segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Gourmets da austeridade


 "Eu diria que é possível porque o povo, embora esteja descontente e frustrado, já percebeu, ao contrário dos profissionais do protesto, que só há tofu. Não há bife do lombo. E, portanto, quem lhes continua a prometer um futuro de bifes à Café de São Bento, acaso fossem outras as políticas e diferente o rumo do país, esbarra no simples facto de as pessoas já não acreditarem em histórias da carochinha."

Gourmets da austeridade

Numa das últimas edições do Governo Sombra, o Ricardo Araújo Pereira decidiu chamar-me "gourmet da austeridade" após um dos meus infindáveis lamentos sobre o facto de muita da austeridade que o Governo tem vindo a impor ao país não ser a austeridade de que o país precisa. Argumentava eu - pela enésima vez - que aquilo que deveríamos estar a discutir no espaço público não era a existência ou inexistência de austeridade, porque alguma espécie de austeridade seria sempre inevitável, mas sim que tipo de austeridade deveríamos estar a aplicar em Portugal.
Daí a expressão "gourmet da austeridade", que dita pelo Ricardo não tinha, obviamente, qualquer intuito elogioso, mas que eu tomo desde então como encómio. É isso mesmo que todos nós, enquanto cidadãos responsáveis, deveríamos ambicionar ser - gourmets da austeridade, para podermos desenvolver um paladar politicamente sofisticado e sabermos a diferença entre aquilo que devemos engolir, porque não temos outro remédio, e aquilo que deveremos mandar devolver para a cozinha, por manifesta incompetência do chef.
Mas é esta a atitude que encontramos no espaço público? É isto que está a ser discutido? Será que estamos todos a debater qual o melhor prato que conseguimos cozinhar dentro dos limitadíssimos ingredientes que temos à disposição? Claro que não. É como se Portugal inteiro tivesse sido obrigado a entrar num restaurante vegetariano, porque o dinheiro já não dava para mais, mas um grupo significativo (e bastante barulhento) de gente continuasse insistentemente a pedir bife de vaca com batatas fritas e ovo a cavalo.
Quando o movimento Que Se Lixe a Troika resolve organizar uma manifestação para 26 de Outubro que se salda num enorme fracasso, tal como já havia fracassado a manifestação da CGTP em Alcântara, a reacção dos organizadores e de outros resistentes às políticas do Governo passa por culpar o desânimo, o conformismo, a falta de mobilização, a deficiente comunicação, a lamentável cultura cívica, tudo e mais alguma coisa - tudo, excepto a estratégia política dos organizadores. Então o povo não se indigna com mais uma dose cavalar de austeridade? Como é possível? Eu diria que é possível porque o povo, embora esteja descontente e frustrado, já percebeu, ao contrário dos profissionais do protesto, que só há tofu. Não há bife do lombo. E, portanto, quem lhes continua a prometer um futuro de bifes à Café de São Bento, acaso fossem outras as políticas e diferente o rumo do país, esbarra no simples facto de as pessoas já não acreditarem em histórias da carochinha.
Só que nós chegámos a um ponto em que não nos podemos conformar com a inexistência de uma base mínima para a discussão. O país precisa desesperadamente que os vários actores políticos concordem quanto ao problema, para depois poderem discordar quanto às soluções. E nós não temos isso. Enquanto as alternativas políticas forem "austeridade versus crescimento" em vez de "austeridade x versus austeridade y", nós não sairemos de um debate primário e irrealista. É difícil ser gourmet da austeridade quando tanta gente no espaço público recusa pura e simplesmente que a austeridade lhes seja servida. Isto prejudica todos. Prejudica a esquerda porque parece lunática. E prejudica a direita porque passa mais a tempo a dizer que a esquerda é lunática do que a avaliar as consequências das suas acções. Precisávamos de gourmets - e só nos saem ou rapa-tachos ou enfarta-brutos.
Jornalista jmtavares@outlook.com

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