"Ninguém está acima da lei, mas o Governo parece olhar para a lei como uma enorme maçada"
( ...) "Costa pôde dizer o que Seguro não pode, porque não é ele quem negoceia pelo PS (por agora...)."
(...) "É uma maçada aqueles senhores juízes andarem a incomodar pessoas em Angola, parecia sugerir Machete. Ora o Governo de Portugal parece olhar para a lei e para o Estado de direito como se fossem umas enormes maçadas. Não lhe parece, senhor Presidente da República?"
Três perguntas e uma República
Editorial/PúblicoNinguém está acima da lei, mas o Governo parece olhar para a lei como uma enorme maçada
Afechar uma semana marcada pela derrota da maioria
nas eleições autárquicas e pelo carimbo positivo da troika na oitava e nona
avaliações, o Presidente da República subiu à tribuna das comemorações do 5 de
Outubro sem vontade de fazer estragos e trouxe um discurso reflexivo sobre a
República que temos. Regressando à educação como tema central, como fizera
noutros aniversários da revolução de 1910 - que comparou ao 25 de Abril -, falou
da necessidade de uma república inclusiva onde ninguém esteja acima da lei. É o
Cavaco um pouco à esquerda que de vez em quando vem à tona. Através dessa porta,
fala aos que entre o seu eleitorado ainda se dão mal com Abril e atenua a
antipatia que a esquerda tradicionalmente nutre por ele. E à sua esquerda Cavaco
encontrou um interlocutor impecável na pessoa de António Costa. O presidente da
Câmara de Lisboa falou de uma democracia que não pode ser construída atropelando
a lei (isto é a Constituição) e defendeu a importância dos consensos alargados
que Cavaco tem procurado mas não encontrado. Costa pôde dizer o que Seguro não
pode, porque não é ele quem negoceia pelo PS (por agora...).
O desejo de uma democracia melhor dos dois discursos colidiu com a iniquidade
de um caso que envergonha duplamente a democracia e o país. Ninguém está acima
da lei, disse o Presidente; e não podem portanto os governos agir como se a
Constituição fosse um obstáculo a derrubar. E pode um governo estar acima da
decência? Essa é a pergunta que o país fazia sexta-feira a Rui Machete, pelo
desplante de ter pedido desculpas a personalidades angolanas investigadas em
Portugal pelo Ministério Público. Mas desde ontem que é preciso formular outra
pergunta, desta vez a Pedro Passos Coelho. O que é preciso para um
primeiro-ministro, reconhecidamente teimoso, deixar de confiar num ministro? A
mentira, já o sabíamos desde o caso Relvas, não é com certeza. O sentido de
Estado, ficámos a saber agora com o caso Machete, também não. É possível dizer
de um governante que pediu desculpa por uma investigação judicial que ele
respeita a divisão de poderes? A atitude do primeiro--ministro é politicamente
tão inqualificável como a do ministro dos Negócios Estrangeiros. Não se
compreende como não apresentou Rui Machete de imediato a demissão ao
primeiro-ministro. E não se admite que o primeiro-ministro não lha tenha
exigido. E se nada disto aconteceu ou virá a acontecer, isso significa que
valores como a divisão de poderes ou o prestígio externo de Portugal são
insignificâncias que não perturbam o primeiro-ministro, ocupado como está na
missão de salvar a Pátria. É uma maçada aqueles senhores juízes andarem a
incomodar pessoas em Angola, parecia sugerir Machete. Ora o Governo de Portugal
parece olhar para a lei e para o Estado de direito como se fossem umas enormes
maçadas. Não lhe parece, senhor Presidente da República?"As eleições são uma crítica severa ao sistema dominado pelo PSD e pelo PS"
José Pacheco Pereira O historiador e comentador não poupa o PSD e o CDS na sequência da derrota eleitoral, mas diz que o voto de protesto também atingiu o Partido Socialista.
O primeiro-ministro disse, no início do ano: "Que se lixem as eleições." Era uma justificação antecipada de derrota ou a desvalorização do acto eleitoral e da vida partidária?
