quarta-feira, 9 de outubro de 2013

UE agenda "discussão urgente" após gritos de "assassinos" e "vergonha". Patrulha do Mediterrâneo passou a ter prioridade sobre todas as missões do Frontex



Barroso em Lampedusa: "A imagem de centenas de caixões nunca mais me sairá da cabeça"

Editorial/Público
Não se evitam tragédias humanitárias em Lampedusa de máquina de calcular na mão
Não seria a primeira vez que o Comité Nobel atribuiria um prémio prospectivo, em que a carga simbólica do Nobel expressasse uma vontade quanto ao que há-de vir. A ideia foi lançada pelo vice-primeiro-ministro italiano: a União Europeia (UE) deveria apoiar a candidatura da ilha mediterrânica de Lampedusa a Nobel da Paz. Sendo que o laureado do ano passado foi precisamente a UE; pelo que fez pela "paz, reconciliação, democracia e pelos direitos humanos".
E a menção aos direitos humanos, ou melhor, ao direito à vida, fica manchada quando, em pleno espaço europeu, ainda hoje continuamos a assistir a imigrantes que, pelas mais variadas razões, sobretudo humanitárias e políticas, fogem dos seus países de origem e perdem a vida antes de chegarem à terra prometida. E a Europa foi assistindo a esta tragédia de máquina de calcular na mão e a contar os trocos para financiar programas e agências que podem evitar, ou pelo menos minimizar, as probabilidades de se repetirem naufrágios como o da semana passada, que vitimou quase 300 pessoas.
Ontem, Durão Barroso e Enrico Letta foram recebidos em Lampedusa com gritos de "vergonha" e "assassinos". E o embaraço, quando se chega a um centro de acolhimento, com capacidade para 200 pessoas e que alberga 800 pessoas, é evidente. Barroso levou na bagagem promessas de desbloquear verbas e uma promessa de, no Conselho Europeu, discutir "o drama da imigração". Entre as promessas e a realidade ainda vai uma distância. E a realidade, por exemplo, é que o orçamento da Frontex - a agência europeia de vigilâncias das fronteiras - caiu de 118 milhões em 2011, para 90 milhões em 2012 e novamente para 85 milhões este ano.
Lampedusa pode não receber amanhã o Nobel da Paz. Mas merece o Nobel da Indignação. Pode ser que desta vez os gritos de indignação sejam ouvidos.

UE agenda "discussão urgente" após gritos de "assassinos" e "vergonha"


