OPINIÃO
A universidade também
“regressa aos mercados”?
RAQUEL VARELA 12/12/2013 – in Público
Uma universidade não pode ser uma instituição que produz a
formação da força de trabalho para o mercado.
Tempos houve em que a Igreja ocupava o lugar central das
cidades. Hoje esse lugar é ocupado por um banco. Espero que um dia seja ocupado
por uma universidade.
O recente concurso FCT 2013 levantou objecções sérias a
nível nacional na comunidade científica, depois de ter eliminado mais de mil
doutorados, a geração mais bem preparada de sempre do país, na mesma semana em
que o primeiro-ministro “lamentou a saída de jovens do país”, ou seja, a
sangria de riqueza nacional por via da emigração forçada. O concurso abriu uma
crise no meio académico, pela obscuridade do processo e pelos resultados. Foi a
gota de água de um problema de fundo – a ausência de uma política de emprego
científico nacional, num país com uma das taxas mais baixas de formação a nível
de toda a OCDE – 15% de diplomados entre a população com 25 e 64 anos de idade,
quando na OCDE a média é 32%. Todos estes, cientistas de topo, deviam estar
empregados. Não me ocorre melhor metáfora: estamos, como na crise de 1929, a destruir comida
rodeados de esfomeados.
Ou por ausência de dinheiro para pagar a avaliadores
internacionais, ou pressa em assinar contratos, ou pelo limitado número de
vagas, este despedimento de cientistas deu-se através de um concurso que não
acautelou a mais elementar protecção de direitos. Num concurso deste nível na
UE e em todo o mundo os candidatos são avaliados por um número ímpar de
avaliadores (3 a
5), cujos nomes e CV são públicos. Estes avaliadores reúnem-se,
presencialmente, tendo que avaliar o candidato mediante uma grelha de pontuação
detalhada de itens do CV e projectos. Em Portugal existe um processo de
pré-selecção interna que elimina uma parte significativa dos candidatos a
concurso. Estes não têm o seu projecto avaliado por um júri internacional, mas
por um pré-júri (cujo número e CV são desconhecidos, se é composto por um ou
mais avaliadores, avaliando em conjunto ou em cadeia (quando chega às mãos de
um, já tem um visto prévio do outro?). Segue-se a isto a não publicação das
actas, de avaliações, etc. Aceitar este método é abrir um precedente
inaceitável para toda a comunidade científica.
O pano de fundo desta situação é a chegada à universidade de
um modelo de reconversão do mercado de trabalho que promove uma “eugenização da
força laboral”, atirando para fora todos os que têm relações de trabalho-padrão
(protegidas) e indo buscar o trabalho flexível, barato. Reformas sem
substituição de novos trabalhadores, bloqueio de contratações, despedimentos
mediante selecção de concursos: de um lado despede-se, do outro aumenta-se a
carga horária e as tarefas dos que estão a trabalhar (pressionando os
cientistas para investigarem, darem aulas, orientarem, publicarem, procurarem
fundos, etc.). Este modelo é o de crescimento a empobrecer, isto é, a força de
trabalho é usada até à exaustão, os ganhos de produtividade não são obtidos por
melhor formação da força de trabalho e racionalização, mas por esta trabalhar
mais horas por menos salário (mais produtividade com menor custo unitário do
trabalho). Os danos colaterais – misérias, doenças, retrocesso civilizacional –
são amparados pelas políticas assistencialistas, que crescem na mesma proporção
que decresce o Estado social.
O caminho é o do despenhadeiro. A diminuição do número dos
professores de carreira (quase 400 só entre 2009 e 2011) foi contrapesada pelo
aumento do número de docentes convidados. As recentes leis bloqueiam a
contratação de convidados. Abre-se então caminho ao trabalho parcial, e mais
recentemente ao trabalho pago à hora, que disparou nesses dois anos 70% (são os
mini jobs que aconselhava o ministro das Finanças alemão). Há professores
universitários no sector privado com horário de aulas igual ao público a ganhar
690 euros mensais. Mini jobs, mini-salário, muita assistência – 17% da
população de Berlim, por exemplo, recebe o rendimento mínimo, o Hartz IV. Em
Portugal 10% da população a trabalhar não consegue pagar contas mínimas de
sobrevivência. Na assistência, familiar ou social, ficarão agora os
investigadores despedidos? Ou emigram?
O primeiro-ministro não tem o que lamentar. Podia haver
outro modelo, em que se reduz o horário de trabalho, se faz escala móvel de
salários e de tempo de trabalho sem reduzir salário, diminui-se o rácio
professor/aluno e aumenta-se a riqueza produzida por estes cientistas e
docentes. A reboque, aumentam-se as contribuições para a Segurança Social e o
Estado social. Mas para isso é preciso fazer escolhas: o OE 2014 prevê gastar
em ciência e tecnologia 5% do que se prevê pagar em juros da dívida pública!
A palavra escola tem a sua origem na palavra ócio, que para
os gregos era o contrário de negócio. Ócio não era preguiça, era tempo de
reflexão. Marilena Chaui, destacada filósofa brasileira, num relatório que fez
para a UNESCO, disse que se a universidade “trabalha é porque deixou de cumprir
a sua função”. Uma universidade – e este é o âmago da questão – não pode ser
uma instituição que produz a formação da força de trabalho para o mercado. Ela
é uma instituição de contrapoderes, seja à Igreja, ao Estado, aos partidos ou
ao mercado. A sua função – temos que quebrar este tabu – não é adaptar-se “ao
que o mercado necessita”. O mercado, ou seja, a forma como hoje vivemos,
produzimos e reproduzimos a sociedade, é que tem de vir com urgência à
universidade para ser criticado, no lugar onde se produz conhecimento, onde se
questiona o óbvio, onde se desafia, com coragem, o senso comum.
Historiadora do trabalho, investigadora FCT, IHC, IISH
(Amesterdão)
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