É tudo junto. "Que se lixem as eleições" é uma frase com peso eleitoral, o seu primeiro significado é: "Temos de estar muito atentos às eleições." Como nas eleições se ia julgar a governação, está também a transmitir a mensagem: "Não contem com muito." Mas também há um desprezo objectivo das eleições - que, aliás, não é só do primeiro-ministro, é de muitas pessoas ligadas ao poder, ao sistema económico e financeiro. Uma parte do establishment português não quer ouvir falar de eleições. E, no entanto, estas eleições autárquicas foram das mais interessantes desde o 25 de Abril. Ao fim de dois anos de inevitabilidade que põe em causa a política em geral e, desse ponto de vista, põe em causa a democracia, irromperam eleições que representam uma lufada de ar fresco e o retorno da liberdade e da democracia. Desse ponto de vista, as eleições são mal vistas pelas pessoas que acham que vivemos sob uma espécie de ditadura, de um estado de emergência financeiro, no qual a política não tem papel.
As eleições foram uma irrupção democrática, mas houve uma enorme abstenção...
Nestas eleições há uma penalização da política governamental, sem necessariamente haver uma transferência muito significativa para o PS. E há uma penalização, essa sim, muito importante, do sistema político-partidário. Estou a falar de três fenómenos conjugados. Há uma parte da abstenção que é abstenção de protesto. Depois, há uma manifestação explícita de protesto sob várias formas, do voto nulo, do voto em branco e do voto nos independentes. Estas eleições são uma crítica severa não apenas à política governamental, mas também ao sistema partidário dominado pelo PS e pelo PSD.
O PS também é alvo desse voto de protesto?
Claro que é. Assistimos a uma vitória considerável do PS em termos de municípios, ao seu crescimento em muitos municípios, e a uma perda muito significativa do PSD. Se raciocinarmos assim, o PS teve uma grande vitória, mas seria menosprezar o facto de quer o PSD, quer o PS terem perdido votos. Seria desprezar o facto de os independentes e de a CDU terem tido um crescimento absoluto de votos. Do ponto de vista do significado nacional das eleições, a única vitória com significado nacional do PS é a de Lisboa. Porque em todos os outros casos os resultados do PS estão muito longe do que precisava para caminhar para uma maioria absoluta. Um partido que reivindica eleições antecipadas tem de estar pronto para as ganhar amanhã com maioria absoluta. O PS não arranca para o seu objectivo principal que é ganhar as legislativas.
Como vai reagir o PSD?
O PSD tem dois problemas muito graves. Tem uma direcção política que nada tem a ver com o programa, génese, história e identidade do partido. Depois tem um aparelho que levou um verdadeiro murro no estômago. Em partidos como o PSD, e em parte também no PS, a partidocracia tornou o partido muito difícil de mudar interiormente. Estas eleições atingiram bastiões onde estão centenas de militantes empregados. As carreiras e empregos são hoje mecanismos fundamentais do poder interno e esse poder interno, por exemplo, no Porto e Gaia que são contíguos, sofreu um enorme abalo. Hoje, o PSD é controlado por grandes secções, em muitos casos artificiais, controladas por caciques locais, cuja vida, carreira e progressão depende da sua capacidade de controlo do poder interno. O refluxo dos últimos anos, o longo período em que o partido não esteve no poder, fez com que muita gente se voltasse para o poder autárquico. É verdade que o PSD é um partido com forte implantação autárquica, mas também é um partido em que o aparelho perdeu dimensão nacional. Esta perda de influência nacional mudou o carácter do PSD enquanto partido. Na génese, o PSD era diferente. Havia, sem dúvida, manifestações de partidocracia, cunhas para deputados, mecanismos de influência local. Mas havia um conjunto de pessoas notáveis a nível local, personalidades com influência. Eram médicos, pequenos industriais, comerciantes, empresários, advogados, operários em muitos casos, com influência nas suas freguesias, cuja vida não dependia do seu papel nas estruturas partidárias. Isso desapareceu. Hoje, há estruturas do partido, com pessoas com carreiras dentro do partido, cuja única preocupação é gerir as suas próprias carreiras. Essas carreiras, quando há poder autárquico, comunicam com o poder autárquico. Quando o PSD está no poder, comunicam com os lugares de influência nacional, assessores do governo, administrações regionais. Nas carreiras dos últimos anos, principalmente na JSD, as pessoas rapidamente percebem que é mais fácil ter um emprego e um trem de vida muito considerável através da carreira política.
E como é que tudo isso agora fica?
