quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Colina de Sant"Ana III




Colina de Sant"Ana III

Caro Vítor Serrão
1. Li com alguma surpresa o teu texto de 4/10. Lá pelo meio referes "um senhor olisipógrafo" que, em virtude da data citada, só posso ser eu. Como nos conhecemos desde os bancos da faculdade e partilhámos ao longo dos anos muitos trabalhos em conjunto, estranho este inesperado ataque de amnésia relativamente ao meu nome. Mas as coisas são como são e o peso da idade vai com certeza baralhando precocemente as referências, na verdade mais nuns que noutros. Mas, como eu sou um senhor Olisipógrafo (SO), tu passas a ser um senhor Catedrático (SC). Prossiga pois a cavaqueira entre SO e SC.
Talvez que a amnésia em relação ao nome de SO tenha a ver com uma mudança de carácter em SC. Aquele SC que em tempos SO conheceu e com quem teve o prazer de lidar não era nada atreito a golpes baixos, deturpando de forma deliberada o que está escrito no texto contraditado. Diz SC que SO afirmou: "Ou se avança com projectos e funcionalidades previamente determinadas, mesmo que estas apaguem as memórias valorativas dos espaços." Ora aquilo que SO escreveu foi o oposto, e passo a citar: "Ou se intervém através de novas funcionalidades viáveis, capazes de absorver as memórias valorativas do lugar." Distracção ou lentes deliberadamente desfocadas? Mas há mais. Um pouco adiante, SC escreve indignado: "(...) Não se imagina um olisipógrafo a sustentar que esse processo se faça destruindo testemunhos e negando-lhes valia, como no caso dos hospitais civis." Retorcido! O texto de SO em apreço apenas focava o caso do Miguel Bombarda, e nunca, em lugar nenhum, se faz a apologia de ausência de valia do conjunto dos hospitais civis da Colina de Sant" Ana. Pelo contrário. Há já algum tempo que SO tem dedicado boa atenção a esse magnífico acervo patrimonial e, inclusivamente, tem em mãos um levantamento histórico de um conjunto alargado de edifícios situados na envolvente desses mesmos hospitais, para se poder entender com coerência a questão na sua globalidade. Distorcer por distorcer, sem o mínimo respeito intelectual pelos visados, não parece a atitude mais curial de quem como catedrático tem um papel na formação científica e de carácter dos seus alunos.
Apesar de prolixo, o texto de SC nada adianta de novo para ajudar a resolver o imbróglio criado pela decisão voluntarista do Ministério da Saúde (MS). Nem uma ideia inovadora, nem um vislumbre criativo. Apenas coisas vagas, generalidades requentadas, agravos alheios, pois na verdade ninguém discute que os antigos conventos em apreço são peças de valor patrimonial inestimável no panorama lisboeta. Vá lá que se detecta algum progresso face a testemunhos anteriores, quando SC escreve que "há uma terceira via (...) que equilibre reconstrução com conservação, pontual demolição de excrescências com valorização efectiva do todo". Se SC tivesse lido de forma não preconceituosa os textos que SO escreveu até ao momento, repararia que é essa dita "terceira via" que norteia as diversas tomadas de posição. Isto é, encarar a realidade existente e procurar as soluções que satisfaçam os interesses patrimoniais e a dinâmica da cidade.
2. Dito isto, SO passa a reflectir sobre as origens deste pesado tema, já que SC volta, de forma sibilina, a endossar responsabilidades para a CML. Ora, como é bem sabido, a origem da questão nada tem a ver com a câmara, nem sequer esta dispõe dos meios para a resolver como eventualmente se poderia desejar. O Estado português dispõe de um órgão executivo a que se chama o Governo da Nação. É um órgão colegial, com responsabilidade colectiva, presidido pelo primeiro--ministro. Portanto as suas decisões são tomadas por consenso, ou, pelo menos, por maioria.
Daí, quando o MS levou a conselho a decisão polémica de fechar todos os hospitais para concentrar os serviços numa única unidade a construir em Chelas, parte-se do princípio que a ideia colheu aprovação, incluindo a forma que o MS encontrara para se livrar do peso daqueles mastodontes antiquados concentrados na Colina de Sant" Ana: ou seja, entregar tudo à Estamo, empresa dominada pelo próprio Governo, com o intuito de realizar o máximo de rendimento para erguer o sonho de Chelas. Era natural que o responsável pela Cultura, que abrange o Património, tivesse levantado em conselho a questão pertinente de salvaguardar os interesses patrimoniais em questão. Mais, era de esperar que o Governo, como órgão colectivo, deliberasse com cuidado em matéria tão sensível e, inclusive, chamasse a câmara e as múltiplas associações médicas envolvidas para, em conjunto, engendrar uma solução que acautelasse todas as vertentes em confronto, definisse com precisão a utilização futura dos edifícios, aquilo que pudesse ser sacrificado e o que era intocável, a preservação do imenso património hospitalar, físico ou imaterial, e que só depois de feito este minucioso trabalho de casa apresentasse ao país e à cidade as conclusões que, evidentemente, a saudável discussão pública poderiam aperfeiçoar.
Nada disto se passou. À socapa, a Estamo viu-se com a criança nos braços, com a incumbência impositiva de realizar o máximo de proventos através da intervenção imobiliária. E, caso extraordinário, a DGPC, parte integrante do pelouro da Cultura, vem agora pretender por vias ínvias alterar os pressupostos definidos em Conselho de Ministros, com o voto do seu responsável máximo que nele tem assento. Então ninguém mexeu uma palha, mas agora cai o Carmo e a Trindade (ou melhor, S. José e os Capuchos) pelo atentado que o Governo da Nação, de que a Cultura faz parte, superiormente sancionou. Quando é que os ministérios deixam de ser quintinhas particulares onde ninguém sabe o que o vizinho anda a tramar e, de uma vez por todas, se comportam como entidades responsáveis, integradas num colectivo e empenhadas na defesa dos interesses que a todos dizem respeito? Bem prega Frei Tomás.
SO está de acordo com SC quando escreve que "só faz sentido se Património, Herança e Memória caminharem de mãos dadas", mesmo descontando que a vertigem palavrosa de SC não o deixe entender que Património, Herança e Memória são, afinal, sinónimos que definem uma mesma realidade: o corpo nutrido de referências, materiais e imateriais, que sustentam o prazer imenso de afirmar uma diferença. E SO acrescentará que essas mãos dadas (sejam elas duas, seis ou centenas) não estão grudadas, estáticas e imutáveis, como que paralisadas no tempo e no espaço, mas, ao invés, estão livres e vivas, articulam-se, recriam-se e enriquecem-se a todo o momento, quando batidas pelas aragens vivenciais de cada tempo concreto.
Olisipógrafo

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