quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Líderes europeus sem resposta comum contra espionagem americana


"Espionagem entre amigos não se faz", disse Angela Merkel, que debateu o tema com Hollande

Líderes europeus sem resposta comum contra espionagem americana


A comissária Viviane Reding pediu a aprovação de legislação europeia sobre protecção de dados, mas as divergências persistem -"não há legislação que possa evitar a espionagem", defendem alguns
A revelação de que o telemóvel de Angela Merkel, a chanceler alemã, foi espiado pelos EUA suscitou ontem uma série de críticas de vários líderes da União Europeia (UE) no arranque de uma cimeira, em Bruxelas, que prometia dedicar uma boa parte dos trabalhos ao tema. Apesar da indignação, vários líderes e diplomatas europeus reconheceram que a UE enquanto tal não dispõe de grandes meios para enfrentar um problema numa área que permanece em larga medida uma competência nacional.
"Espionagem entre amigos não se faz", protestou Angela Merkel, chanceler alemã, à chegada à cimeira.
A chancelaria revelou na quarta-feira à noite que nem o telemóvel de Merkel escapou às escutas em larga escala realizadas na Europa pela Agência de Segurança Nacional (NSA) americana ao abrigo do seu programa de luta contra o terrorismo. "Espionagem deste tipo é inaceitável", protestou igualmente Enrico Letta, primeiro-ministro italiano.
Merkel está na posição desconfortável de, até agora, ter assumido uma posição muito mais moderada do que grande parte dos seus parceiros europeus face às revelações do ex-consultor da NSA Edward Snowden sobre a espionagem da agência na Europa.
Segundo informações publicadas em vários jornais europeus, diversos outros países, como Itália e França, foram vítimas de escutas que incluíram políticos e empresários. Segundo o Le Monde, só em França foram gravados 70 milhões de dados telefónicos, uma informação que suscitou violentos protestos de Paris junto do Governo americano, mas que Washington nega.
François Hollande, Presidente francês, acrescentou, aliás, o tema da espionagem à agenda de um encontro bilateral que ontem manteve com Merkel já em Bruxelas antes do arranque da cimeira.
"O escândalo da NSA é um sinal de alarme", afirmou aos líderes Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu, no seu habitual discurso no arranque da cimeira, pedindo a suspensão das negociações em curso entre a UE e os Estados Unidos para um acordo de comércio livre.
Além disso, lembrou Schulz, "depois da descoberta de elementos que indicam que os Estados Unidos organizaram a espionagem em grande escala aos embaixadores da União, ao Parlamento Europeu, aos chefes de governos europeus e aos cidadãos, o Parlamento Europeu reclamou a suspensão do acordo Swift". A afirmação refere-se ao acordo transatlântico de transferência de dados bancários cuja suspensão foi pedida pelo PE numa resolução política não vinculativa votada na quarta-feira de novo por causa das revelações de Snowden sobre uma alegada utilização irregular dos dados bancários por parte de Washington. A Comissão Europeia, que teria o poder de suspender o acordo, recusou fazê-lo, alegando que não dispõe de provas de violação dos seus termos e que ainda está à espera de explicações de Washington.
Ontem, depois das revelações das escutas sobre Merkel, Bruxelas reagiu firmemente pedindo a aprovação rápida das suas propostas legislativas sobre protecção de dados que estão há vários meses bloqueadas no conselho de ministros da UE e no PE devido a desacordos internos. "A protecção de dados tem de se aplicar sempre, tanto aos emails dos cidadãos como ao telemóvel de Angela Merkel", afirmou Viviane Reding, comissária europeia responsável pela Justiça, citada pela sua porta-voz.
Com estas propostas, Bruxelas quer obrigar os grandes grupos de telecomunicações a obter o consentimento dos utilizadores antes de usarem os seus dados. "Agora é preciso agir e não fazer apenas declarações na cimeira", prosseguiu Reding, considerando que "os dirigentes europeus têm a oportunidade de mostrar que a reforma da protecção de dados pode ser adoptada até à Primavera de 2014", ou seja, antes da dissolução do PE para as eleições de Maio.
"Na Europa, consideramos o direito ao respeito pela vida privada como um direito fundamental", disse José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, citando, a propósito, o passado de espionagem da polícia secreta da ex-República Democrática da Alemanha.
Mas o apelo de Reding não suscitou grande adesão dos líderes.
"A legislação sobre protecção de dados na Europa é para nosso uso, não sei se poderá enfrentar a espionagem [americana], se alguma vez existir", afirmou Jyrki Katainen, primeiro-ministro da Finlândia à chegada à cimeira. "Não sei qual é a verdade desta última história. Claro que ninguém gosta de ser escutado tanto legal como ilegalmente, mas não sei o que poderemos fazer ao nível europeu, porque, se houver [espionagem], nenhuma legislação europeia o poderá evitar", disse Katainen.