Fica muito abalado. Esta derrota é muito dolorosa para o aparelho do PSD, porque reduz o poder enquanto capacidade de distribuição de lugares. A nível local, o que se verifica nas autarquias médias e nas grandes cidades, as estruturas do PSD têm cada vez menos importância. Os candidatos foram directamente apoiados e escolhidos pela direcção do partido, mas hoje há uma tendência de transformar o Jorge Moreira da Silva em bode expiatório. Mas foi Passos Coelho quem escolheu Menezes. Insisto que não podia deixar de escolher, porque, do ponto de vista do poder interno, Porto e Gaia são fundamentais. Quem escolheu o Pedro Pinto, vice-presidente de Passos Coelho, quem escolheu Moita Flores, quem escolheu Carlos Abreu Amorim, quem escolheu Fernando Seara foram Passos Coelho e Miguel Relvas. Há uma lógica em todas estas escolhas. São os mais papistas que o Papa. Os que garantiam à direcção do partido uma ultrafidelidade no combate aos seus inimigos internos. Há também que discutir em certos sítios o papel da maçonaria. É bizarro que um partido que sempre foi antimaçónico, como o PSD, hoje tenha estruturas completamente dominadas pela maçonaria, no Norte, por exemplo, no Porto, em Gaia. Não de toda a maçonaria, mas de alguma maçonaria. Isso mostra até que ponto há uma ruptura com a tradição do PSD.
Ruptura?
O PSD tinha uma componente anticomunista e antimaçónica, e as tradições que o fundaram vinham da doutrina social da Igreja. A direcção de hoje e as estruturas do partido têm uma lógica diferente. Corremos o risco de ver um dos grandes partidos fundamentais para a vida política portuguesa ficar sem esse papel. O partido vivia de tradições que neste momento não estão representadas na direcção e são profundamente perturbadas pelo aparelho partidário que tem uma mera lógica de lugares.
Quando falamos de independentes, também falamos de dissidentes - que penalizaram o PS em Matosinhos e o PSD em Gaia e Sintra. Como vê este fenómeno?
Compreendo a distinção entre as dissidências e as independências. As candidaturas dissidentes vão ganhar uma lógica própria e vão afastar-se do modelo inicial. Há cada vez maior pressão para que os independentes tenham um papel activo na vida pública. Como os partidos não se reformam por dentro, têm de se encontrar mecanismos de pressão por fora. É por isso que na ordem do dia, mais do que meditar sobre os independentes, temos de começar a pensar nos independentes nas legislativas.
O que implica mudar a lei eleitoral.
Implica mudar a lei eleitoral. Do ponto de vista cívico, a partir do momento em que os partidos muito dificilmente mudam por dentro, temos de encontrar mecanismos que os pressionem a mudar a partir de fora. Há um conjunto de mudanças na legislação eleitoral que podem ter esse papel.
É a única forma de fazer o curto-circuito à crise política que temos?
Sim. E é a forma de manter dentro do quadro democrático um conjunto de pressões que, se não encontrarem saída no quadro democrático, se podem tornar antidemocráticas. [É o caso do] populismo que alguns candidatos do PSD usaram na campanha - ao contrário do que disse o primeiro-ministro, esquecendo as propostas de manuais escolares gratuitos para toda a gente, os túneis em Lisboa, as pontes e os túneis no Porto. Essa disfunção de linguagem deriva de que é maior o peso do oportunismo pragmático do que da ideologia. A direcção aceitou patrocinar candidatos que fizeram campanhas parecidas com aquilo que criticaram no esbanjamento de Sócrates. Campanhas despesistas, patrocinadas por uma direcção que anda a cortar as reformas aos pensionistas. Faça-se justiça que algumas campanhas do PSD a nível local foram muito moderadas, mas nas grandes campanhas gastaram-se milhões de euros: no Porto, em Oeiras e Lisboa. Isso só foi possível com o beneplácito da direcção nacional. Eram campanhas deles, dos próprios, por isso os resultados eleitorais afectam o coração da liderança. Agora, duvido que isto tenha efeitos numa mudança política. Acho, aliás, que se corre o risco de o próximo congresso ser quase albanês. A nível político, o efeito deste murro no estômago do aparelho partidário pode ser até uma maior unidade com a direcção que é oriunda do aparelho partidário. Não há nada que mais horrorize a partidocracia no PSD que uma direcção contra o aparelho partidário.
Na noite eleitoral, Passos Coelho assumiu a derrota. Paulo Portas falou de vitória...