Comissão Europeia desbloqueia 30 milhões de euros para ajuda aos imigrantes que chegam a Itália. Primeiro-ministro decreta funerais de Estado para as 296 vítimas mortais em Lampedusa
Indignados com as imagens quase diárias de pequenas embarcações a transbordar de pessoas que procuram refúgio na Europa, de cadáveres de homens, mulheres e crianças a boiar no mar e de filas de caixões dispostas no hangar do aeroporto, os habitantes da ilha italiana de Lampedusa descarregaram a sua fúria sobre alguns dos mais influentes políticos da União Europeia.
À chegada ao local onde há uma semana quase 300 pessoas morreram no naufrágio de uma embarcação que partira da Líbia com meio milhar de cidadãos da Eritreia, Somália e Gana a bordo, o presidente da Comissão Europeia (CE), Durão Barroso, foi recebido com gritos de "vergonha" e "assassinos".
As palavras duras e as fotografias de corpos de vítimas mortais acompanharam Barroso e o primeiro-ministro italiano, Enrico Letta, até ao local da conferência de imprensa, onde ambos fizeram anúncios importantes para fazer frente às consequências imediatas do naufrágio da semana passada e repetiram promessas de que a situação vai mesmo mudar a partir de agora.
Sentado em frente aos jornalistas, entre o primero-ministro de Itália, o vice-primeiro-ministro e responsável pela pasta do Interior, Angelino Alfano, e a comissária europeia para os Assuntos Internos, Cecilia Malmström, Durão Barroso anunciou que a CE "está pronta a mobilizar fundos adicionais num valor máximo de 30 milhões de euros, ainda em 2013, para ajudar os refugiados em Itália".
Pouco antes, o chefe do Governo italiano tinha anunciado que os 296 mortos confirmados até ontem no naufrágio da semana passada vão ter funerais com honras de Estado. Esta decisão, disse Enrico Letta, junta-se ao luto nacional decretado pelo Governo e à sua própria deslocação à ilha de Lampedusa, ontem, numa "lógica de partilha do sofrimento de uma tragédia dramática que nunca tinha acontecido no Mediterrâneo com esta dimensão".
Entre as palavras de dor e as promessas de um maior empenho com vista à melhoria da coordenação entre os Estados-membros, houve ainda tempo para uma referência aos habitantes de Lampedusa, a quem a comissária Cecilia Malmström elogiou a "coragem" e a "compaixão". "Quero também exprimir a nossa gratidão e o nosso apoio aos habitantes de Lampedusa. A vossa coragem, a vossa compaixão, a vossa abnegação são um exemplo que deve inspirar os Estados-membros da União Europeia para uma verdadeira política europeia de imigração baseada na solidariedade, na partilha de tarefas e no apoio recíproco".
O programa oficial da deslocação a Lampedusa não incluía uma visita ao centro de acolhimento, um espaço com capacidade para 200 pessoas e que alberga 800. Não se sabe se os dirigentes europeus ouviram uma das frases gritadas por um dos habitantes da ilha à chegada ao aeroporto - "Vão visitar o centro de acolhimento, vejam como aquelas pessoas vivem!" -, mas Barroso e Letta decidiram fazer uma "visita rápida, de poucos minutos", como salientou o jornal La Repubblica.
O primeiro-ministro italiano viu "sofrimento e dor" e o presidente da Comissão Europeia viu "olhares desesperados" e publicou no Twitter uma fotografia de ambos a "ouvir os refugiados". Knut Krohn, jornalista de política do jornal alemão Stuttgarter Zeitung, foi o primeiro a responder: "Ouvir não basta. Estas pessoas precisam de ajuda!"
Letta e Barroso passaram também pelo hangar do aeroporto, onde os esperavam a presidente da Câmara de Lampedusa, Giusi Nicolini, elementos da guarda costeira e 296 caixões. Uma imagem que "ninguém consegue esquecer", disse o presidente da Comissão Europeia.
"É muito importante ter vindo aqui, porque uma coisa é ler os relatórios, outra coisa é ver a televisão e outra coisa é estar aqui, a sentir o sofrimento e a indignação das pessoas. A imagem de centenas de caixões nunca mais me sairá da cabeça. É algo que ninguém consegue esquecer. Caixões com bebés, caixões com a mãe e o filho que tinha acabado de nascer naquele momento. Isto chocou-me e entristeceu-me profundamente", disse Durão Barroso na conferência de imprensa.
Nos próximos dias 24 e 25 de Outubro, durante a reunião do Conselho Europeu, os chefes de Estado e de Governo da UE e o presidente da Comissão vão ter mais uma oportunidade para discutir "o drama europeu da imigração", como lhe chamou ontem o primeiro-ministro italiano. É uma "discussão urgente", disse Enrico Letta, juntando-se ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Laurent Fabius, que no domingo disse que "o Mediterrâneo não pode ser um imenso cemitério a céu aberto".
Giusi Nicolini, a presidente da câmara da ilha que está no centro desse cemitério, a meio caminho entre a Tunísia e a Sicília, pediu que a Europa assuma as suas responsabilidades no salvamento e acolhimento de imigrantes, mas primeiro quer respostas de Roma.
"Penso que os governantes italianos deviam pedir desculpas às crianças e aos sobreviventes pela forma como o nosso país trabalha. Só depois poderemos exigir que a Europa cumpra as suas responsabilidades", disse Nicolini.
Em Novembro de 2012, numa entrevista ao site italiano Linkiesta, dias depois de um naufrágio que fez 11 mortos, a presidente da Câmara de Lampedusa deixava uma pergunta inquietante: "Que dimensão deve ter o cemitério da minha ilha?" E arriscava uma resposta: "Para nós, não é aceitável que 11 mortes não sejam notícia. Se calhar, se fossem 11 pessoas de pele branca num paquete, teriam feito talk shows e enormes funerais".


Patrulha do Mediterrâneo passou a ter prioridade sobre todas as missões do Frontex
A agência europeia de vigilâncias das fronteiras, Frontex, acaba de distribuir mais dois milhões de euros suplementares ao orçamento das suas operações em Itália, que depois do último naufrágio de uma embarcação repleta de imigrantes ao largo da ilha de Lampedusa, passaram a ter "prioridade sobre as restantes missões".
"Decidimos realocar dois milhões de euros suplementares do nosso orçamento, dar prioridade à Itália, e cortar outras actividades de forma a estender a nossa operação Hermes até Novembro", indicou à agência italiana Ansa o vice-director executivo do Frontex, Gil Arias. A operação Hermes abarca a região mediterrânica onde se situa o arquipélago das Ilhas Pelágias, a sul da Sicília, entre as quais Lampedusa.
Segundo o mesmo responsável, a decisão foi tomada antes da tragédia da semana passada, e no âmbito da autonomia do Frontex, "sem a pressão da Itália ou da Comissão Europeia". Mas a redistribuição das verbas, acrescentou, consumiu a totalidade dos fundos disponíveis até ao final de 2013. "Tivemos de raspar os fundos das gavetas", confessou.
O orçamento do Frontex foi objecto de cortes no âmbito da política de austeridade implementada pela União Europeia: o total de 118 milhões de euros cabimentados em 2011 foi reduzido para 90 milhões em 2012 e novamente cortado para os 85 milhões de euros este ano. Ontem, a comissária europeia dos Assuntos Internos, Cecília Malmström, defendeu como urgente o reforço das contribuições dos Estados-membros.
A agência, que é responsável pela protecção das fronteiras europeias contra a imigração ilegal, foi creditada pelo salvamento de pelo menos 16 mil pessoas em patrulhas marítimas no decurso dos últimos dois anos.
O número de imigrantes que procuram entrar ilegalmente na Europa por via marítima aumentou exponencialmente depois das revoltas conhecidas como a Primavera Árabe, em 2011. Os números da agência das Nações Unidas para os Refugiados referentes a 2013 (até Setembro) apontam para o desembarque de 30.100 indivíduos em Itália, a maioria vindos da Síria, Eritreia e Somália.
Um relatório do Frontex notava que este ano, a Líbia se converteu na principal porta de embarque para os imigrantes que procuram chegar a Itália.

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