quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A ausência americana



"O movimento abandonou qualquer hierarquia, funciona por pura ideologia e acredita que é essa América do passado, com muito pouco Governo e muita iniciativa individual, que pode retirar o seu país do declínio. Os fanáticos são pouco susceptíveis à influência dos interesses. "A quebra da disciplina partidária somada à ascensão de uma ideologia extrema são as duas forças que alimentam a actual crise"

A ausência americana


1. Nos anos 80 do século passado, quando as economias ocidentais dominavam o mundo, alguém cunhou uma frase que fez história: "A única coisa pior do que uma multinacional americana é não haver nenhuma multinacional americana." O mundo, entretanto, mudou para lá de qualquer previsão. O fim da Guerra Fria abriu as portas à globalização económica. Os anos 90 do século passado alimentaram a ideia de que a expansão do capitalismo à escala planetária acabaria por abrir as portas à democracia. O mundo tinha a possibilidade de ser um lugar melhor. Bill Clinton liderou a América nesta fase de transição. Também ele enfrentou a radicalização do Partido Republicano, na sua versão Newt Gingrich, o speaker revolucionário de um Congresso dominado pela primeira vez em décadas pelos republicanos. Teve de gerir um braço-de-ferro com o Congresso sobre as verbas para pôr em marcha as suas prioridades, que acabou num shutdown de 28 dias (1995).Quase perdeu a reeleição em 1996. Mas tinha a seu favor um enorme argumento: a economia americana crescia a bom ritmo e o desemprego descia até níveis que hoje já nos parecem desconhecidos. A América era a única superpotência vitoriosa e benigna.
A primeira década do novo século alterou radicalmente as bases do enorme poder dos Estados Unidos. Muita coisa mudou entre a queda das Torres Gémeas (2001) e a queda do Lehman Brothers (2008). Bush pensava que poderia mudar o mundo com a força militar da América. Fracassou. Obama foi eleito, em grande medida porque propunha aos americanos uma nova forma de olhar para o poder dos EUA e para a sua influência no mundo. No topo da sua agenda estava também a reconstrução da economia americana depois da Grande Recessão. O mundo ao qual o poder americano teria de se adaptar já não era o mesmo. A China revelava-se a grande beneficiária da globalização. A vitalidade do modelo económico americano deixava de ser uma evidência.

2. O que se passou nos últimos dias em Washington é um alerta para o que pode acontecer ao poder americano caso a América se deixe dominar pela mentalidade fanática da parte do GOP a que chamamos Tea Party. Obama venceu o braço-de-ferro no Congresso mas apenas temporariamente. Se alguma coisa não mudar, os anos finais da sua presidência podem ficar reféns de sucessivas crises. A imagem da democracia americana sofrerá um desgaste profundo. Por enquanto, a maior economia do mundo ainda é decisiva para o que se passa fora das suas fronteiras, incluindo as potências emergentes. "Na Ásia há uma séria preocupação com o impasse político em Washington", escreve o Washington Post. "A incerteza continuada sobre a política orçamental pode afectar a economia americana e, consequentemente, a asiática." "Há uma grande frustração com o facto de os políticos americanos não parecerem interessados em assumir a sua responsabilidade como guardiões do sistema financeiro global", diz no mesmo jornal o economista-chefe da Société Générale de Hong-Kong, Klaus Baader. O Süddeutsche Zeitung de Munique escreve que o que se passou em Washington "causa dúvidas sobre a capacidade dos EUA de preencherem o seu papel de potência liderante". Os grandes países emergentes, mesmo que lhes custe muito, sabem que parte da sorte das suas economias ainda é decidida na Fed. Temem e desejam, ao mesmo tempo, o fracasso americano. Por enquanto, ainda temem mais. "Não podemos oferecer ao Governo chinês um novo argumento, quando eles apelam à desamericanização do mundo", escreve E. J. Dionne, colunista do Washington Post.

3. Ninguém ganhará com a irracionalidade que domina a política de Washington. Muito menos os republicanos. A velha guarda vê esta radicalização como um perigo enorme para os Estados Unidos. "Lançámos uma guerra que nunca poderíamos vencer", diz o velho senador John McCaine, que desafiou Obama em 2008. O problema é que nem ele resistiu às pressões do Tea Party quando foi buscar Sarah Palin para o seu ticket. O moderado Mitt Romney fez-lhes cedências atrás de cedências.
Dirão alguns que o "big business" se encarregará de lembrar aos republicanos o seu papel político. As coisas podem não ser assim tão fáceis. O movimento abandonou qualquer hierarquia, funciona por pura ideologia e acredita que é essa América do passado, com muito pouco Governo e muita iniciativa individual, que pode retirar o seu país do declínio. Os fanáticos são pouco susceptíveis à influência dos interesses. "A quebra da disciplina partidária somada à ascensão de uma ideologia extrema são as duas forças que alimentam a actual crise", escreve Fareed Zakaria, no Washington Post.
Ver-se-á de que modo esta crise vai afectar os republicanos nas eleições intercalares de 2014. E também em que medida é que vai condicionar os últimos anos do Presidente - que eles continuam a olhar como alguém que nem sabem se é americano e cuja reeleição viram como uma afronta. Mas, como dizem muitos analistas, só muito dificilmente o candidato republicano às eleições de 2016 conseguirá entrar na Casa Branca se o GOP continuar dominado pelo radicalismo extremo. Entretanto, o mundo continua a mudar. Ainda corremos o risco de dizer que só há uma coisa pior do que uma superpotência: a sua ausência.

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