A declaração de Portas é ridícula, como é ridícula a quantidade de jornais que o puseram entre os vencedores. Com Paulo Portas há muitas vezes o benefício do infractor. A declaração de Portas, do penta, é, em primeiro lugar, desleal em relação ao PSD. A maioria daquelas vitórias foram contra o PSD, porque concorreram separados, mas a verdade é que também concorreram coligados. Depois, não há uma palavra sobre as coligações em que a direcção do CDS se envolveu, como Lisboa, e há a tentativa de apropriação da vitória de Rui Moreira no Porto. Acho que a falta de vergonha de Paulo Portas devia ser afrontosa para as pessoas, mas a verdade é que ele, em grande parte pelas suas amizades na comunicação social, consegue passar entre os pingos da chuva. Portas, que tem responsabilidade directa no agravamento da crise política, da crise orçamental que custou milhões e milhões de euros aos portugueses, aparece a rir-se na nossa cara.
Da declaração de Paulo Portas, ao proclamar a vitória do CDS na noite das eleições, depreende-se que a coligação sai enfraquecida e dividida.
A coligação é uma inexistência. O grande erro do Presidente da República foi não ter percebido que o país não pode ser governado em diarquia que assenta na má-fé. Há muito tempo que não temos um único governo e agora temos um governo assente na desconfiança mútua. Portas precisa de remediar os estragos que fez a si próprio e ao país, e qualquer sucesso genuíno e substancial de Portas terá sempre a animosidade de Passos Coelho e vice-versa. Passos deixou Paulo Portas enterrar-se no seu próprio veneno, deixou-o ir com a ministra das Finanças passear pelos centros políticos da decisão, deixou-o ir à Assembleia proclamar os 4,5 % de défice. Isto para qualquer observador significa que não há coesão e que não há primeiro-ministro. Há dois primeiros-ministros. Um que tem o poder legitimado pelas eleições, mas que claramente não dirige o Conselho de Ministros. Outro, Portas, que saiu do Governo contra a troika e veio com os reformados, com os 4,5%, tudo tretas. Esta gente anda a gozar connosco, o que infelizmente demonstra que o sistema político num momento de grande crise nacional só nos ofereceu gente de muito má qualidade.
O CDS está mais perto de romper?
O CDS tem medo de romper, mas não basta que o que os une seja o medo das consequências. Nenhum governo sobrevive pelo facto de os dois partidos terem medo das consequências. Já viu algum comentador ou ministro do CDS falar de algum resultado atribuível a um ministro do PSD? Elogiam-se a si próprios. Desse ponto de vista o PSD é mais complacente.
O Presidente da República apercebe-se?
Acho que o Presidente se apercebe, mas cometeu um erro estratégico que é não perceber que aquilo que ele quer dos partidos políticos, incluindo o PS, só era possível com eleições. As eleições tinham enormes riscos, mas não riscos diferentes da crise política gerada por Portas. O nosso sistema está bloqueado. Ninguém vai fazer o PS sentar--se à mesa, a não ser sob uma chantagem cujos contornos nunca saberíamos. O Presidente deveria ter compreendido que os custos das eleições eram menores do que os custos de uma situação de apodrecimento. Cada mês que passa a margem de manobra política é menor. O Presidente podia obter acordos pré-eleitorais, podia ter dito ao PS: "Dou-vos eleições antecipadas, mas ponho a condição de que haja um acordo prévio sobre determinadas matérias." Se o Presidente tivesse canalizado a sua actuação nestes acordos, dando em contrapartida as eleições, teria obtido com certeza maior facilidade para que o PS tivesse um papel de partenariado.
Marco António Costa disse que todas as instituições do Estado têm de colaborar...
Esta gente não tem formação democrática e vem com teorias muito complicadas para a democracia. Por exemplo, a teoria do protectorado. Fui a primeira pessoa que falou de protectorado num artigo no PÚBLICO. Passados uns meses, Portas pegou no protectorado. Eu posso dizer que nós vivemos em protectorado. O ministro dos Negócios Estrangeiros não pode. Outro caso: a ideia de que a Constituição está suspensa, que, como assinámos o memorando e assinámos o pacto orçamental, que não está em vigor, está suspensa a aplicação da Constituição. Este tipo de afirmações mostra uma deriva antidemocrática. Há desmandos, um revolucionarismo de destruição do tecido institucional, do primado da lei, que esta gente pensa que só funciona contra os reformados, os pensionistas, os trabalhadores, a CGTP e o Bloco de Esquerda. Mas enganam-se. Também funciona contra a propriedade privada, também vai funcionar contra as PPP [parcerias público-privadas], contra os ricos. Também é interessante os partidos do Governo serem os partidos da classe média, e agora ninguém falar da classe média. O PSD era o partido da classe média, quando havia mobilidade social e as pessoas podiam melhorar a sua condição de vida. Agora, está a haver mais exclusão e um empobrecimento significativo da classe média, a haver uma cada vez maior diferenciação social. Até nisso há uma traição ao programa social-democrata.
