Merca-tudo. Um certo assombro é uma forma de requinte
Por Diogo Vaz Pinto
publicado em 14 Out 2013 in jornal i online
Há um restaurante que aproveita o balanço do seu
passado, abrindo todas as noites numa cidade que faz fila à porta das últimas
novidades. Diogo Vaz Pinto e David Teles Pereira reviram a matéria a nível de
copos, boa comida e fantasmas
Em tempos talvez que já começam a ir-se era bom ter-se uma
história, memórias que se deixassem admirar quando o presente fica sem jeito
(acontece tanto), sem saber por onde ir. Uma história, nem que fosse apenas
para contar, dizer alguma coisa a quem andasse como que perdido, entre passos
largos, a divagar. É Lisboa ainda. E o lugar é outro dos seus clássicos,
escondido numa das vielas que mais encanto lhe dão. Merca Tudo, a rua como o
restaurante. Ali para os lados do Conde Barão. Às vezes desce-se aquelas
escadinhas e parece que nos enfiámos noutro desses currais para universitários.
Mas ide, que por muito que, aos magotes, arrulhem como fazem os pombos e se
desandem numas euforias sem alma, não deixam de dar passagem e, em menos de
nada, umas portadas antigas atendem os pedidos de santuário. Uma casa aparte,
como se houvesse perdurado meio sem querer num lugar que cada vez lhe diz
menos.
O parêntesis ter-se-á tornado provavelmente dispensável, mas
serve ainda de gaiola ao espanto de confirmar, uma vez mais, como tantos dos
restaurantes que guardavam memórias se renderam ao pandemónio estudantil,
sobrevivendo nos bolsos de uns que se ataviam com o que houver para forrar o
estômago enquanto se regam nuns álcoois que só alegram a boçalidade. Já é da
praxe, e o que se oferece dizer é que poucos países esperam há tanto tempo por
uma juventude que se identifique consigo mesma. Está fechado o parêntesis e
seguimos com os que não ficaram lá atrás com vontade de nos virar sobre a
cabeça as cervejas (em copo de plástico).
Aqui dentro temos duas salas ligadas, uma iluminação
educada, que serena, enquanto as paredes gretadas falam baixinho das coisas
delas. Pormenores de acasos que envelheceram, calmamente, do único modo que o
torna natural: o tempo. O espaço vem já dos anos trinta do século passado. Na
primeira sala ficava uma taberna, na segunda uma carvoaria. Só na década de
oitenta é que as duas se viraram uma para a outra. A taberna servia de pouso ao
corrupio da gente dos barcos, os embarcadiços, atracando ali perto, e fazendo
da zona um centro ao mais alto nível no que toca a actividades de contrabando.
Os comerciantes locais tinham, portanto, o seu esquema bem enraizado. Ora, no
edifício em que estamos hoje havia uma cave onde o taberneiro e um sócio
mantinham o seu inventário. Um dia a polícia topou que andavam metidos no
contrabando e enquanto um foi preso o outro, que não estava para isso,
enforcou-se ali mesmo. Olho para trás de mim e, não vou dizer que vi alguma
coisa, mas deu-me a ideia de que há pelo menos uma alma a torcer fortemente
para que a casa não feche nem se perca em mãos inábeis, dada a perspectiva de
ver as noites passarem aborrecidas, sem este registo acolhedor e familiar. Qual
era o nome da casa à altura em que se deram os factos? “Não tinha”, diz-me José
Carlos, presença mais do que atenciosa, amigável. Há seis anos no restaurante,
desde a primeira vez que cá viemos sempre nos recebeu como se a casa estivesse
ali à nossa espera. É um conceito que não se explica, vem menos do negócio do
que de um sentido de bem-estar e ir ficando. Mas, como me explica, se o espaço
não tinha nome, quem o frequentava arranjou um. Uma vez que o chão da casa é
todo ele de mármore, ficou conhecida como “Chão Frio”.
Foi o anterior proprietário do Merca-Tudo, o senhor José
Guimarães, quem lhe deu a actual configuração. Onde quer que nos sentemos dá a
sensação que fomos chamados para um canto, que estamos ali para comer, sim,
para beber, claro, mas o espaço exerce um reforço dramático, e não há nada como
uma mesa generosa num ambiente conspícuo para tratarmos de assuntos sérios. A
revolução, é certo, ainda não anda na ordem destes dias, mas o restaurante só
abre à noite (”das 20h até... enquanto houver gente”) e, como toda a gente
sabe, a noite é uma longa viagem, com tempo para as grandes reviravoltas. Dá
tempo para que nos inspirem os bons espíritos, experimentados nas grandes
distâncias e em esquemas um pouco menos que lícitos. O ar da casa gosta de se
deter em conspirações. A mobília tem o seu peso e a discrição de quem guarda
bons segredos.
Quando o dono morreu, quem tomou conta do lugar foi a actual
proprietária, Guiomar Noronha. E não só mantém a regularidade de quem recebe os
clientes como a convidados, como atrás do bar, na primeira sala, mantém para
venda uma colecção de artesanato: figuras mais ou menos populares, que molda em
barro, ganhando forma a partir de garrafas (para o corpo) e copos de iogurte de
vidro (para a cabeça).
