terça-feira, 8 de outubro de 2013

Cinemateca, um debate imprescindível


Cinemateca, um debate imprescindível

A situação da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema vem sendo preocupante, pelos gravíssimos constrangimentos orçamentais e pelas dificuldades suscitadas por meandros burocráticos.
Essa situação tornou-se mesmo alarmante durante o Verão, com a perspectiva não só de a actividade de programação poder não ser retomada em Setembro como mesmo de haver danos no precioso acervo do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, que é parte fulcral da instituição, pois que preservação e programação constituem a dupla vertente das cinematecas, o que aliás no caso concreto se infere logo da designação de Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.
O alarme foi de tal ordem que enfim se geraram mesmo movimentos cívicos e iniciativas políticas, a situação acabando por ser provisoriamente resolvida, com a atribuição por parte da tutela de uma dotação orçamental excepcional até final do ano, provinda do Fundo de Fomento Cultural, como aliás tinha já ocorrido em Junho e Julho.
As iniciativas políticas concretizaram-se em dois projectos de lei, do PCP e do Bloco da Esquerda, e de um projecto de resolução do PS que hoje sobem ao plenário da Assembleia da República. Não posso sequer imaginar que a discussão tão imperiosa do estatuto e financiamento da Cinemateca se esgote hoje nos três minutos de que dispõem os diferentes grupos parlamentares e nalguma votação expeditiva - a apreciação é complexa, tornando imperativo que as propostas baixem à Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura.
Tanto mais quanto a discussão chega à instituição por excelência da democracia representativa, e ao debate cívico geral, importa atender a um conjunto de factores, uns mais específicos, outros mais genéricos.
Consideremos então o mais geral, no que até pode parecer abusivo mas não creio nada despiciendo, e que acaba por se prender com a própria situação do cinema, que com a passagem do analógico, e da película, ao digital, atravessa a sua maior mutação desde a transição do mudo para o sonoro. Mas há mais, e a vários títulos muito mais problemático: é a própria noção de cinema e de "ir ao cinema", a uma sala escura de projecção, a própria condição do espectador cinematográfico e dos seus modos de percepção, que se estão a alterar drasticamente com o crescendo acelerado das plataformas de difusão por via televisiva e mesmo pelo visionamento nos ecrãs de computador.
Este quadro geral, do que é uma das mais profundas mutações culturais contemporâneas, exige em si uma ampla reflexão. Não restam é dúvidas, desde o princípio do presente século, de que o cinema como o conhecíamos, como a grande arte do século XX, e arte de massas, está a perecer. Ora, e é aqui que as questões se entroncam, uma tal mutação faz com que, para a preservação da memória do cinema e da própria condição de espectadores interessados, sejam ainda mais fulcrais instituições complementares e de vocações específicas, como as cinematecas, os festivais, e desejavelmente também, redes territoriais de exibição complementar - e é "isto", de tal modo decisivo, que também está em jogo no que respeita à Cinemateca Portuguesa.
Desde logo ela está tecnicamente "atrasada" pela falta de equipamentos digitais, quer no tocante à exibição, quer ao restauro de filmes. A especialização do ANIM vem-se tornando até uma referência internacional para as restaurações em película, o que não pode impedir de tenha igualmente de ter meios digitais. E no que diz respeito à exibição, pois que as salas da cinemateca não têm meios digitais, não só os limites crescem exponencialmente como, sempre que é incontornável a passagem de uma cópia digital ou informatizada, as soluções têm de ser pontualmente improvisadas e sujeitas a imprevistos e contratempos.
Mas há ainda um outro factor, que creio muito importante. Sempre defendi que a actividade da Cinemateca não podia ser circunscrita a Lisboa, que tinha de haver cópias a circular pelo país. Ora são já raríssimas as salas ainda equipadas para projecção em película e se até há novos equipamentos públicos que potenciam a existência enfim de uma rede de exibição territorial, nomeadamente também a partir da Cinemateca, isso só é possível com um novo acervo de cópias digitais.
É imperioso pois que se avance no sentido dessa mutação, que se vá prevendo o investimento necessário. E depois há as questões de financiamento e de estatuto jurídico e administrativo da Cinemateca.
No papel pelo menos a recente Lei do Cinema - de resto o único "activo" desde governo em matéria cultural - previu a obtenção de novas fontes de financiamento em consonância com as mutações de modos de difusão, isto é, indo colher às televisões, canais temáticos e plataformas de "videoclubes" digitais. Só que na discussão houve um lapso generalizado, o das fontes de receita das cinematecas, que acabaram por ficar exactamente no quadro que já advinha da Lei 7/71, ou seja 20% da taxa de 4% sobre a publicidade televisiva.
Repita-se então uma outra vez: apesar de ser um museu de tal forma importante, e de corresponder a uma Biblioteca Nacional, a Cinemateca não é financiada pelo Orçamento do Estado mas apenas por uma fonte de mercado, o que só pode ser uma enorme aberração. Mas mais: como a única fonte provém do mercado publicitário e esse está numa enorme crise, o financiamento da Cinemateca foi drasticamente reduzido, este ano mesmo na ordem dos 50% em relação à previsão orçamental feita com base no ano anterior.
Acrescem as imposições da Lei dos Compromissos, implicando uma previsão de fundos a três meses para o pagamento de vencimentos e serviços e compras já contratualizadas. Quer isto por exemplo dizer que se avariar a lâmpada de um projector pode não haver verba para comprar outra, pelo menos sem autorização superior, que se houver um problema de refrigeração num dos cofres do ANIM os filmes podem ficar danificados, etc. É um cenário catastrófico!
E enfim há a não menos crucial questão do estatuto. A Cinemateca é um Instituto Público mas "em suspensão"; como assim?
Retomando e ampliando um nefasto projecto do anterior governo socrático, o actual, na sua primeira versão para a cultura, com Francisco José Viegas, decidiu criar um inoperante Agrupamento Complementar de Empresas, reunindo os três teatros nacionais, a Companhia Nacional de Bailado e mesmo a Cinemateca. A integração não se chegou a consumar, mas legalmente no princípio deste ano chegou a estar em vigor, supondo portanto cada uma dessas instituições como entidades empresariais, e nesse sentido impossibilitadas de qualquer recurso adicional que pudesse provir da Direcção-Geral do Orçamento. Entretanto veio a segunda versão, com Jorge Barreto Xavier, e, na impossibilitada política de abolir um decreto-lei deste mesmo governo, esse foi suspenso, donde esta particularidade de institutos públicos "em suspensão", sem se saber quando virão os modelos adoptados.
Mas atenção, mesmo muita atenção: a autonomia institucional da Cinemateca é crucial e qualquer veleidade de a integrar numa estrutura maior, no caso do Instituto de Cinema e Audiovisual, seria desastrosa e sinistra.
A preservação da memória do cinema e do gesto de "ir ao cinema" rever o passado, aprofundando conhecimentos em ciclos de programação, e também de fazer descobertas, do estatuto programático e institucional da Cinemateca e dos meios para o aplicar, é de uma tal importância que a discussão não se pode ficar pelos três minutos de cada partido no plenário de hoje da AR. O debate aprofundado é mesmo imperioso.
Crítico

Sem comentários: