição política e conflitos armados e que morrem no mar".
"Não há uma solução miraculosa para a questão, porque se houvesse já a teríamos encontrado e implementado", garantiu ontem a ministra italiana dos Negócios Estrangeiros, Emma Bonino.

Sem comentários: