OPINIÃO
Os negócios e a geopolítica
TERESA DE SOUSA 08/12/2013 in Público
1. Uma curiosa sucessão de visitas de líderes ocidentais a
Pequim na semana passada ofereceu-nos inesperadamente o retrato quase perfeito
da estratégia, ou da ausência dela, que os Estados Unidos e a Europa têm em
relação à “superpotência emergente”.
A semana começou com David Cameron, que decidiu fazer do seu
país o “melhor amigo da China” na Europa, depois de dois anos de mal-estar na
relação entre Pequim e Londres, pelas razões do costume: a visita do Dalai Lama
ao n.º 10 de Downing Street e o dedo apontado à violação dos direitos humanos.
Terminou com o primeiro-ministro francês, Jean-Marc Ayrault. Entre as suas
visitas, o vice-presidente americano, Joe Biden, também passou por Pequim,
depois de ter estado em Tóquio e de partida para Seul. Imagina-se facilmente
que a sua visita, ao contrário das outras duas, não teve os negócios como ponto
único da agenda.
Comecemos por Cameron. A imprensa britânica, sem pôr em
causa a importância de uma boa relação com a China, critica a súbita mudança de
agulha do primeiro-ministro britânico sem qualquer aviso prévio. Antes de
partir, Cameron prometeu que defenderia em Bruxelas a negociação de um acordo
de comércio livre com a China, como aquele que está a ser negociado com os
Estados Unidos. Bruxelas franziu o sobrolho e os analistas britânicos trataram
de lembrar que o primeiro-ministro não pode falar com tanta facilidade em nome
da Europa, quando se comprometeu com um referendo para decidir se o Reino Unido
fica dentro ou fora da União Europeia. Os chineses sabem disso. Prestam muito
maior atenção às suas relações com a França ou com a Alemanha, aperfeiçoando a
sua estratégia de “dividir para reinar”, enquanto esperam que a Europa fale a
uma só voz. Desafiam os países de Leste para uma relação especial. Aproveitam a
fragilidade das economias do Sul, como a nossa, para investir. Desdenham da
Grã-Bretanha como um país em decadência onde só vale a pena fazer turismo ou
enviar estudantes para as suas universidades. Cameron levou mais de 100
empresários e fechou alguns belos negócios. O Tibete já ficou para trás e os
direitos humanos são para se falar baixinho.
Poucos dias depois, foi a vez do primeiro-ministro francês.
A França também já foi posta de quarentena, quando Sarkozy recebeu o Dalai
Lama. As relações melhoraram. Ayrault conseguiu garantir a cooperação entre a
Renault e a Dongfeng para uma fábrica de construção da marca na China. A
imprensa francesa congratulou-se com a abertura do mercado chinês à sofisticada
charcuterie francesa, impedida de entrar por razões de “segurança alimentar”.
Todos os países europeus querem uma “relação especial” com a
China para atrair investimento e conquistar mercados, o que é absolutamente
natural. Vão a Pequim por sua conta e risco e em competição uns com os outros.
Mesmo os pequenos, como Portugal, querem garantir a sua fatia do bolo. O
problema é que não há qualquer visão europeia de longo prazo para a relação com
a China. E é aí que entra a visita de Biden e do seu dificílimo jogo
diplomático para manter as coisas calmas por ali.
2. Enquanto Cameron e Ayrault faziam os seus negócios, os
Estados Unidos enviavam dois B-52 atravessar a novíssima “zona de identificação
de defesa aérea” que a China decretou unilateralmente no mar da China Oriental,
incluindo o espaço que se situa sobre a ilha que hoje está no centro de um
perigoso braço-de-ferro entre a China e o Japão. Os japoneses ficaram furiosos.