Estamos mais perto de um segundo resgate?
Com esse nome ou com outro. Não meço a distinção pela forma, meço pelo efeito. Passamos a ter liberdade de conduzir a nossa política económica e financeira? Num caso ou noutro, a resposta é a mesma: não. Tanto o programa cautelar como um segundo resgate congelam estas políticas por um longo período de tempo, esquecendo que elas são insustentáveis em democracia e geram enormes desigualdades sociais e portanto condições de turbulência política.
A afirmação de Paulo Portas de que o Governo queria os 4,5% como meta do défice agravou o problema de credibilidade que começou com a crise política de Julho. A forma como o BCE e a Comissão Europeia reagiram a essa declaração não pode conduzir a que o apoio externo a este Governo desapareça?
Tenho dificuldade em fazer afirmações taxativas porque há muita desinformação. Mas uma coisa é certa. Gaspar saiu, porque deixou de ter condições no Governo para aplicar a sua política. A carta de demissão é explícita. Portas saiu dizendo: "É preciso mudar essa política." Este Governo na sua forma remodelada é o Governo pós-Gaspar. O problema é que não pode ser o Governo pós-Gaspar. O Governo não é funcional, excepto para dar cabo da vida a alguns milhões de pessoas. Se não fosse o Tribunal Constitucional travar algumas veleidades, era a lei da selva completa. Eu tenho tentado analisar esta situação dos bons contratos e dos maus contratos. Um governo que diz que não há direitos adquiridos e os contratos para os trabalhadores ou os pensionistas não são válidos leva as pessoas a perguntar: por que é que não nacionalizam as PPP? E o problema é que este Governo vai sempre pela linha do mais fácil.
Podia ter feito algumas coisas que quer fazer agora no início, em 2011, quando havia condições de consenso político e as pessoas sabiam que era preciso fazer sacrifícios. Quando falo de ignorância do Governo relativamente à aplicação do memorando, é porque ele foi indiferente à sociedade e àquilo que é Portugal. Não é que não fosse preciso haver austeridade. Mas as pessoas são tratadas como lixo.
Este é um governo de má-fé?
Está cheio de má-fé - por exemplo, uma das decisões anteriores do Tribunal Constitucional. Despacho de Vítor Gaspar bloqueando o Governo, que evidentemente não foi aplicado. Pura vingança. Muitas medidas punitivas sobre os reformados e os pensionistas são medidas punitivas contra o TC. Este mecanismo quase de raiva contra as pessoas é inaceitável em democracia.
Mas esse não é o programa que a troika obriga o Governo a cumprir?
É. Eu nunca tive garantias de que algumas coisas que a troika dizia publicamente não fossem instigadas pelo próprio Governo, que precisava da troika para validar as suas políticas.
A Europa está preparada para o falhanço do programa português?
A Europa que está por trás da troika não. Fará tudo o possível para que isso não aconteça. Agora pode não ter margem de manobra. A Europa oscila entre uma ideia punitiva e a ideia da salvação do euro com estes programas. A questão que se levanta aqui é a da democracia. Não se pode ter um país democrático em que as eleições não podem mudar a política, que é o que aconteceu a 29 de Setembro. E, se as pessoas não encontram no voto algo que introduza diferença, depois vão para a rua.
Mas, hoje, a nível europeu, toda a gente diz que a receita está errada, mas ninguém muda. É possível sair desta crise sem a Europa mudar?
É e não é. O problema é que Portugal abdicou de ter qualquer papel, nomeadamente a partir do momento em que o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros começou a dizer que vivemos em protectorado. Perante um governo completamente obediente, a Europa não muda nada.
Há que falar grosso?
Não é só falar grosso. Há que responder grosso. Mas não é só o Governo. É a sociedade, o país. Cada pessoa individualmente face a esta crise tem a enorme responsabilidade de não se ficar, de não aceitar a inevitabilidade. E isso é uma responsabilidade colectiva.
