Hoje é dia de Paulo Portas
Daniel Oliveira
8:00 Terça feira,
1 de abril de 2014 / EXPRESSO online
Sobre o relatório
do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), escrevi na edição impressa do
"Expresso". Resumindo muito, ele traduz um assustador aumento do
risco de pobreza na população ativa, incluindo a população com emprego. Isto
corresponde ao tal "ajustamento interno", que passa pela contração
dos rendimentos dos trabalhadores, simulando assim, grosseiramente, a
desvalorização cambial que nos está interdita. Com menos consumo e custos de
trabalho mais baixos, poderemos, nos planos da troika e do governo, diminuir as
importações e aumentar exportações. Como dizia Passos Coelho, para sair desta
crise teremos de empobrecer. Não era figura de estilo.
Quando foi
confrontado com o relatório que mais claramente exibe os resultados da
austeridade no País, Paulo Portas chamou à atenção para que até havia, no meio
da tragédia que nos anunciava, uma boa notícia: a diminuição de risco de
pobreza nos idosos e reformados. Não resistiu a puxar a brasa à sua sardinha e
atribui este facto ao aumento das pensões mínimas. Acontece que as pensões
mínimas estavam e continuaram a estar abaixo do risco de pobreza. O que quer
dizer que o seu aumento não teve qualquer efeito nestes números. Ou seja,
Portas não se baseou em qualquer dado estatístico para explicar aquilo que
estava a elogiar. E inventou um facto que lhe permitisse brilhar no meio das
más notícias.
Mas, ao pé da
mentira com que presenteou os portugueses dois dias depois, esta até foi
inofensiva. Confrontado com a redução drástica do número de beneficiários do
Rendimento Social de Inserção, Portas disse isto: "essas pessoas deixaram
de ter rendimento mínimo porque, por acaso, tinham mais de 100 mil euros na
conta bancária". Estava-se a falar de 26 mil famílias que perderam esta
prestação desde que o governo tomou posse. O que quer dizer que esses depósitos
teriam de estar bem disfarçados para que, com tal riqueza acumulada,
conseguissem receber o RSI. Ou seja: 95 mil espertalhões com mais de cem mil no
banco e capazes de enganar o Estado para receber, em média, 88 euros por
cabeça. Isto diz bem da imagem que Portas tem do País onde vive. Ou aquela que
ele gosta de passar para a opinião pública.
A diminuição do
número de beneficiários do RSI resultou sobretudo da alteração da lei, em 2012.
Para não me abandonarem já, por não aguentarem a estopada de cálculos técnicos,
fica um exemplo (não sendo a minha especialidade, espero não me enganar nas
contas): um casal com um filho que tivesse um rendimento total de 300 euros
recebia, antes de 2012, cerca de 94 euros por mês de RSI. Passou a receber 22
quando a lei mudou. Acrescente-se mais uma criança a esta família e mais cem
euros de rendimento e passamos de um RSI de 83 euros, antes de 2012, para ficar
bem longe de receber alguma coisa depois da mudança da lei. Isto porque cada
segundo adulto e cada criança perderam peso nos cálculos feitos através do
Indexante dos Apoios Sociais (IAS), que é a medida para estas contribuições.
Basta olhar para
a evolução do numero de beneficiários para perceber que tudo tem a ver com a
mudança dos cálculos a fazer. Na noite de 30 de junho para 1 de julho de 2012,
quando a nova lei entrou em vigor e sem que qualquer nova fiscalização fosse
feita, cerca de 10 mil famílias (mais de 39 mil beneficiários) perderam o
direito ao RSI. Quando o foi reduzido o valor integral do RSI perderam o
direito ao subsídio, no dia 1 de Fevereiro de 2013, mais duas mil famílias (9
mil beneficiários). De resto, a descida tem sido mensal, num momento em que a
pobreza aumenta. Desde que a lei entrou em vigor, 32 mil famílias perderam o
acesso ao RSI, o que corresponde a mais de cem mil beneficiários. Aliás, até à
nova lei, no primeiro ano deste governo, o número de famílias e beneficiários
aumentou ao ritmo que aumentava o empobrecimento do País. Como seria natural.