Os sul-coreanos também. São os dois principais aliados do Estado Unidos na
região. Olham para a China com cada vez maior desconfiança. A visita de Biden
serviu para “travar uma perigosa escalada em torno da disputa marítima entre as
duas grandes potências asiáticas”, escreve o Washington Post. Começou por
Tóquio para travar o ímpeto nacionalista de Shinzo Abe e recomendar que se
estabelecem vias de contacto directo entre o primeiro-ministro japonês e o novo
Presidente chinês. Seguiu para Pequim para tentar convencer os chineses de que
não é do seu interesse agitar demasiado as águas.
Ninguém pode ignorar o facto de que se multiplicam os
“gestos” chineses destinados a testar o seu poder na região e questionar a
presença americana no Pacífico. O maior desafio que o Ocidente hoje enfrenta é
conseguir integrar pacificamente a nova “superpotência em ascensão” na ordem
internacional que emergiu depois da II Guerra. A história mostra que raramente
essa inclusão é pacífica. A globalização económica pode ser uma oportunidade,
na medida em que a interdependência económica torna toda a gente mais
dependente dos outros: tanto a América como a China. É este o objectivo de
Obama, com o seu “pivô” para a Ásia-Pacífico: manter o statu quo na região, sem
ter de hostilizar Pequim. O dificílimo exercício diplomático de Washington,
apoiado numa presenta militar enorme, é convencer a China de que a sua política
asiática não é de “contenção” do seu poder (a China não está convencida), ao
mesmo tempo que garante aos aliados regionais, do Japão à Coreia, passando
pelos pequenos países que rodeiam o gigante chinês, que não os abandonará. Ou
seja, estamos aqui e vamos continuar aqui.
3. Já aprendemos que, quando os europeus não se conseguem
entender sobre uma questão importante, elaboram uma “estratégia comum” com
muitas páginas, mas sem qualquer conteúdo. Já existe uma “parceria estratégica”
com a China, mas o seu efeito prático é mais ou menos igual a zero. Por
enquanto, a lógica que prevalece é a de cada um por si, no que toca aos
negócios. Quanto à geopolítica, a Europa agradece que os americanos tratem
dela.
Não é uma posição sustentável por muito tempo. Que a
Alemanha, que representa 40 por cento do comércio entre os dois gigantes
económicos, veja as coisas nesta perspectiva “geoeconómica” (mesmo que alguém
tenha de manter as rotas do comércio seguras para os seus produtos), ainda se
entende. Que o primeiro-ministro do Reino Unido, que é membro permanente do
Conselho de Segurança, esqueça o seu estatuto ao ponto de não ter emitido um
comunicado sobre a “zona de identificação de defesa aérea” (assinou o que foi
feito por Ashton em nome da Europa, que afinal lhe dá bastante jeito) é que é
uma novidade desagradável.
4. O receio maior dos EUA e dos seus aliados regionais é que
a China adopte a mesma atitude para o mar da China do Sul, onde está em
conflito com as Filipinas igualmente por razões territoriais. Esse receio foi
ontem justificado quando a diplomacia chinesa recusou submeter-se ao julgamento
da comissão criada pela ONU para resolver o conflito. O novo líder chinês, Xi
Jinping, quer abrir ainda mais a economia chinesa às regras do mercado, ao
mesmo tempo que utiliza uma retórica mais nacionalista, que agrada aos
chineses, vítimas da brutalidade japonesa antes da II Guerra. O Japão é o maior
investidor na economia chinesa, tem uma Marinha poderosa e decidiu aumentar o
seu orçamento de defesa. A China, que investe cada vez mais na defesa, só tem
um velho porta-aviões ucraniano que modernizou. A sua aviação está muito longe
de ter o treino da japonesa ou da coreana, sem falar dos EUA. Os dois países só
têm a ganhar com a paz. O problema é que nunca sabemos quando uma tartaruga
numa ilha deserta pode incendiar um oceano. A história ensina-nos, quase sempre
da maneira mais trágica, que o nacionalismo cega as nações ao ponto de
ignorarem o seu próprio interesse. No meio disto tudo, o que é que a Europa
pensa? Em negócios. Habituou-se mal com a Guerra Fria e custa-lhe perceber que o mundo, entretanto, mudou.
Jornalista
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