Já passámos o limiar da fadiga da austeridade?
Há muito tempo. Porque o problema não é a austeridade. Toda a gente tem consciência de que a austeridade era necessária. O problema é o mau governo em nome da austeridade. E isso é que é imperdoável. Hoje estamos mais a remendar os erros do Governo do que os problemas do ajustamento. Esta política não tem futuro,
Mas a reforma do Estado não é necessária?
Claro que é, mas recuso-me a falar numa reforma do Estado porque imediatamente se presume que são os cortes que o Governo quer fazer. Claro que Paulo Portas vai aparecer com um papel mais pomposo [sobre a reforma do Estado], mas na essência o que lá vai estar são cortes. As pessoas pensam que eu valorizo de mais a questão da incompetência, mas a incompetência pesa imenso. Quando se decapitou as chefias da função pública, deitou-se fora os meninos com a água do banho. Foram embora os boys, alguns substituídos por outros boys, mas também uma parte do nosso funcionalismo que nos últimos anos tinha competência. Abriu-se o caminho para que as assessorias políticas vindas dos partidos ocupassem esses lugares. Há aqui uma perda de qualidade, mas temos de reconhecer que não é em todos os ministérios, porque há ministros que são sérios. É o caso do ministro da Administração Interna ou do ministro da Saúde. Já a Defesa, por exemplo, é uma desgraça.
Há duas visões sobre a vitória de Rui Moreira. Há quem veja aqui uma coisa que só era possível no Porto. Há quem diga que é um independente que fez uma coligação a partir da sociedade civil.
É um fenómeno replicável ou não?
As duas coisas. O Porto é a minha terra e tem um ethos muito especial. Rui Moreira vem nessa tradição. No entanto, a candidatura de Rui Moreira é a verdadeira candidatura social-democrata no Porto. Luís Filipe Menezes foi dar os porcos aos bairros sociais, mas os bairros sociais votaram Rui Moreira. E comeram o porco... A candidatura de Rui Moreira é muito importante e deve ser um exemplo para o PSD de como é possível, neste contexto, sem promessas demagógicas, ganhar uma grande câmara e criar condições para entendimentos com o PS. E a muitos sociais-democratas foi imposto o pior que o PSD tem, em matéria de aparelhismo deslumbrado, de despesismo mais absoluto feito com uma grande jactância e desprezo pelos portuenses.
Foi uma vitória de Rui Rio?
Sim, no sentido em que é a cidade de Rui Rio que dá a vitória a Rui Moreira.
O futuro do PSD passa por Rui Rio?
O futuro do PSD passa pelo retorno às ideias e aos valores da sua génese, pelo retorno à herança de Sá Carneiro, que são três coisas. Um partido liberal no plano político, que preza as liberdades e os direitos, um partido personalista, e um partido social-democrata, que tem em comum com a esquerda uma preocupação com o Estado como factor corrector das desigualdade sociais. É este PSD, que é o único que existe, que tem sido violentado por uma direcção a quem estes valores são completamente alheios e pela partidocracia. Se me perguntar se Rui Rio, como outras pessoas do PSD, estão muito mais próximas e são uma encarnação na sua vida política deste molde, eu digo que sim.
O consulado de Passos só acaba quando ele perder as eleições legislativas?
Não sei. Não auguro nada de bom. Os partidos políticos não têm nenhum acordo com a eternidade. Se o PSD perder este papel de partido com capacidade reformista e se se transformar num partido dos grandes interesses financeiros e do seu próprio aparelho, o seu papel na vida política portuguesa é definhar. E isso deixa um enorme vazio.
Mas haverá agora tambores a rufar dentro do PSD?
Os tambores que têm de rufar já rufam há muito tempo. O rufar é ouvido entre militantes e eleitores, mas há um ecrã entre essas pessoas e a superestrutura que é constituído pelas largas centenas de pessoas que perdem o seu trem de vida se perderem o seu lugar no partido. E isto não é um fenómeno só do PSD, é do PS também.
Disse que a única vitória nacional do PS tinha sido a de António Costa. O futuro do PS passa por António Costa?
O único futuro que pode salvar os dois grandes partidos tem de envolver Rui Rio e António Costa, com os quais seria muito mais fácil obter os entendimentos que o Presidente da República e a sociedade portuguesa desejam.
Sem comentários:
Enviar um comentário