OPINIÃO
Proença, Salgado e o
contraditório
JOÃO MIGUEL
TAVARES 02/09/2014 – PÚBLICO
Se nós só pudéssemos emitir juízos de valor após o Supremo Tribunal se
pronunciar sobre a culpabilidade de Salgado, então isto não seria uma
democracia.
Proença de
Carvalho concedeu uma entrevista ao Diário Económico onde comenta da seguinte
forma o caso BES e a detenção de Ricardo Salgado, de quem é advogado: “Até
agora o que tem havido são juízos preconceituosos, precipitados. Sabe que eu,
em toda a minha vida, me bati contra autos-de-fé e contra julgamentos no
pelourinho. Acho que é impróprio de democracia civilizada e de um Estado de
direito esta violação dos princípios de presunção de inocência.” E acrescenta:
“Vi aqui resquícios do que aconteceu no PREC em 1975.”
Eu só estive uma
vez na mesma sala que Proença de Carvalho. Foi em 2010 e ele estava a tentar
levar-me a julgamento por causa de um artigo que escrevi sobre José Sócrates,
em nome dos mesmos princípios da democracia civilizada que agora invoca. Salgado,
Sócrates, a elite angolana – não se pode dizer que Proença facilite a sua
própria vida na defesa dos melhores princípios democráticos. Mas empenho não
lhe faltará, até porque, segundo o próprio esclarece, “nós não escolhemos os
clientes, são os clientes que nos escolhem a nós”.
E tendo Ricardo
Salgado escolhido Proença de Carvalho, compreende-se que este utilize o espaço
dos jornais para ensaiar a defesa do seu cliente, optando por uma estratégia
que já tem barbas: garantir que não se sabe tudo, pedir paciência, afirmar que
“é preciso ouvir as várias narrativas de todos os protagonistas” (notem como o
conceito de “narrativas” tem uma certa ressonância socrática), e após muito
aguardarmos, “com tempo e serenidade e depois de haver um verdadeiro contraditório”,
aí sim, estamos autorizados – eu, você, os portugueses, o mundo – a emitir um
juízo devidamente fundamentado sobre Ricardo Salgado. Até lá, bolinha baixa,
que isto não é o PREC.
***
Deixando de lado
o pobre PREC, que tem as costas largas, e o facto de hoje em dia uma
nacionalização à moda de 75 até dar um certo jeito a Salgado, eu gostaria de
discutir a premissa da presunção da inocência e a forma como ela costuma ser
invocada pelos advogados dos donos disto tudo, com esta muito ínvia intenção:
querer impor à sociedade e à política um princípio que é do Direito, de forma a
que não se fale, não se discuta, não se acuse, não se aponte o dedo. O
raciocínio é este: se Salgado é inocente até ser considerado culpado, então
façam o favor de calar a boca, que o tempo dos pelourinhos e dos autos-de-fé já
lá vai.
Só que, graças a
Deus e a todos os santos (menos aos Espíritos), não é assim que as coisas
funcionam: se nós só pudéssemos emitir juízos de valor após o Supremo Tribunal
se pronunciar sobre a culpabilidade de Salgado, então isto não seria uma
democracia. Se eu for hoje para o meio do Rossio dar tiros à multidão, continuo
a ser inocente aos olhos da lei até ao trânsito em julgado da sentença de
condenação. Significa isso que ninguém poderá dizer que sou um criminoso até
2018? Felizmente, Ricardo Salgado não matou gente, mas a catástrofe do BES é um
flagrantíssimo delito, que todos temos o direito de avaliar, criticar e culpar.
Buracos de milhares de milhões não se cavam sozinhos. Esta mania de nos irem ao
bolso e ainda exigirem silêncio é deveras irritante. Da próxima vez que eu
estiver na mesma sala que Proença de Carvalho vou procurar roubar-lhe a
carteira, e quando ele gritar “agarra que é ladrão”, colocarei o braço à volta
do seu ombro e direi em tom melífluo: “Ó sotôr, autos-de-fé e julgamentos no
pelourinho ficam-lhe muito mal. Aguarde pelo
contraditório, se faz favor.”
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