Perguntas e respostas / Público

O que é a NSA?
É a agência norte-americana responsável por interceptar e descodificar comunicações e uma das 16 da comunidade de serviços secretos dos EUA. Foi fundada em Novembro de 1952 e tem duas funções primordiais: evitar que os segredos dos EUA sejam descodificados e descodificar os segredos dos seus adversários. Segundo documentos revelados pelo antigo analista Edward Snowden, a NSA recebeu quase 10,8 mil milhões de dólares (quase 8 mil milhões de euros) no ano fiscal de 2013 - um aumento de 53% nos últimos dez anos. Estima-se que empregue cerca de 40 mil pessoas, mas não há certezas. A sede está localizada na base militar de George Meade, no estado do Maryland.

Quem controla os programas de espionagem nos EUA?
Por lei, quando a NSA pretende espiar cidadãos estrangeiros no território dos EUA que sejam suspeitos de terrorismo, tem de obter a autorização do Foreign Intelligence Surveillance Court (FISC), um tribunal especial criado em 1978. As decisões deste tribunal são mantidas em segredo e apenas são ouvidos os argumentos das agências de serviços secretos. Segundo a organização não-governamental Electronic Privacy Information Center, entre 1979 e 2012 foram feitos 33.942 pedidos de vigilância e foram rejeitados 11. As decisões do FISC podem ser consultadas pelos membros da Comissão do Senado para os Serviços Secretos.

Quem é Edward Snowden e como é que ele apareceu?
A relação de Edward Snowden com os serviços secretos começou como segurança num departamento da NSA na Universidade do Maryland, em 2005. Não se conhecem pormenores sobre a súbita mudança de carreira, mas entre 2006 e 2009 trabalhou como analista da CIA, onde chegou a ser enviado para a Suíça com protecção diplomática. Em 2009 mudou-se para a empresa Dell, onde continuou a trabalhar como subcontratado pela NSA, e depois para a Booz Allen Hamilton, já no início de 2013, onde apenas esteve três meses. Segundo a agência Reuters, Snowden terá começado a guardar os documentos secretos sobre os programas de espionagem quando trabalhava na Dell, em meados de 2012. Numa entrevista ao jornalista Glenn Greenwald e à realizadora Laura Poitras num hotel em Hong Kong, em Junho de 2013, Snowden explicou por que abdicou de um salário anual superior a 100.000 dólares (73.000 euros): "Não quero viver num mundo em que tudo o que faço ou digo é gravado. A minha única motivação é informar o público sobre o que está a ser feito em nome dele e sobre o que está a ser feito contra ele."

A NSA ouve mesmo as nossas conversas telefónicas?
A resposta mais certa é: pode ouvir. Mas a pergunta deve ser outra: porquê? Os documentos revelados por Edward Snowden mostram que a NSA tem baseado muita da sua actividade na recolha em massa de comunicações do maior número de cidadãos possível. É precisamente por ser um pesadelo logístico ter agentes suficientes para ouvir todas as conversas e ler todos os e-mails que a agência desenvolveu programas para recolher e guardar tudo o que é transmitido. A ideia é ter as informações guardadas numa base de dados, à qual se pode aceder sempre que for necessário. O problema é que, para fazer isto, a NSA intercepta comunicações de cidadãos que não têm qualquer envolvimento com actividades criminosas, e que vêem os seus dados vasculhados e registados.

O que é a metainformação?
Apesar de os documentos revelados por Edward Snowden mostrarem que a NSA intercepta e guarda o conteúdo de comunicações por telefone ou através da Internet, a base da sua actividade é dedicada ao registo de metainformação, ou metadados. A metainformação de uma chamada telefónica é toda a informação que é gerada durante a sua duração, excepto a conversa em si - o número dos telefones, os números de identificação únicos dos aparelhos, a data e a duração da chamada e a localização dos interlocutores. Estes dados podem depois ser cruzados com outras informações para obter uma imagem mais completa das actividades das pessoas que estão a ser investigadas.


Que países foram espiados?
É uma pergunta que talvez nunca venha a ter uma resposta exacta. Todas as agências de serviços secretos de todo o mundo têm como objectivo espiar o máximo de comunicações possível. Quanto mais poderosos forem os recursos, maior será a área coberta. Até agora, os documentos revelados por Edward Snowden centraram-se principalmente na Alemanha, na França, no Brasil e no México, para além do próprio território dos EUA. A Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, tem sido a líder da contestação, tendo chegado a adiar uma visita aos EUA em Setembro. Os Presidentes da França e do México e a chanceler da Alemanha também protestaram, mas Dilma Rousseff foi mais longe, ao afirmar que a espionagem de cidadãos brasileiros é "incompatível com a convivência democrática entre países amigos".

É possível fugir à espionagem?
O desenvolvimento de supercomputadores, que permitem quebrar códigos cada vez mais sofisticados, tornam a espionagem numa espécie de jogo do gato e do rato. Mesmo tomando todas as precauções - apenas ao alcance de pessoas com apuradas capacidades técnicas -, a única forma segura de não se ser escutado quando se usa um telemóvel é não usar um telemóvel. Alexandre Martins

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