Hoje, para o
receber o RSI é preciso acumular o estatuto de quase indigência com a
capacidade (até financeira) de vencer o labirinto burocrático que foi
construído para desmotivar as pessoas a candidatarem-se ao RSI. Para além
disso, o regime hoje existente corresponde a multiplicar as punições de quem
receba o rendimento, expulsando o máximo de pessoas do sistema sem que isso
tenha correspondido a qualquer alternativa para as suas vidas. É esta a
política social do governo. Prefere a velha sopa dos pobres.
Claro que me
podem dizer que Paulo Portas não estaria a falar de todos os cem mil que saíram
do RSI quando falou do que tinham no banco. Apenas de uma parte, pequena que
fosse. Eles de facto existem. Também existem os que perderam o direito ao
subsídio por ter património imobiliário superior a cem mil euros. É claro que
para violar estas regras era preciso que todos os restantes pressupostos para
receber o RSI resultassem de uma fraude. Não é possível ter este dinheiro
guardado e, honestamente, ser candidato ao RSI.
Quantos foram
então os espertalhões apanhados? Os números exatos terão de ser conhecidos
brevemente e esperemos que o Ministério de Mota Soares não os trate como tem
tratado quase todos outros: de forma criativa. Se surgir um número
estapafúrdio, como já aconteceu no passado, caberá aos jornalistas pedir para
ter acesso direto aos números por tratar. Por mim, é com alguma segurança que
aposto que bastam duas mãos para contar as famílias que viram, desde a
aplicação da nova lei, a sua prestação suspensa ou cessada por terem mais de
cem mil euros no banco. No caso do património, os dedos de uma mão chegarão. Ou
seja, Paulo Portas multiplicou a realidade por umas boas dezenas de milhares
para fazer a mais rasteira das demagogias. Sem se incomodar com o facto de
estar a chamar vigaristas a cem mil portugueses.
Porque se sente à
vontade para o fazer? Porque apesar do RSI e do Complemento Solidário para
Idosos (os apoios aos mais pobres foram os que mais sofreram nas mãos deste
governo) terem sido extraordinariamente eficazes na diminuição da severidade da
pobreza em Portugal, este género de prestações sociais é quase sempre impopular
até o cidadão que a maldiz precisar dela. Assim sendo, as pessoas não se
importam de comer qualquer mentira sobre o assunto. Se não é verdade podia ser,
pensa quem ouve. Por outro lado, Paulo Portas está, neste momento, tão a leste
da realidade que nem se apercebe da dimensão demencial de algumas mentiras que
atira para o ar. Ele acredita mesmo que a esmagadora maioria dos beneficiários
do RSI são ladrões ou candidatos a isso. Por fim, o vice-primeiro-ministro
conta com a preguiça de muitos jornalistas ou apenas com o facto da maioria dos
portugueses não lerem jornais exigentes. Depois de dito, poucos saberão que
mentiu.
Paulo Portas
habituou-se a fazer política assim: dirigindo-se preferencialmente a um
eleitorado desinformado e marcado pelo preconceito. Sente que se disser a
mentira certa que faça acordar os ódios certos tudo correrá pelo melhor. Até
agora, assim tem sido. E é por isso que lhe dedico hoje, dia das mentiras, este
texto. Muitos farão associações deste dia a Cavaco, Guterres, Barroso, Santana,
Sócrates ou Passos Coelho. Serão sempre aprendizes. Portas bate-os a todos e a
todos parece ir sobrevivendo. Reconheça-se então a qualidade do artista. No seu
caso, até Aleixo falha: para a mentira ser segura e atingir profundidade,
Portas já dispensa que se misture qualquer coisa de verdade.
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