A outra pessoa que faz o bom nome da casa é Maria José, ou
“Zita” – como é conhecida pelos clientes que lhe elogiam os pratos de boa
cozinha portuguesa com pequenas concessões ao estrangeiro (umas gambas al
ajillo, umas coquilles St. Jacques, dois tagliatelle…). Antes de chegar ao
Merca-Tudo, os seus dotes fizeram êxito na conhecida Tasquinha da Adelaide, em
Campo de Ourique, – casa que entretanto fechou e onde serviu deuses como
Caetano Veloso, Gal Costa, Ney Matogrosso, e alguns mortais eleitos como
Fernando Henriques Cardoso, ex-presidente do Brasil, ou o actual ocupante do
Palácio de Belém, Cavaco Silva, e Assunção Esteves, presidente da Assembleia da
República.
Se há coisa que podemos dizer sobre o Merca-Tudo, e que vale
mesmo a pena referir, é que se trata realmente de um restaurante. O que há
décadas pareceria óbvio e comum, é hoje em dia uma raridade, porque hoje quase
não restam restaurantes. Agora, os restaurantes são projectos ou conceitos e
uns chamam-se tascas, mesmo quando nunca estiveram perto de o ser, ou bistros,
brasseries, gastro pubs e sabe-se lá o que mais. O Merca-Tudo é simplesmente um
restaurante e, tanto quanto nos pareceu, tem orgulho de o ser, não pretende ser
nem mais nem menos do que um sítio onde se vai para comer bem e conversar, e
são estes os elementos mínimos e bastantes.
Da mesa onde nos sentamos podemos ver outra, já ocupada,
onde o rodopio dos pratos entretanto começou. Os convivas falam alto e trocam
garfadas entre si, molha-se aqui um bocado de pão rouba-se ali uma batata
frita. As batatas fritas são caseiras e cortadas toscamente, é exactamente o
que se quer a acompanhar um bom naco de carne. Este é um daqueles momentos
especiais e raros da gastronomia, quando entramos pela primeira vez num
restaurante e, a caminho da mesa ou já sentados, conseguimos espreitar os
pratos de quem já está a comer. Um verdadeiro apaixonado por comida nunca será
um cínico e, por isso, saberá sempre apreciar estes breves momentos em que os
olhos que cobiçam e a esperança que se sente preparam a boca e o estômago para
uma refeição à séria.
É ao José Carlos que fazemos o pedido, aceitando algumas das
bem intencionadas sugestões. Para começar umas gambas al ajillo e os cogumelos
salteados. Depois escolhemos quatro pratos para provar: um bife do lombo com
molho de queijo, no apartado da carne, que acompanha a tal batata frita caseira
e esparregado, e, no apartado do peixe, pataniscas de bacalhau, que acompanham
com um belo arroz de feijão.
As entradas são o melhor e o pior da noite. As gambas vêm a
uma temperatura abaixo do recomendado, mas em compensação o molho está saboroso
e picante. No ponto oposto, os cogumelos são capazes de ser dos melhores que
comemos este ano, aromatizados em ervas e alho e cozinhados na perfeição, com
aquela resistência suficiente da sua estrutura esponjosa aos nossos dentes, uma
delícia.
Os pratos principais, um pouco a chocar com o sóbrio despojo
da sala, vêm quase todos decorados com aquelas reduções que formam desenhos
mais ou menos geométricos nos limites da loiça e da nossa paciência. A verdade
é que não é, nem alguma vez foi, uma coisa agradável de se ver e, na maioria
dos casos, é indício que deve preocupar o comensal. Mas se neste caso o
dissesse, estaria enganado. Apesar deste aparato decorativo desnecessário, a
primeira dentada na massa estaladiça das pataniscas altera logo a disposição.
Num momento, já nem se vêem as reduções geométricas, apenas se pensa na próxima
garfada e na outra que virá a seguir. O bife é bem cozinhado e vem na
temperatura certa para o corte, médio-mal. O molho de queijo é agradável e não
enjoa como muitas outras mistelas que por aí se servem em cima de nacos de
carne outrora decentemente cozinhados. Apenas um reparo à textura do molho, a
aproximar-se ligeiramente do coalhado.
Limpos os pratos até ao último bago de arroz, é hora de
pedir a sobremesa. Uma mousse de chocolate e uma tarte de maçã para acidular um
bocado, coisa que na comida convêm sempre. A tarte é apenas agradável, já a
mousse é óptima, feita no restaurante e a lembrar aqueles dias da infância em
que essa indulgência nos era permitida. É isto que é suposto uma sobremesa
fazer, deixar-nos felizes.
Quase nos esquecíamos de falar da sangria. Que era doce e
que, suavemente, fez o seu trabalho. Cá para o fim já era mais ela que falava
por nós e que, ao sairmos do restaurante, nos quis perder no meio da turba,
enchendo-nos daquele desejo de confundirmos a voz entre outras, cantando. Se ao
menos os universitários ainda cantassem. A lua lá estava, como por obrigação,
sem nem a homenagem de um uivo. Nada, apenas os urros estudantis e nenhuma
guitarra que os suavizasse. Assim, cosemos com a imaginação uma melodia para
embalar as memórias melhores da noite que, apesar do contexto, morria alegre e
de barriga cheia.
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